segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Argentina | O REGRESSO NEFASTO DO FMI

Os limites do “progressismo” argentino

# Publicado em português do Brasil

Claudio Katz [*] | em Pátria Latina

Resumo

O governo legitima o roubo e a renegociação eterna de um passivo impagável. Aceita inspeções que condicionam a política económica e obstruem a redistribuição do rendimento.   Promete sem fundamentos cortar o défice sem ajustamento e incentiva um aperto monetário que afeta a continuidade do crescimento.   As mini-desvalorizações e os aumentos tarifários minam a redução da inflação e o aumento previsto das reservas não é compatível com a fuga de divisas.  O FMI tem sido responsável por todos os pesadelos financeiros.   Asfixiou a administração de Alfonsín, provocou o colapso de 2001 e monitorou a devastação de Macri.   O governo desperdiçou um contexto favorável para alavancar a reativação, isolar a direita e forjar uma frente latino-americana de resistência aos credores.   A batalha no Congresso e nas ruas acaba de começar.

Finalmente, o governo assinou um acordo com o FMI que valida a dívida fraudulenta contraída pelo [ex-presidente] Macri [NR]. Fernández adoçou o anúncio com a promessa de evitar ajustamentos e sugeriu que esta é a melhor opção possível. Mas ele rejeitou as alternativas a uma tal rendição e esqueceu que o país nunca saiu airoso de tais compromissos.

LEGITIMAÇÃO DE UM ROUBO

O acordo legaliza as irregularidades de um empréstimo que violou todas as regras do FMI e financiou a fuga de capitais, sem contribuir com um único dólar para as empresas produtivas. Todas as denúncias oficiais desta fraude são agora arquivadas e os processos judiciais contra os funcionários da Cambiemos tornam-se sem sentido. Não é verdade que “Fernández resolve o problema gerado por Macri”. O presidente ratifica os ultrajes do seu antecessor e endossa o endividamento forçado das próximas gerações.

O presidente indicou algumas precisões do que foi acordado para os próximos dois anos e meio, mas nada disse sobre o cenário futuro. A partir de 2025, todo o fardo dos 45,5 mil milhões de dólares devidos ao Fundo irá reaparecer. Nessa altura, a impossibilidade de pagamento e a consequente obrigação de concluir outro acordo mais oneroso ressurgirá.

Por esta razão, [o ministro da Economia] Guzmán desta vez deixou de lado o seu termo preferido de “acordo sustentável”. Concertou um expediente imediato que adia o problema, repetindo o atraso já negociado com os detentores privados de obrigações. Concordou com uma trégua relativa para o próximo biénio, que mantém ativada a bomba de um endividamento explosivo.

Se o adiamento funcionar, no final do período de carência, a mesma montanha de maturidades não pagáveis terá de ser enfrentada. Os 20 mil milhões de dólares por ano exigidos pelo Fundo também não aparecerão no futuro. Nessa altura, o FMI estará de volta com as suas exigências familiares de reforma do trabalho e das pensões. Guzmán gaba-se de ter conseguido a eliminação destes ultrajes no acordo atual, mas esconde o facto de que eles ressurgirão no próximo refinanciamento.

Alguns funcionários argumentam que o país poderá negociar com mais força dentro de dois anos. Mas não explicam como irá emergir a capacidade redobrada da Argentina para fazer frente ao Fundo. Os inspectores do Fundo já estarão confortavelmente instalados no Ministério da Economia e no Banco Central e a grande carta da ilegitimidade do passivo terá sido perdido.

No futuro, nenhum funcionário poderá opor-se à fraude que está atualmente a ser validada. Não poderão alegar a responsabilidade de Macri, Trump e Lagarde num crédito ratificado por Fernández, Biden e Giorgieva.

Todas as denúncias de um passivo odioso irão para o caixão das memórias. O mesmo acontecerá com os pedidos de intervenção da ONU e do Tribunal Internacional de Justiça, para que declarem a nulidade de uma operação financeira irregular.

Fernández repete a mesma aceitação da fraude assumida por todos os governos das últimas quatro décadas. Esta sucessão de ratificações transformou o endividamento numa inundação impossível de gerir. Pela enésima vez uma administração progressista branqueia os atropelos do seu antecessor de direita, com a mesma repetição da divisão do trabalho. O passivo escandaloso assumido pelas equipas económicas ortodoxas é abençoado pelos seus pares heterodoxos.

