terça-feira, 23 de março de 2021

Portugal | Pergunta para 110 milhões de euros

Mariana Mortágua* | Jornal de Notícias | opinião

Nos últimos dias, EDP e Governo desdobram-se em comunicados acerca do negócio da venda de seis barragens ao consórcio Engie. Mas ambos deixam sem resposta a pergunta que mais conta: por que não pagou a EDP os 110 milhões que deve de Imposto de Selo sobre a venda?

Para não pagar, a EDP desenhou um esquema: cindiu as barragens para uma nova empresa dentro do grupo EDP e depois vendeu as participações sociais dessa nova empresa a uma outra, detida pela Engie. Mas este esquema tem as suas dificuldades.

Primeira dificuldade: para estar isenta de impostos, aquela cisão teria de ser alvo de uma reestruturação fiscalmente neutra. É falso que o seja, mas é isso que a empresa alegará.

A EDP preocupou-se então com um segundo obstáculo: mesmo em caso de reestruturação fiscalmente neutra, a lei não isenta de Imposto de Selo a transmissão de concessões de barragens. Aqui chegada, a EDP procura apoio numa Diretiva europeia que permite aos estados isentarem de impostos a "transmissão de estabelecimento". Ora, é claro que um estabelecimento não é igual a uma concessão do Estado, mas a EDP alega que os contratos de concessão, por trazerem associadas estruturas e obrigações, podem ser considerados estabelecimento.

De qualquer modo - terceiro obstáculo -, essa Diretiva não tem aplicação direta em Portugal. O que vale é a lei portuguesa, que transpôs a Diretiva, onde não constava a isenção da transmissão de estabelecimento. É então que o Governo, em 2020 e com o negócio já em marcha, avança uma alteração àquela lei. Mesmo a calhar.

Agora, perante a indignação gerada pelo caso, o Governo argumenta que a alteração legal não se aplica à venda de concessões de barragens, o que é verdade. O problema é que, se a fictícia reestruturação criada pela EDP for aceite, a alteração legal encaixa que nem uma luva nas suas pretensões.

Pode ser apenas uma infeliz coincidência. Mas essa coincidência deve ser iluminada por um facto: o ministro Matos Fernandes estava alertado, desde setembro de 2020, para o risco de esquema de fuga fiscal neste negócio, que se realizou em dezembro. Apesar disso, limitou-se a autorizar o esquema.

O primeiro-ministro diz que não havia nada a fazer, que toda a responsabilidade cabe à Autoridade Tributária na fiscalização a posteriori. Errado. As regras legais para a venda de uma concessão pública permitem que o Estado imponha condições. O Governo só não impediu que o negócio se fizesse assim porque não quis, embora conhecesse em detalhe a fuga fiscal que se preparava.

Agora, bem pode António Costa mandar a Autoridade Tributária enfrentar o batalhão de advogados da EDP em tribunal. A irresponsabilidade do Governo está provada. Sobram pesadas suspeitas que devem ser investigadas.

*Deputada do BE

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