João Rodrigues* | AbrilAbril |
opinião
A Revolução dos Cravos não teria
avançado sem a adesão incondicional, vibrante e entusiasta do Povo de Lisboa
sublevado desde as primeiras horas da manhã, mas também foi decisiva a acção de
Salgueiro Maia, com as suas características pessoais.
Estamos no ano das comemorações
dos 45 Anos do 25 de Abril de 1974, e da nossa Revolução dos Cravos. No prazo
útil de uma vida, é já muito ano mas – a luta continua!
Quanto à acção em concreto, na
madrugada, manhã e tarde de 25 de Abril, já muito se escreveu embora nem sempre
bem, nem sempre com rigor em relação aos factos ou em relação a protagonistas.
Da nossa parte e como testemunha
muito próxima daquilo que foi acontecendo desde 23 de Abril, para não ir mais
atrás, afirmamos que a acção militar desencadeada de 24 para 25 de Abril pelo
heróico Movimento dos Capitães, essa acção militar revoltosa só teve o sucesso
conhecido porque foi acompanhada e «levada ao colo» pelo Povo de Lisboa e da
«Margem Esquerda do Tejo». E isso aconteceu logo desde cedo, sobretudo a partir
das oito horas da manhã, no Terreiro do Paço e, daí, pelas ruas de Lisboa até
ao Convento/Quartel do Carmo e até à capitulação deste e dos fascistas,
PIDE-DGS incluída, no dia 25 de Abril.
Sim, apesar da revolta militar,
armada, a Revolução dos Cravos não teria avançado sem a adesão incondicional,
vibrante e entusiasta do Povo de Lisboa sublevado quase espontaneamente desde
as primeiras horas da manhã. E decisiva continuou a ser, nos dias seguintes, a
adesão em crescendo do Povo Português até ao glorioso 1.º de Maio de 1974!
Direi mesmo que no dia 25 de
Abril, sem o apoio extraordinário manifestado pelo Povo nas ruas de Lisboa, as
forças militares que estavam a encabeçar a Revolução teriam sido derrotadas
ainda nesse mesmo dia logo que os fascistas se tivessem reorganizado e
contra-atacado em força. E seriam derrotadas não porque não houvesse nelas quem
estivesse disposto a morrer pela Revolução desencadeada mas porque a força das
tropas sublevadas tinha algum poder de fogo concentrado em (apenas…) dois ou
três carros blindados mas, feitas todas as contas e perante o que estava em
jogo, era mais um bluff que outra coisa, o poder efectivo das forças
à disposição directa de Salgueiro Maia que, aliás, passou o dia a fazer bluff em
torno disso mesmo…
E sendo verdade que em Santarém
se mantiveram tropas significativas, aquarteladas e de «prevenção rigorosa»
dentro da Escola Prática de Cavalaria (EPC) para combaterem, caso fosse forçada
a voltar para trás a coluna militar que seguiu para Lisboa sob comando directo
de Salgueiro Maia, apesar desse «plano B» de contingência, a eventual
capacidade de combate «revoltoso» continuava reduzida em meios bélicos e em
homens.
Os fascistas foram apanhados «a
dormir», tanto que não acreditaram naquilo que começou a acontecer na noite de
24 para 25 de Abril com a saída, dos quartéis para a rua, das primeiras tropas
revoltadas as quais, por exemplo, puderam ir de Santarém até Lisboa sem
encontrar pela frente quem, pelo menos, lhes perguntasse o que andavam a fazer
e para onde iam naqueles preparos e àquelas horas… E ainda bem que assim foi!
Salgueiro Maia teve o papel
individual mais decisivo no comando operacional das tropas sublevadas
É sabido que, claro, foi da maior
importância operacional aquilo que se passou a partir do Quartel da Pontinha e
«Posto de Comando das Forças Armadas», onde estiveram Otelo Saraiva de Carvalho
e outros mais a comandar as acções militares (conjuntas) do Movimento dos
Capitães em 25 de Abril.
Mas, na rua, afinal onde mais
«cheirou a pólvora», acabou por ser decisiva a acção individual de Salgueiro
Maia com as suas características pessoais – em que também já havia preparação
política – à frente da coluna militar que comandou desde Santarém e da EPC. E
foi essa uma acção de comando particularmente ágil, determinada e decisiva, no
Terreiro do Paço e no Largo do Carmo.
Salgueiro Maia esteve sempre na
máxima tensão – embora aparentemente calmo e confiante, por vezes até irónico –
fosse quando empunhava a sua espingarda G3, fosse quando empunhava o megafone
ou o rádio transmissor-receptor, fosse mesmo quando ficou na mira das
metralhadoras do tanque de guerra que ele «enfrentou» na Ribeira das Naus, ou
na mira das peças daquela fragata da Marinha, no Tejo, que chegaram a estar
apontadas bem de frente para o Terreiro do Paço.