Enquanto o país assume a responsabilidade do roubo, os funcionários do FMI suspiram de alívio. Transformaram a Argentina no maior devedor da organização e não terão de explicar por que razão nenhuma outra nação enfrenta tal situação. Os outros dois pagadores pendentes (Egito e Iraque) devem montantes incomparavelmente mais baixos.

A mesma ajuda oficial é estendida aos grandes capitalistas locais, que transformaram o dinheiro concedido pelo FMI em contas próprias depositadas no estrangeiro. A investigação já realizada pelo Banco Central identificou os beneficiários desta fuga, que naturalmente aprovam a validação da sua manobra. As principais entidades do estabelishment já anteciparam o seu apoio entusiástico ao acordo.

Guzmán tinha na sua secretária a lista completa dos que assim enriqueceram e congelou a investigação. Nem sequer permitiu a verificação cruzada com os registos da AFIP, para avaliar se os dólares expatriados foram declarados às autoridades fiscais.

Os funcionários só emitiram vagos pedidos de colaboração ao FMI, para que este contribuísse para a recuperação dos dólares escondidos nos paraísos fiscais. Obviamente, o principal cúmplice no roubo não forneceu qualquer informação e o engavetamento da investigação antecipou o acordo propiciado por Washington.

UM CORTE SEM AJUSTE?

O governo substituirá o crédito subscrito por Macri por outro que refinancia o incumprimento desse empréstimo. O FMI assegura para si a cobrança da dívida com o prolongamento dos prazos e a custódia da política económica. Esta auditoria será realizada através de dez revisões trimestrais, que garantem ao Fundo uma estratégia de a cogestão durante os próximos mandatos presidenciais.

Guzmán apresenta esta reinstalação do FMI como um passo “razoável” que contribuirá para reduzir a “incerteza”. Mas omite o facto de que esta ingerência irá reativar o desprezo pelo país demonstrado por todos os emissários do Fundo, nos 22 acordos subscritos nas últimas seis décadas. Enquanto Giorgieva faz uma cara de circunstância e compartilha mensagens indulgentes com o Papa Francisco, os diretores reais da organização (David Lipton, Ilan Goldfajn) são velhos cúmplices de Macri, os quais exigem uma grande cirurgia da Argentina.

Foi por isso que demoliram todos os apelos à benevolência. Rejeitaram a possibilidade de anulação ou renúncia do capital em dívida e também a conversão dos passivos em obrigações climáticas ou a extensão dos prazos de vencimento para 20 anos. Até mantiveram a cobrança de uma sobretaxa insólita pelo volume exorbitante do crédito que eles próprios colocaram. Além disso, vetaram a eventual concessão de fundos adicionais por outros membros da instituição.

Guzmán dissimula esta dureza elogiando os quatro compromissos acordados com o FMI para os próximos dois anos e meio. Em primeiro lugar, destaca a redução do défice orçamental, que o governo propunha situar em 3,3% do PIB para o ano em curso e finalmente que se situará nos 2,5%. Em 2023 deverá ser de 1,9% e em 2024 de 0,9%.

Estas diminuições têm sido a grande bandeira da ortodoxia de direita, que coloca a principal desgraça da economia argentina na despesa pública. Guzmán sempre proclamou o oposto, mas agora descobre os méritos destes cortes. Afirma que estes cortes terão efeitos virtuosos, uma vez que, em vez de se basearem em ajustamentos das despesas, surgirão do aumento das receitas provenientes do crescimento e da tributação.

Mas na gestão dos últimos meses não prevaleceu este critério, razão pela qual o surto pandémico foi privado do subsídio correspondente (IFE). Além disso, o pacto fiscal negociado com os governadores e o frustrado projeto de orçamento para 2022 foram concebidos com cortes, a fim de cumprir o Memorando de Entendimento exigido pelo FMI.

Guzmán apresenta igualmente o que aconteceu no último trimestre de 2021 como um exemplo de redução das despesas devido ao crescimento e à tributação. Nesse período, as receitas do Estado aumentaram significativamente, uma vez que a economia recuperou para compensar a queda anterior (10%).

O ministro generaliza estes dados para o futuro e afirma que não haverá qualquer ajustamento em itens relevantes (tais como obras públicas ou ciência e tecnologia). Mas não esclarece que taxa de crescimento e de cobrança de receitas seria necessária para alcançar a redução drástica do défice a que se comprometeu para os próximos dois anos.

