sábado, 6 de março de 2021

O trabalho remoto tem de ser digno

Manuel Carvalho Da Silva | Jornal de Notícias | opinião

O designado trabalho remoto, que a Organização Internacional do Trabalho define, ainda não de forma convencional, como "trabalho prestado à distância, fora da estrutura organizativa física do empregador, na qual o trabalhador se encontra privado do contacto físico com os colegas, por prestar serviço através de novas tecnologias que facilitam esse contacto remoto", inclui o teletrabalho e outras formas de organização do trabalho à distância (a chamada "economia colaborativa"), com realce para as plataformas digitais.

Tudo indica que estas formas de trabalhar tendem a aumentar, mas não sabemos exatamente em que dimensão e em que moldes. Por exemplo, um estudo em curso no CoLABOR sobre a utilização do teletrabalho no contexto da pandemia mostra-nos que dois terços dos trabalhadores portugueses não tiveram nem têm possibilidade de desempenhar, total ou parcialmente, as suas atividades em teletrabalho. E os fatores determinantes para as mudanças no trabalho e no emprego estão muito para além dos impactos das tecnologias.

Sabemos muito bem que grande parte dos trabalhadores envolvidos nas prestações do trabalho à distância estão desprotegidos e que essa desproteção impulsiona o aumento geral das precariedades e da exploração no trabalho; que não se faz a aplicação de disposições legais existentes nem se avança na produção de legislação adequada; que grande parte da "economia colaborativa" tem pouco de colaborativo mas imenso de exploração; que as grandes plataformas digitais fazem brutais acumulações de riqueza pagando mal a imensas pessoas que para elas trabalham e fugindo ao Fisco; que falta proteção social para estes trabalhadores e que uma proteção mal concebida mina os sistemas da Segurança Social e aumenta a precariedade.

Exige-se estudo e reflexão rigorosos - de caráter sociológico, político e jurídico - sobre a extensão e os contornos deste fenómeno nos países, na União Europeia (UE) e no plano global. Esse conhecimento travará a apresentação sistemática de cenários apocalíticos para o trabalho no futuro.

Em qualquer prestação de trabalho (remoto ou não) é obrigatório observar se o trabalho prestado é ou não dependente. Há muito trabalho dependente camuflado de prestação de serviços. Bastava deitar mão do Direito do Trabalho existente e de valores éticos para, em grande parte dos casos, garantir uma relação laboral com vínculo claro. Contudo, também é necessário criar novos instrumentos jurídicos.

É verdade que o tempo e o espaço que estruturavam muitas relações de trabalho estão a ser esbatidos em várias destas novas formas de trabalho, e que a natureza hierárquica existente nessas relações está a ser dissimulada. Mas há outros indícios de laboralidade: em geral, as plataformas digitais, e outras formas de organização do trabalho à distância, são os centros organizativos das atividades prestadas pelos trabalhadores, logo, havendo novos instrumentos políticos e jurídicos, não haverá dúvidas na definição das relações laborais a estabelecer.

No âmbito da Presidência portuguesa da UE realiza-se, na próxima terça-feira, uma "Conferência de alto nível" sobre "Trabalho remoto: Desafios, riscos e oportunidades". Oxalá haja um mínimo de coragem para uma abordagem séria destes problemas e compromissos para travar os caminhos da precariedade e da desregulação.

*Investigador e professor universitário

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