Entretanto, Salgueiro Maia
manteve sempre um objectivo operacional central e que foi o de «não se derramar
sangue» e isso evitou ele por várias vezes. Por exemplo, ele não permitiu que
se abrisse fogo contra um brigadeiro – cretino e fascista – que passou a manhã,
no Terreiro do Paço e ruas adjacentes, a fazer tudo para travar pelo menos uma
bala com a testa, pois chegou a mandar disparar tiros contra as forças
revoltosas… E o merecimento era mesmo o de ter sido abatido, na hora.
Salgueiro Maia e o seu núcleo
principal de comando eram militares profissionais e tinham experiência de
combate em África, o que também ajudou. Mantiveram-se firmes e coesos.
Mas Salgueiro Maia era diferente.
Para já, era casado mas, à data, não tinha filhos ou seja, estava mais «solto»
do ponto de vista familiar e comparativamente com outros seus Camaradas.
Portanto, ele estava completamente predisposto ao que desse e viesse.
Salgueiro Maia era um militar
profissional e nunca perdeu essa postura
A 24 de Abril, ainda no quartel
da Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém, a seguir ao jantar,
Salgueiro Maia impediu que uma equipa operacional pré-formada – onde também
estavam militares milicianos ou seja, não-profissionais – prendesse o então
segundo comandante da EPC, um tenente-coronel que, ao início da noite de 24 de
Abril, resolveu voltar para dento do quartel onde quis assumir o comando, para
tentar contrariar a ideia da saída das tropas da EPC para a Revolução.
Então, quando Salgueiro Maia e
outros oficiais (subalternos) de carreira da EPC estavam com o seu segundo
comandante em clima de grande tensão – o homem tentou resistir – dentro da sala
de comando, Maia veio à porta dessa sala impedir que os milicianos, da tal
equipa pré-formada para esse fim, entrassem a prender e a retirar da sala, à
força, o segundo comandante, tarefa que acabou por ficar a cargo, apenas, de
oficiais, militares de carreira, que se encontravam dentro da sala.
Mais tarde, ouvimos de um outro
oficial do quadro profissional a explicação para a inusitada intervenção de
Salgueiro Maia. Assim, ele não quis que milicianos (militares
não-profissionais) praticassem ou sequer vissem aquilo que a tropa não pode
permitir, aquilo que foi um acto de pura «quebra da cadeia de comando», de
insubordinação muito grave perante um tenente-coronel e segundo comandante da
EPC, por parte de oficiais de carreira seus subordinados. Ora, isto é um
exemplo, por nós testemunhado, da mentalidade militar – embora não militarista
– de Salgueiro Maia… e outros exemplos disso houve, mais tarde.
Salgueiro Maia preparou-se para
se fazer explodir caso o fizessem prisioneiro
Mas Maia também estava disposto a
tudo, mesmo ao seu próprio «sacrifício», no dia 25 de Abril!
A dada altura, durante a manhã,
Salgueiro Maia avançou até ficar frente a um pesado tanque de Guerra que viera
ao Terreiro do Paço enfrentar as tropas sublevadas. A providência e a acção
corajosa de alguns dos militares que estavam nesse Tanque – e que desobedeceram
a ordens expressas de oficiais, como o tal Brigadeiro, para abrirem fogo –
salvaram a vida a Maia e, por certo, a outros dos seus camaradas, e evitaram o
deflagrar generalizado do tiroteio com consequências imprevisíveis mas
certamente dramáticas…
À tarde, já no Largo do Carmo,
Salgueiro Maia ofereceu resistência «passiva» a ordens expressas de Otelo
Saraiva de Carvalho para abrir fogo, «com tudo», para fazer render o Quartel do
Carmo onde se entrincheirou Marcelo Caetano sob protecção da GNR. Havia o
receio de que, com a grande demora que se verificava na rendição do Quartel do
Carmo e de Marcelo Caetano, se processasse um contra-ataque forte por parte de
forças militares – por onde andaria a Aviação, nessa altura?... – ao serviço
dos fascistas. Na pressão, Maia até mandou abrir fogo, a rajada de
metralhadora, mas apenas sobre a fachada do Quartel do Carmo. Terá ainda
mandado fazer fogo a um carro blindado que se posicionara bem de frente para o
Quartel do Carmo, mas o oficial miliciano que comandava directamente esse
blindado «fez de conta» que não ouviu a ordem (dada por megafone) para abrir
fogo, com a peça grande, sobre o quartel. E ainda bem que a peça não cuspiu a
granada que tinha municiada, a qual teria provocado grandes danos no Quartel mas
também teria feito «chover» estilhaços muito perigosos sobre aquela gente toda
que se apinhava por ali à volta, no Largo do Carmo.