As percentagens desta redução foram acordadas com o FMI, mas não os números que permitiriam a redução. Ainda não foi estabelecido quanto é que os salários irão aumentar, quanto é que as pensões irão recuperar ou quanto é que a pobreza irá diminuir e o PIB irá aumentar. Embora estes números sejam magnitudes a serem revistas, o corte do défice foi rigorosamente pré-estabelecido. Os auditores do Fundo estarão presentes para monitorar esse cumprimento.

O segundo compromisso oficial é a redução do financiamento fiscal através da emissão monetária. Este corte começou em 2020 (7,3%), concretizou-se no ano passado (3,7%) e irá intensificar-se de forma fulminante em 2022 (1,00%), 2023 (0,6%) e 2024 (0%). Com este cronograma, o grande objetivo da ortodoxia, que é a emissão zero, seria alcançado. Os monetaristas sempre fantasiaram em recuperar a economia, simplesmente sugando o dinheiro em circulação.

Agora Guzman adopta este programa e promete reintroduzir taxas de juro reais positivas a fim de preparar o caminho para a disciplina monetária. Afirma ele que isto irá consolidar um mercado para o financiamento da despesa pública em pesos, o que irá compensar a marginalização contínua da Argentina do mercado internacional de crédito.

Mas o ministro omite os problemas bem conhecidos das gigantescas emissões locais de obrigações. Com estas colocações, os bancos são induzidos a especular com o crédito público, em detrimento do financiamento da indústria, agricultura ou serviços. É difícil compreender como o crescimento elevado poderá ser sustentado com taxas de juro positivas que desencorajam o investimento produtivo.

TARIFAS E DÓLAR NAS LETRAS MIÚDAS

O terceiro compromisso acordado com o Fundo é a redução da inflação para facilitar o superávit fiscal e a compra oficial dos dólares destinados ao FMI. Guzmán salienta que o FMI aceita agora a natureza multi-causal e não apenas monetária dos aumentos de preços. Mas omite que esta concessão retórica não tem consequências práticas. Os inspectores de Washington apenas verificarão se a inflação desce com o corte na emissão e as elevadas taxas de juro.

O ministro também afirma que combaterá a carestia com o instrumento heterodoxo dos acordos de preços. Mas esquece que estes acordos falhados persistiram sob toda a variedade de ministros neoliberais (como os de Macri).

Com a auditoria do FMI, a erosão destes controlos irá aumentar. O Fundo aspira a cobrar os seus créditos com os dólares trazidos pelas exportações e para incentivar estas vendas promove a transferência dos preços internacionais dos alimentos para o mercado local. Como também promove um grande aumento de tarifas, o acordo irá aumentar o custo dos preços dos alimentos, que já tem um piso de 50% por ano.

O aumento das tarifas (tarifazo) está incluído na letra miudinha do acordo e incluirá um desdobramento de preços, para encarecer o serviço aos sectores de rendimentos alto e médio. Os lucros das companhias de eletricidade, telefone ou gás continuarão a ser um mistério insondável para a maior parte da população.

O quarto compromisso com o FMI é a recomposição da paridade cambial. O governo promete evitar uma mega-desvalorização, mas concorda em acelerar o ritmo da desvalorização do peso a fim de intensificar a acumulação de reservas, que o Fundo vê como uma garantia de cobrança. Já estabeleceu o objetivo de recolher 5 mil milhões de dólares nos cofres do Banco Central até 2022. Mas ninguém explica como irão atingir este objetivo.

No ano passado, foi alcançado um superávit comercial de 14 mil milhões de dólares e não há um único dólar nas reservas disponíveis do banco central (BCRA). Mesmo que os pagamentos sejam adiados por dois anos e meio, não há forma de aumentar o resseguro da moeda estrangeira se a fuga de capitais persistir.

O pico desta evaporação verificou-se sob Macri e persistiu no último biénio. O mecanismo financeiro dessa erosão foi substituído por modalidades equivalentes, na gestão do comércio externo, por um punhado de grandes empresas. Essa drenagem poderia ser cortada através de regulações drásticas que o FMI vetará.

Os auditores do FMI exigirão apenas aumento de exportações, com a consequente precarização da economia. Este rumo inclui empreendimento destrutivos do ambiente, que o governo intensificou nos últimos meses (exploração petrolífera offshore, mega mineração em Chubut).

