Relato de cidadã brasileira ao DN, atribuindo agressões e um clima de terror ao SEF, levou o ministro da Administração Interna a pedir um inquérito. "Não basta, de modo nenhum", diz a Amnistia Internacional Portugal, que acusa MAI de "meias respostas" e de adiar problemas "até serem esquecidos".
"Confirmando-se este relato, ele envergonha-nos e choca-nos a todos. As autoridades policiais não se podem substituir aos tribunais decidindo com omnipotência quem entra ou não no país logo no aeroporto. Não podem, alegadamente, obrigar as pessoas a assinarem documentos ou pior, assinar por elas. Mesmo no exercício do seu mandato profissional não podem usar da violência sem critério. Urge transparência total sobre a atuação das autoridades. Já não se trata de maus profissionais. É muito mais que isso. Urge confirmar este testemunho e ouvir e proteger outras pessoas com outros testemunhos."
A indignação de Pedro Neto, diretor executivo da secção portuguesa da Amnistia Internacional, deve-se ao relato feito por uma cidadã brasileira ao DN este sábado. Márcia - nome escolhido pelo jornal, uma vez que pediu anonimato - esteve no Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto de Lisboa em fevereiro/março, sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, tendo convivido com Ihor Homeniuk, de cujo homicídio a 12 de março, alegadamente por agressões a murro, pontapé e cassetete, estão acusados três inspetores daquela polícia.
Márcia garante que não foi só o cidadão ucraniano a ser agredido, que a sala onde morreu era usada pelos inspetores do SEF para "conversinhas" com quem se "portava mal" e que dela os detidos saíam "todos rebentados". Alega igualmente que foi maltratada logo à chegada, que lhe falaram alto e a coagiram a assinar o termo de deportação onde admitia que tinha vindo para Portugal trabalhar, sob pena de serem os inspetores a assinar por ela, e esteve 17 dias com a mesma roupa.
Estas declarações levaram o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, a pedir à Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) que abra um processo de averiguações para ouvir esta testemunha.
"SEF tem de ser reformado"
"Isso não basta, de modo nenhum", diz Pedro Neto. "A IGAI é um órgão inspetivo interno, não um mecanismo de justiça. A demissão de funcionários que provocou o relatório da IGAI [refere-se ao relatório à morte de Ihor Homeniuk, que propõe processos disciplinares a 12 inspetores e uma funcionária administrativa do SEF, caracterizando o funcionamento desta polícia como eivado de ilegalidades, informalidades e incúria, com tentativa de encobrimento do que se passara e conclui ter existido 'postura generalizada de desinteresse pela condição humana' em 'todos os intervenientes neste caso'] não basta para ser feita justiça."
O MAI, declara o diretor executivo da AI Portugal, "não pode dar meias respostas que atiram os problemas para a frente, sine die, até serem esquecidos, nem utilizar o IGAI para elas, quando já vários organismos, inclusive internacionais, apontaram falhas à independência do IGAI"
O que deve acontecer, crê, é que "as pessoas como 'Márcia' têm de ser ouvidas e protegidas pelo Ministério Público. É aí e nos tribunais que a justiça se fará acontecer. Estas pessoas têm de contribuir para que se faça justiça neste caso particular, mas também têm de ser ouvidas em relação àquilo que parecem ser comportamentos repetidos e consistentes de maus tratos, tortura e violência injustificada ou excessiva sobre pessoas. A própria diretora do SEF o admite e como tal, renovar os espaços não chega".
Pedro Neto refere-se aqui à entrevista dada a 15 de novembro à RTP pela diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, na qual esta assumiu que Ihor foi vítima de "tortura evidente", e às promessas que foram feitas pelo ministro em abril, após ser conhecida a morte de Ihor Homeniuk.
E prossegue: "Choca o rebuscamento da descrição de [os inspetores] usarem luvas para que não se registem impressões digitais e de levarem as pessoas para uma sala sem videovigilância [refere-se às declarações de Márcia]. A violência é apenas justificável em proporcionalidade e para anular ameaças públicas, não tem qualquer cabimento naquele espaço fora desta regra. Às denúncias e conhecimento público que já tínhamos de crianças detidas naqueles espaços com as famílias, acrescenta-se agora esta denúncia que tem de ser investigada e confirmada. E sendo-o a justiça tem de ser feita e o SEF reformado. Obras no espaço não chegam."
