Pedro Gomes Sanches | Expresso | opinião
Passam hoje, 10 de Maio (ontem), 88 anos sobre o início do que ficou conhecido como a Bücherverbrennung (a queima de livros), levado a cabo pelos nazis. Graças a Deus e a Sir Winston - que, já agora, foi nomeado Primeiro-ministro britânico também no dia de hoje há 81 anos - estes bárbaros foram vencidos. O que não foi vencida foi a tendência natural da espécie humana para o declínio
Esta semana ficámos a saber que na Califórnia os alunos mais dotados a matemática vão ser desencorajados de matricular-se em turmas mais avançadas. Em nome da equidade, parece. O raciocínio é linear: se há uns que vão mais depressa, diminui-se-lhes a marcha para acompanharem a média. Estes progressistas dos tempos modernos não querem uma sociedade mais justa e evoluída, querem uma sociedade que acomode a sua idiotia e premeie a sua preguiça. Se o leitor pensa que por cá estamos imunes a este vírus que ataca as sinapses neuronais, pense duas vezes: quando partimos para o segundo confinamento, Tiago Brandão Rodrigues, que foi incompetente a dotar de computadores todos os alunos, impediu as aulas a distância dos que estavam preparados para os conformar com os que não estavam. Repito: idiotia e preguiça.
Na semana anterior, soubemos que Blake Bailey, o biógrafo, mais que autorizado, escolhido por Philip Roth, foi cancelado pelo editor. Porque a biografia que escreveu é uma trampa? Não, por causa de pecados alegadamente cometidos na década de 90 do século passado. "Se aplicarmos esse padrão em grande escala, haverá milhares de livros de fanáticos, misóginos e malfeitores que poderiam ser retirados de circulação por esse motivo", disse Suzanne Nossel, activista da liberdade de expressão. Suzanne, querida, guarde as pérolas para o pescoço, os porcos não estão interessados nelas.
Não, portanto, a despropósito, vale a pena recordar que passam hoje, 10 de Maio, 88 anos sobre o início do que ficou conhecido como a Bücherverbrennung (a queima de livros), levado a cabo pelos nazis. Terão sido queimados mais de 20.000 livros impuros. De autores impuros. Definição de impuro? "Não alemães". Corrijo: "não alemães", no sentido que os fanáticos da altura lhe quiseram dar. De Mann a Brecht, de Einstein a Marx, o que não faltou na fogueira foram alemães "não alemães". Com a presença das autoridades e o silêncio cúmplice da opinião pública e de intelectuais, associações de jovens estudantes entregaram-se à compita de zelo, para ver quem queimava mais.
Há três coisas a reter desta purga: a pureza é sempre excludente, a sua busca obsessivamente zelosa e os seus obreiros acriticamente diligentes. É excludente, porque visa extirpar tudo o que divirja da conformidade ideológica dominante. Qualquer tergiversação da norma, não só intelectual mas também identitária, deve ser removida sob pena de conspurco dos puros. É zelosa, porque imbuídos dessa ilusão purificadora, tende a ver imperfeições e perigos em todo o lado. Neste caldo, se algo suscita dúvida, o melhor é erradicar. E tudo isto às mãos de prosélitos diligentes, ávidos de confirmação, esperançosos de promoção. Há lá coisa mais actual, não é verdade?
Graças a Deus e a Sir Winston - que, já agora, foi nomeado Primeiro-ministro britânico também no dia de hoje há 81 anos - estes bárbaros foram vencidos. O que não foi vencida foi a tendência natural da espécie humana para o declínio: podemos tirar a sociedade da barbárie, mas não podemos tirar os bárbaros da sociedade.
E quem são os bárbaros hoje, pergunta o estimado leitor? Returco: quer mesmo fazer a pergunta assim? É porque a lista é capaz de não caber no espaço deste artigo. Na verdade não há semana sem cancelamento: ou veganos que se sentem ofendidos por quadros com peças de caça e lá se vai o Frans Snyder da cantina de Cambridge, ou negros que se sentem ofendidos por vozes não suficientemente negras e lá se vai a Marieke Lucas Rijneveld, ou transgenders melindrados e lá se vai a JK Rowling, ou preguiçosos que não querem estudar e lá se vai Homero e Virgílio do curriculum de Estudos Clássicos em Oxford, ou semi-analfabetos que não se sentem adequadamente incluídos e lá se vai a gramática e a ortografia em Hull, ou sapateiros a tocar rabecão e lá se vai David Hume.
O que é que há de comum nisto tudo? Para lá do cancelamento furioso e da inebriação ideológica? Desde logo uma derrogação violenta do processo de conhecimento que nos trouxe do obscurantismo à ciência: o somatório progressivo de saber, a refutação pela razão e o espírito liberal de discussão de ideias e de aceitação do outro. Depois, a aniquilação do passado, substituindo a tradição pela euforia autoritária do momento. Finalmente, a morte da santidade cristã: não há, nestas narrativas feitas actos, margem para a redenção; todos os santos pecadores do passado ficariam condenados e congelados no seu pecado. Às mãos dos puristas woke, não há expiação possível: só vale o juízo do presente e a penitência sem redenção dos actos do passado. “Desde que decidiu ocupar o lugar de Deus, o homem tem-se mostrado, de longe, o mais cego, o mais cruel, o mais mesquinho e o mais absurdo de todos os falsos deuses.” A frase não é minha e não é de agora, é de Thomas Merton e é de 1966.
Como dizia o velho Nelson: "os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos." E, se não bastasse, têm cada vez mais poder.
Sem comentários:
Enviar um comentário