Em suma: ninguém sabe por agora que ajustamento será necessário para cumprir os compromissos fiscais, monetários, inflacionistas e cambiais do governo. Mas á está à vista o cenário de maior vulnerabilidade e dependência que geram estas obrigações.

EXPERIÊNCIAS DEMOLIDORAS

Alguns funcionários propagam a miragem de “um grande êxito para o país”, com as mesmas fantasias que acompanharam todos os acordos anteriores. Auguram um grande crescimento com redistribuição sob a égide do FMI, esquecendo o que aconteceu durante os últimos três desembarques do Fundo.

Sob a administração [do ex-presidente] Alfonsín, foram assinados cinco acordos com o FMI. Os inspectores reviam as contas e emitiam veredictos periódicos de incumprimento das metas pactuadas. Para enfrentar os tremores cambiais e inflacionários que geravam essas avaliações, os ministros ajustavam os seus planos, enquanto o Fundo administrava a conta gotas o refinanciamento dos vencimentos.

Alfonsín finalmente atirou a toalha em meio à hiperinflação e o FMI propiciou a vinda de um presidente com a mesma mentalidade. Aprovou diretamente a conspiração patrocinada pela Cavallo e o boicote a um crédito final que abriu caminho para a presidência de Menen.

Nos seus recentes discursos, [a vice-presidente] Cristina [Kirchner] recordou estes episódios sem tirar quaisquer conclusões do que aconteceu. O seu co-governante Alberto ficou preso no mesmo labirinto que asfixiou Alfonsín. Fernández a cada três meses receberá a visita dos chantagistas terá de ser aprovado no exame.

Se a história se repetir e os inspectores não ficarem satisfeitos, o FMI procurará um substituto. A agência é especializada em pescoço dos governos progressistas. Empurra-os a efetuar o trabalho sujo que desmoraliza a população e facilita o regresso dos neoliberais à Casa Rosada.

Mas o Fundo não tem sido mais acomodatício com os presidentes de direita que fracassaram na aplicação das suas receitas. O FMI patrocinou a convertibilidade no auge do neoliberalismo e tutelou a liberalização do comércio, a flexibilização do trabalho e as privatizações que precipitaram a degradação económica dos anos 90.

Durante o mandato de De La Rúa, ele promoveu reformas das pensões e do trabalho juntamente com o programa de défice zero. Quando a economia entrou em colapso, encorajou um maior endividamento e, perante a impossibilidade de pagar estas responsabilidades, impôs os dois salvamentos que precipitaram o colapso de 2001 (“blindaje” e “magacanje”). Os técnicos do Fundo atingiram o recorde de triplicar a dívida em apenas dois anos.

Aqueles que agora celebram o Memorando que Guzmán está a preparar deveriam recordar como terminaram os dois famosos salvamentos do FMI, que desencadearam o fim da convertibilidade, o incumprimento, a corrida cambial, o corralito e a pesificación assimétrica.

A experiência Macri é mais recente e ninguém esqueceu como o Fundo alavancou um endividamento louco para sustentar a maior bicicleta financeira da história contemporânea. A Argentina foi a principal tomadora de empréstimos do mundo para o mero benefício dos financistas, que lucravam com as altíssimas taxas de juro oferecidas pelo Estado.

Os ministros da Macri naufragaram na implementação de algumas receitas que Guzmán agora põe outra vez à tona (redução do défice, emissão zero), mas com o empréstimo-socorro enviado por Trump conseguiram passar o problema para o atual governo. Como os diretores do Fundo são peritos em culpar os outros pelos seus próprios desastres, emitiram uma crítica à Macri pelas medidas que eles promoveram. Com esta demonstração de hipocrisia, fogem às suas próprias responsabilidades.

Os macristas também escondem a confusão que consumaram e prometem resolver o fardo da dívida, com a mesma velocidade com que Macri augurava o fim da inflação. Essa administração refutou a crença ridícula de que os governos de direita gerem mais seriedade ou contam com peritos para lidar com as complexidades das finanças.

Nas últimas décadas, o FMI foi o principal culpado pelas desgraças financeiras da Argentina. A crença generalizada de que os problemas “são nossos” são totalmente falsos. O Fundo tem estado diretamente envolvido em todos os nossos pesadelos sem nunca assumir as consequências dos seus fracassos.

