#Publicado em português do Brasil
País ultrapassa os EUA em proporção de óbitos por covid-19 em 24 horas. Acossados por presidente, Estados titubeiam em decretar medidas mais duras de circulação. Presidente faz pronunciamento sem citar recorde
A pandemia de coronavírus segue ganhando velocidade no Brasil, que superou nesta terça-feira, 23 de março, a marca de 3.000 mortes registradas diariamente por covid-19 enquanto a estratégia contra crise segue errática sob a liderança de Jair Bolsonaro, um negacionista da gravidade da doença. Em pronunciamento na noite desta terça, o presidente não mencionou o novo recorde nem anunciou novas medidas para retirar os hospitais do país do atual estado de colapso. Ignorando as falhas de sua gestão no combate ao vírus e na organização da campanha de vacinação, buscou passar uma mensagem otimista, contendo mentiras e omissões. “Em nenhum momento o Governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus como para combater o caos na economia”, afirmou o mandatário, que faz campanha explícita contra orientações de isolamento social, não priorizou a extensão do auxílio financeiro estatal aos mais vulneráveis e adiou a compra de vacinas contra a doença. O presidente ultradireitista foi alvo de panelaços em várias cidades do país.
Besta terça-feira, em concreto, 3.251 mortes foram contabilizadas no Brasil nas últimas 24 horas, totalizando 298.676 óbitos desde o início da crise sanitária, segundo o boletim do Ministério da Saúde. Ainda que a cifra desta terça contenha dados represados durante o fim de semana, quando os laboratórios de diagnóstico fazem menos análise, trata-se de um novo recorde que reflete a pior fase da pandemia no país. O país não apenas é o segundo país com o maior número bruto de mortes —atrás apenas dos Estados Unidos, com 543.196 óbitos—, como também é o único que registra, atualmente, média superior a mil mortes diárias, segundo a plataforma Our World in Data.
Somente os Estados Unidos haviam superado, em dezembro do ano passado, a marca de 3.000 mortes por dia —o México também atingiu essa cifra, em 5 de fevereiro, mas isso porque no dia anterior não havia computado nenhum óbito. Quando os EUA, que possuem 333 milhões de habitantes, chegaram a 3.177 mortes em um dia, isso representou uma taxa de 9,6 óbitos por milhão de habitantes, ainda segundo o site Our World in Data. Ao atingir o recorde de 4.477 mortes em 12 de janeiro, poucos dias antes do republicado Donald Trump deixar o cargo, isso representou 13,53 mortes por milhão de habitantes. Já o Brasil, com cerca de 210 milhões de pessoas, atingiu proporção similar a essa na semana passada, em 16 de março, quando alcançou 2.841 óbitos. Com o novo recorde nesta terça-feira, de 3.251 mortes, a proporção chega a aproximadamente 15,5 óbitos por milhão de habitantes. Portanto, proporcionalmente o Brasil já registrou mais óbitos diários que os Estados Unidos.
O alerta de que o Brasil superaria mais uma marca fora dado mais cedo, com o Estado de São Paulo contabilizando 1.021 mortes em 24 horas, segundo o Governo João Doria (PSDB). O recorde anterior era de uma semana antes, 16 de março, dia em que 679 óbitos foram contados. No Estado mais rico do país, com a maior rede pública e privada de hospitais, praticamente não há vagas para novos pacientes —a taxa de ocupação de leitos de UTI é superior a 91%. A situação é similar —ou até mais dramática— nas demais unidades federativas. Na semana passada, os governadores que os remédios sedativos para a intubação de pacientes em UTIs estavam se esgotando em ao menos 18 Estados e que mais de uma centena de cidades já estavam registrando falta de oxigênio.
Os números do Brasil não colocam o país em uma situação inédita no mundo, uma vez que outras nações já atravessaram períodos similares ou até piores na pandemia, considerado o tamanho de suas populações. Ainda assim, enquanto os principais afetados pelo coronavírus apostaram em rígidas medidas de restrição à circulação, o Brasil segue na direção contrária do que recomendam os especialistas e titubeia ao fazer o mesmo.