O que mudou desde a morte de Ihor?
A insistência do diretor executivo da AI nas obras prende-se com o anúncio de Eduardo Cabrita, na audição parlamentar requerida pelo BE que teve lugar a 8 de abril, de que o CIT do aeroporto de Lisboa tinha sido encerrado e que ia ser submetido a obras, não voltando a ser colocados ali os requerentes de asilo e servindo só para instalação dos estrangeiros a quem é negada entrada no país e aguardam repatriamento.
O governante adiantou igualmente que iriam ser disponibilizados intérpretes (a IGAI certifica no seu relatório que Ihor, que não falava mais nenhuma língua senão ucraniano, nunca teve acesso a um intérprete durante todo o tempo que esteve sob custódia do SEF, nem sequer durante a entrevista que levou à decisão de não o deixarem entrar ou quando foi levado ao hospital) e que seria celebrado um protocolo com a Ordem dos Advogados para disponibilizar apoio jurídico.
A presença de intérpretes e advogados no CIT, assim como de observadores externos, é uma velha reivindicação de associações humanitárias e da Provedora de Justiça, assim como do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, um protocolo com a ONU que funciona na provedoria.
A presença de advogados já estará assegurada - mas o recurso a esse apoio é apenas para a fase seguinte à entrevista e à decisão do SEF, ou seja, para eventual recurso. Ora tanto Ihor como Márcia foram impedidos de entrar no país alegando-se "ausência de visto" quando tanto os cidadãos ucranianos como brasileiros não precisam de visto para curtas estadas em Portugal - os inspetores que os entrevistaram concluíram que vinham para trabalhar e não em turismo, daí a decisão de não entrada. Uma decisão cuja legalidade a IGAI põe em causa, já que os inspetores que a tomaram não estão a ela autorizados, por não lhes terem sido delegadas as competências para tal.
Esta ilegalidade transforma, segundo juristas ouvidos pelo DN, as detenções - ou retenções - de Ihor e Márcia pelo SEF em sequestro. Assim como, depreende-se, de todo e qualquer estrangeiro a quem tenha sido barrada a entrada no aeroporto de Lisboa - pelo menos até que essa ilegalidade tenha sido, se foi, sanada.
São de resto tantas as questões suscitadas pelo caso de Ihor que, mais de oito meses após a sua morte, ainda estão a tentar identificar-se as circunstâncias que permitiram a tragédia - da ausência de gestão autorizada do CIT, que estava entregue a vigilantes de uma empresa privada de segurança, sem qualquer formação específica, ao modo de funcionamento do SEF do aeroporto, tão informal que o próprio ex diretor de Fronteira de Lisboa (demitido a 30 de março, quando se soube da detenção, pela Polícia Judiciária, dos três inspetores indiciados pelo homicídio) o descreveu à IGAI como "dependendo do entendimento entre as pessoas".
Apesar das perguntas que têm sido endereçadas pelo DN ao SEF e ao MAI não foi possível perceber o que mudou entretanto, para além da já citada existência de apoio jurídico e algumas obras no espaço. À exceção da curta entrevista dada à RTP, e na qual não lhe foram feitas perguntas específicas sobre as inúmeras falhas detetadas pela IGAI e eventuais alterações de procedimentos, a diretora nacional não se tem referido ao caso. Nunca esclareceu sequer quando soube da morte e por quem e, tendo-se assumido "enganada" (alega que lhe disseram que se tinha tratado de um óbito devido a causas naturais) em que momento se deu conta da existência de uma investigação da Polícia Judiciária - que pressupunha suspeita de crime.
Também não foi até agora possível esclarecer o que se passou com a obrigatória averiguação interna do SEF à morte, a qual o ministro disse ao parlamento ter sido ordenada logo no dia 13: não há dela rasto no relatório da IGAI e nem o SEF nem o ministro deslindaram o mistério, que valeu a Eduardo Cabrita ter sido acusado pelo PSD de mentir.
A Amnistia Internacional, garante Pedro Neto ao DN, vai continuar atenta. "Continuaremos a monitorizar o evoluir desta situação e a esperar que se faça justiça. Por Ihor, pela sua família e por todas as vítimas de profissionais sem escrúpulos e ética que indignam a honra e o bom nome das autoridades onde trabalham."
Fernanda Câncio | Diário de Notícias | Imagem em Observador
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