Tão pouco assumiu a responsabilidade pelas voltas que os seus gestores encorajaram. Apoiaram a convertibilidade e a desvalorização, o choque dos ortodoxos e o resgate dos heterodoxos, o endividamento dos neoliberais e os pagamentos dos progressistas. A Argentina habituou-se a gerir a sua economia sob um leme fondomonetarista, que afundou o país reiteradas vezes. Não há nenhuma razão para esperar um desenlace diferente do novo acordo.

OUTRO CAMINHO É FACTÍVEL

Muita gente oficialista entende que o acordo é um compromisso indesejado, mas inevitável no cenário atual. Com esta postura de resignação incorporaram os argumentos da direito, que equiparam a resistência ao Fundo ao abandono do planeta.

Afirmam que o FMI é um “banco do mundo” que associa todos os países do orbe. Mas esquecem-se que o escandaloso crédito à Macri não foi aprovado por essa comunidade. Irrompeu de repente mediante uma simples chamada telefónica de Trump. Os Estados Unidos não só são o principal acionista com poder de veto na organização, como também gerem todas as decisões estratégicas da instituição. O braço de ferro é com Washington e não com “o mundo inteiro”. Para recuperar a soberania económica, esta tensão deve ser assumida.

O medo da disputa com o Norte cegou o governo na hora de avaliar outras alternativas. Não só descartaram uma cessação ordenada de pagamentos, muito afastado do incumprimento periódico imposto pelo esgotamento das reservas. Também rejeitaram os rumos mais cautelosos sugeridos por alguns membros da coligação oficial.

Era possível atrasar os pagamentos a fim de prolongar a negociação, ou cancelar os juros sem pagar o capital, ou procurar algum status quo de congelamento das negociações. Mas sob a pressão dos financiadores no mercado cambial, o governo aceitou um pacto de rendição.

Com essa decisão, perdeu a oportunidade de aproveitar a reativação da economia para enveredar por outro caminho. Se esta expansão incubar um ciclo altista (que vai além de uma simples recuperação), renunciou-se a introduzir uma redistribuição do rendimento, num contexto de retoma do PIB.

Com uma reforma fiscal progressiva, o controlo estatal do comércio externo e a gestão direta do sistema financeiro, esta reativação poderia estar ligada a uma forte melhoria dos salários e do emprego. O regresso do FMI impedirá que este projeto seja discutido, porque o governo cedeu um poder de veto aos inimigos das conquistas sociais.

O oficialismo também desperdiçou o contexto de divisão e de perda de iniciativa que está a afetar a direita neste momento. A oposição não conseguiu chegar a acordo sobre uma resposta ao dilema colocado pelo FMI. Um sector propõe acompanhar o governo nos seus cortes ao longo dos próximos dois anos, enquanto o outro está a pressionar pela confrontação a fim de assegurar a base eleitoral do próximo presidente do Cambiemos. Nenhum dos dois grupos definiu como iria gerir a futura renegociação do acordo.

A Frente de Todos poderia aproveitar o desprestígio de Macri para forjar uma ampla frente de rejeição do FMI. Não o faz porque tem mais afinidades com os seus adversários do que com as correntes populares que se opõem ao Fundo.

A resignação que prevalece no governo também o impede de registar a grande mudança política da América Latina. Esta mudança poderia fornecer apoio continental à confrontação com o FMI. O ano passado encerrou com três vitórias eleitorais para o progressismo (Peru, Chile e Honduras) e em 2022 há uma boa probabilidade de uma vitória no Brasil e possibilidades de uma agradável surpresa na Colômbia. O assédio imperial à Venezuela continua a fracassar e a investida da direita na Bolívia naufragou.

O próprio Alberto Fernández foi ungido presidente de um organismo regional que exclui os EUA e rivaliza com a OEA (CELAC). Além disso, já circulam contundentes pronunciamentos do presidente mexicano contra a asfixia financeira imposta à Argentina pelo FMI. O país não enfrenta, portanto, o isolamento adverso que a Grécia, por exemplo, sofreu na Europa, quando o FMI introduziu o terrível ajustamento de que o povo grego ainda sofre.

Por outro lado, a Argentina não é a única vítima regional das cobranças compulsivas do Fundo. O Equador suporta plenamente os efeitos de um refinanciamento que reduz os salários e encarece os combustíveis. A Costa Rica, por sua vez, sofre as consequências de um acordo que corrói o sistema de Segurança Social. Fernández poderia retomar as campanhas regionais contra a dívida das últimas décadas, mas não pode pedir apoio para uma ação judicial que ele próprio arquiva.

