Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Perdidos no tempo, sensação intruja de que as coisas se sucedem com sentido, que estamos em controlo, que somos poder. Que mandamos no devir, que ele se submete, faz figas e nós desatamos, dá nós mas nós desfiamos. Omnipotentes seguimos, sempre a lembrar-nos, queridos, da nossa pequenez. De como somos formigas no universo, vírgulas no tempo, lapsos que preenchem frestas. Nunca desarmamos de tão humildes. Passou o dia em que nos despedimos de um ano marcante e anónimo, repleto de coisas que não foram feitas e outras que se perderão para sempre. Hoje são só despedidas e votos. O último dia foi ontem.
Tenderemos a sair da nossa vida aos fascículos para viver uma vida inteira? Acumular memórias pode ajudar na tomada de decisões. 2022 será um ano resolutivo, estupendo para falhanços, milagres e júbilos oriundos das mais diversas proveniências. Família, emprego, sociedade, eleições, normalidade ou o que resta dela, a crise. As respostas que temos à mão são, curiosamente, eternas e insatisfatórias. Produtos de suposições, das variantes e da fé, dos imbecis e dos enganados, soluções gratas pela demarcação das conspirações e dos conspiradores e teólogos da destruição pelos "chips", o que vamos dizer e contrapor no ano novo é um refugo velhinho e acabado, reciclado das piores espécies destes últimos meses. Ou a natureza nos livra do mal ou continuaremos a repartir o mundo entre os bons e os maus, dividindo-o entre a espécie humana e uma subespécie de gente que focinha entre teorias. Que bondoso seria deixar as trincheiras e sair disto melhor. Lamentavelmente, se isto acabar, a que nos vamos agarrar para continuar a negar que somos todos da mesma gente? A nova divisão será pior, ensandecida, ainda mais viral e pesará com mais gravidade. E continuaremos convencidos, à partida, que o amor vence.
"E como foi o teste?", a interrogação apressa-se a substituir o já longínquo "como tens estado?". De certa forma, a nova tomada de perspectiva sobre o bem do outro é mais abrangente porque, derivando igualmente do interior, apresenta chancela médica. Gravamos hoje os derradeiros minutos, celebramos, apertamos as mãos entre a indecisão de como se faz, como se só soubéssemos o que fazer depois do outro nos mostrar como. Uma miríade de sinais para garantir que estamos juntos, que vamos ficar bem, que o pior já passou, derivações sobre a falta que faz o abraço. Estamos entregues ao requinte de não termos de escolher senão entre os próximos. Os que estão mais perto. Igualmente bem de saúde, obrigado. Agradecemos sempre. Sempre.
-- O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e jurista
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