Era aquela preocupação geral em
torno do «evitar o derramamento de sangue».
Então, a dada altura e para um
quase desespero dos seus Camaradas de comando, Maia resolve entrar – sozinho –
no Quartel do Carmo, «escoltado» por um oficial da GNR seu conhecido, que viera
a uma porta lateral do Quartel do Carmo a conferenciar com Maia dentro da
perspectiva – soube-se a seguir – de o convencer a entrar dentro do Quartel
para ir falar directamente com Marcelo Caetano, o que Maia logo se mostrou
disposto a fazer.
Os camaradas adjuntos de
Salgueiro Maia ficaram em «pânico» e tentaram, em vão, dissuadi-lo dessa
«aventura», pois ele ia correr perigo de vida. De imediato, mal entrasse, o
mais provável era ser feito prisioneiro e ameaçado de morte caso as forças que
ele comandava e que ocupavam o Largo do Carmo, não fossem de lá para fora e
rapidamente. E então, numa circunstância dessas, por exemplo, vendo uma
ameaçadora arma encostada à cabeça do seu comandante, que fariam, sob uma
pressão desse tipo, as tropas de Maia? Pois teriam que se ir embora dali, e lá
se ia o golpe militar do 25 de Abril…
É debaixo dessa pressão brutal, e
antes de entrar, que Salgueiro Maia proclama mais ou menos isto assim: «a mim
ninguém me faz prisioneiro, que eu levo aqui no bolso duas granadas defensivas
e, se necessário, faço-as rebentar antes de cair prisioneiro», e isto disse ele
enquanto batia com a mão por cima do bolso «gordo» das calças da farda «n.º 3»
que vestira ainda na EPC e logo concluía: «se eu não aparecer daqui a quinze
minutos, rebentem isto tudo!», e indicava o Quartel do Carmo – que, como é
sabido, acabou por não ser necessário «rebentar»…
É nesta tensão enorme, em que os
nervos estalavam a quem mais se encontrava envolvido naquela situação, que
Salgueiro Maia entrou no Quartel do Carmo onde, de facto, se avistou com
Marcelo Caetano e de onde o veio a retirar, depois, dentro da chaimite Bula.
Felizmente, nem Salgueiro Maia
foi feito prisioneiro nem precisou de fazer detonar as «suas» granadas
defensivas – daquelas granadas que rebentam em estilhaços metálicos – que levou
dentro do bolso.
Mas não tenho dúvidas nenhumas
que, se tivesse sido necessário, se o tentassem fazer prisioneiro dentro do
Quartel do Carmo (ou noutro lado qualquer), Salgueiro Maia teria mesmo feito
rebentar as granadas e, ao rebentá-las, seria «rebentado» ele próprio, a seu
próprio «mando».
Salgueiro Maia não decidiu
sozinho o confronto a 25 de Abril mas condicionou-o muito
Sim, Salgueiro Maia esteve sempre
decidido mesmo quando pareceu hesitar. Além de coragem física, já tinha
preparação política e ideológica muito favorável para a ideia de pôr fim à
ditadura fascista e à guerra colonial, para se abrir as portas à Democracia, o
que lhe reforçava a convicção enquanto militar revoltoso!
Como comandante operacional das
principais acções militares que se desenvolveram, na rua, no dia 25 de Abril,
ele esteve sempre muito dentro dos acontecimentos e a «jogar» com eles, uns
atrás dos outros. Aliás, por mais de uma vez esteve à frente da mira das armas
«inimigas» que só não dispararam a matar sobre ele… porque assim não teve de
ser! E apesar da valentia e coesão dos seus Camaradas de comando, as «coisas»
não teriam corrido bem – não teriam corrido daquela forma notável e feliz –
caso tivesse sido outro o comandante que não Salgueiro Maia!
Sim, por si só um Homem não
decide a História mas pode condicioná-la. Salgueiro Maia foi o Militar e foi o
Homem mais do que certo para aqueles momentos! «Escolhas» felizes e acertadas
como essas acontecem raramente! O 25 de Abril de 1974 – com Salgueiro Maia à
frente – é uma dessas «raridades»… Nós sabemos isso!
Honra e glória a Salgueiro Maia!
25 de Abril, sempre!
----------------------------------
*Fernando José Salgueiro Maia, um
dos capitães do Exército Português que liderou as forças revolucionárias
durante a Revolução de 25 de Abril de 1974, nasceu em Castelo de Vide a 1 de
Julho de 1944. Em 2019 comemoram-se os 75 anos do seu nascimento.