Uma tentativa de reduzir danos
O presidente Jair Bolsonaro, que vem promovendo aglomerações e se voltando contra os governadores que tentam levar a cabo algumas —insuficientes— medidas restritivas, buscou retirar os holofotes do novo recorde durante seu pronunciamento na televisão. Ainda que seu tom tenha sido mais moderado que o habitual, tentando demonstrar calma para tranquilizar a população, não tratou do combate ao vírus nem mencionou a possibilidade de um lockdown nacional, medida considerada essencial por especialistas. Ao longo de mais de três minutos, buscou destacar ações relacionadas à compra, distribuição e produção de vacinas. “Não sabemos por quanto tempo teremos que enfrentar essa doença, mas a produção nacional vai garantir que possamos vacinar os brasileiros todos os anos, independentemente das variantes que possam surgir”, disse.
Bolsonaro também destacou que “hoje somos o quinto país que mais vacinou no mundo”, com “mais de 14 milhões de vacinados”, mas omitiu que o número total de imunizados representa pouco mais de 6% da população com ao menos a primeira dose da vacina. A campanha de vacinação avança lentamente e, em termos proporcionais, o Brasil se encontra atrás de mais de 70 países.
O presidente também destacou que seu Governo liberou 20 bilhões de reais para possibilitar “a aquisição da Coronavac, através do acordo com o Instituto Butantan”. Bolsonaro não disse, porém, que o acordo foi assinado pelo Governo Doria em junho e que, nos meses seguintes, promoveu o descrédito da Coronavac, feita em parceria com o laboratório chinês Sinovac, pejorativamente chamada por ele e seus seguidores de “vacina chinesa”.
O presidente também omitiu que ele próprio foi o principal responsável pela demora na aquisição dos imunizantes. Em setembro do ano passado, seu Ministério da Saúde ignorou uma oferta da Pfizer pela negociação antecipada de 70 milhões de doses de vacinas que já poderiam ser aplicadas em janeiro deste ano. Em sua tentativa de mudar a narrativa, Bolsonaro ainda disse que intercedeu pessoalmente nas conversas com Pfizer e Janssen, que planejam fornecer 138 milhões de doses neste ano. Outra vez, omitiu que ele era contrário à assinatura de contrato com a Pfizer por conta de cláusulas que tratavam de responsabilização por eventuais efeitos colaterais.
Poucos dias atrás, no último 18 de março, Bolsonaro voltou a questionar a segurança e a eficácia das vacinas diante de seguidores e pediu que apresentassem um exemplo de país que teve êxito no combate ao coronavírus. Mas aqueles que reduziram o número de casos e mortes são os que apostaram por medidas de restrição à circulação, já que, ao contrário da propaganda presidencial, não há medicamentos nem tratamentos precoces contra a covid-19. O exemplo mais recente é o do Reino Unido, que em 23 de janeiro atingiu o recorde de 18,46 mortes por milhão de habitantes. O país decretou naquele mês um duro lockdown ao mesmo tempo que promovia a vacinação em massa de sua população. Exatos dois meses depois, em 23 de março, o país chegou a 1,25 mortes por milhão de habitantes.
Entre os 10 países com os maiores números absolutos de mortes na pandemia —nesta ordem: Estados Unidos, Brasil, México, Índia, Reino Unido, Italia, Rússia, França, Alemanha e Espanha— o Brasil também lidera a maior taxa proporcional diária. Considerando o período de 16 de março a 22 de março, o país registrou, em média, 10,85 de óbitos por milhão de habitantes a cada dia. Está atrás de outros sete países: Hungria (20,23 mortes), República Tcheca (19,09), Montenegro (16,38), Bosnia e Herzegovina (15,41), Bulgária (14,72), Eslováquia (13,06) e Macedônia do Norte (11,18), segundo o Our World in Data.
Felipe Betim, São Paulo | El País
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