O contexto internacional também difere dos momentos de maior iniciativa imperialista e de unipolaridade dos EUA. A própria viagem de Fernández à Rússia (em pleno conflito da Ucrânia) e à China (para um evento boicotado por Washington) ilustra a existência de um quadro conducente à rejeição da submissão ao Fundo.

Basta contrastar o tipo de crédito para fins produtivos que se gere em Pequim (infraestruturas, centrais nucleares, barragens, modernização ferroviária) com a burla financeira que o FMI monitorou para corroborar a natureza nociva do novo acordo assinado com o Fundo.

As consequências geopolíticas deste acordo também terão de ser vistas. Aumentarão certamente a pressão dos EUA sobre a Argentina para que abandone as ambiguidades da sua política externa e se amolde ao roteiro do Departamento de Estado. Biden terá agora embaixadores adicionais no Ministério da Economia e no Banco Central. Ele irá utilizá-los para exigir contrapartidas políticas para a indulgência destes auditores. Uma antecipação deste rumo já surgiu no acompanhamento argentino às recentes sanções votadas em Genebra contra a Venezuela.

RECUSA E MOBILIZAÇÃO

O Parlamento e as ruas serão as próximas arenas para a disputa sobre o acordo com o FMI. A esquerda já antecipou a sua oposição frontal e está a patrocinar uma ampla convocatória para sustentar este questionamento com a mobilização popular. Há muitos sinais de uma maior predisposição para esta luta, mas um movimento de rejeição em massa do FMI ainda não irrompeu.

A grande tradição nacional de resistência ao Fundo continua viva, mas o governo e a ala direita semearam o medo de retomar essa batalha. As burlas dos banqueiros são conhecidas e a cumplicidade do FMI é bem conhecida, mas muitos sectores internalizaram a crença de que é melhor manter a cabeça baixa e aceitar o mal menor. Confrontar esta atitude é a grande tarefa do momento.

Há evidências de um clima mais propício para desenvolver esta luta. Basta comparar as críticas que já afloram contra o acordo, com a ausência de questionamento à troca de papéis com os detentores privados de obrigações, para notar a mudança de percepções.

O ressurgimento de palavras de ordem e mobilizações contra o FMI contribuíram para esta recolocação. As campanhas dos partidos de esquerda e da Autoconvocatoria por la suspensión del pago e investigación de la deuda já resultaram em atos impactantes bem participados.

O comício de meados de Dezembro na Plaza de Mayo foi ignorado pela imprensa, mas contou com uma elevadíssima participação. Competiu em números com o ato realizado pelo governo no dia anterior no mesmo local. As comemorações do 20º aniversário da rebelião de 2001 centraram-se também na denúncia do papel desempenhado pelo FMI nessa crise.

Por outro lado, a capitulação oficial desencadeou fortes críticas por parte dos sectores radicalizados do kirchnerismo. Estas correntes terão agora de definir o seu voto no Congresso. Não haverá lugar a ambiguidade, e a convergência com a esquerda numa rejeição comum constituiria um grande avanço para a causa popular.

O governo estendeu uma mão à direita para que vote o Memorando e a Carta de Intenções. O FMI facilita este apoio partilhado, mas se a rivalidade prevalecer e o racha reaparecer, haverá um fogo de artifício entre as duas bancadas que avalizam o retorno dos inspetores do Fundo.

O pré-acordo com os credores já está assinado, mas a batalha para o tornar efetivo acaba de começar. Convém recuperar a memória de todos os estragos causados pelo FMI para impedir outra repetição da mesma desgraça. A rejeição do acordo é o primeiro passo de uma longa batalha contra o inimigo em série do povo argentino. Com atitudes firmes, ideias convincentes e força nas ruas, o caminho da resistência ao Fundo será reaberto.

[NR] Ver Macrì: Orígenes e instalación de una dictadura mafiosa , de Jorge Beinstein (para descarregar clique com o botão direito do rato e faça Save As…, 593 kB).

[*] Economista, investigador do CONICET, professor na UBA, membro da EDI. O seu sítio web é: www.lahaine.org/katz

O original encontra-se em katz.lahaine.org/el-nefasto-regreso-del-fmi/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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