segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Matar Cuba à fome é mais como administrar tortura que o caminho para a liberdade

* Publicado em português do Brasil

David Adler* | Carta Maior

“Não há embargo a Cuba.” Essa afirmação petulante – feita pelo senador da Flórida Marco Rubio no plenário do Senado dos EUA em julho passado – rapidamente se tornou sabedoria convencional nos corredores do Congresso dos EUA e em meio à base de apoio de Rubio na diáspora cubana. O bloqueio dos EUA é um mito, um bicho-papão para o Partido Comunista de Cuba. “Cuba não está isolada”, disse Rubio. Aqueles que dizem o contrário ou “não sabem do que estão falando… ou são mentirosos. Essas são as duas únicas opções.”

Aqui em Havana, porém, não como se ignorar os efeitos isoladores do embargo dos EUA. Metade das docas está vazia: os EUA proibiram todos os navios de cruzeiro, intercâmbio cultural e delegações educacionais que já foram responsáveis por impulsionar a maior indústria da ilha. As filiais da Western Union estão fechadas: os EUA proibiram todas as remessas de dinheiro através de empresas cubanas e suas afiliadas para milhões de famílias cubanas que dependem de assistência do exterior. Os estoques de suprimentos hospitalares estão abaixo do nível adequado: o embargo dos EUA proibiu a exportação de tecnologia médica com componentes dos EUA, levando a uma escassez crônica de medicamentos de venda livre. Até mesmo a internet é uma zona de isolamento: o embargo dos EUA significa que os cubanos não podem usar Zoom, Skype ou Microsoft Teams para se comunicar com o mundo exterior.

Em suma, o embargo dos EUA afeta todos os aspectos da vida na ilha – e esse é precisamente o ponto. Sessenta anos atrás, neste dia (3/2), o presidente John F Kennedy apresentou a Proclamação 3447, “Embargo a todo o comércio com Cuba”, destinada a isolar Cuba e impedir a propagação do chamado comunismo sino-soviético. "Todos os meios possíveis devem ser empregados imediatamente para enfraquecer a vida econômica de Cuba”, escreveu o secretário de Estado adjunto, Lester D Mallory, em um memorando de abril de 1960. O objetivo do governo Kennedy era claro: “trazer fome, desespero e a derrubada do governo.”

Hoje, Joe Biden faz jus ao legado de Kennedy e às ambições de seu embargo cubano. O presidente não apenas se recusou a desfazer as sanções extraordinárias impostas pelo governo Trump, descumprindo sua promessa de campanha de restabelecer as relações diplomáticas e deixando Cuba na lista de “Estados patrocinadores do terrorismo”. Ele também redobrou o embargo, reforçando as restrições e impondo uma série de novas sanções contra o governo cubano.

Tanto o governo Biden quanto sua oposição republicana afirmam que essas medidas são direcionadas ao regime, e não ao povo cubano. Mas a evidência em contrário não é apenas circunstancial. A ONU estima que o embargo custou a Cuba mais de US$ 130 bilhões em danos - custos que são agravados pelas penalidades impostas pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA (US Office of Foreign Assets Control - OFAC) aos aliados e investidores de Cuba. Somente entre abril de 2019 e março de 2020, as penalidades do OFAC somaram mais de US$ 2,4 bilhões, visando bancos, seguradoras, empresas de energia e agências de viagens.

O efeito do embargo é, portanto, local e global: paralisa a economia cubana e mina o sistema multilateral que os EUA afirmam liderar.

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) informa que o embargo teve um “impacto direto” em suas operações em Cuba, citando custos, perdas e danos que resultaram na redução drástica da produção agrícola na ilha – apesar da FAO estar “oficialmente isenta” do embargo.

O programa de desenvolvimento da ONU (PNUD) cita seus próprios desafios na implementação de projetos como o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária em Cuba – em particular, quando a Toyota Gibraltar Stockholdings foi forçada a cancelar o fornecimento de veículos ao escritório do PNUD como resultado das restrições mais rígidas dos EUA em 2018.

E o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) destaca as maneiras pelas quais o embargo dos EUA “afeta não apenas aquele país caribenho, mas também a sub-região e os próprios Estados Unidos”. Segundo o PNUMA, o embargo “elimina” a possibilidade de cooperação regional em questões ambientais e impede a difusão de tecnologia crítica para impulsionar uma transição verde na ilha.

Os críticos ao embargo muitas vezes se baseiam em alegações morais para defender seu caso. É sem dúvida um conjunto forte de argumentos: os próprios EUA admitem que pretendem “matar de fome” a ilha de Cuba, e estão conseguindo. A guarda costeira dos EUA informa que 586 cubanos tentaram cruzar o oceano apenas no primeiro trimestre fiscal de 2022, mas o governo dos EUA – apesar de sua clara intenção de inflamar a migração para fora de Cuba – recusa-se a recebê-los. “Deixe-me ser claro”, disse o secretário de Segurança Interna, Alejandro Mayorkas, aos migrantes cubanos, “se vocês forem para o mar, não virão para os Estados Unidos”.

Mas uma variedade de argumentos muito mais ampla está sendo oferecida para desafiar o embargo cubano por ocasião de seu 60º aniversário. Um é legal: Biden pediu para “defender a ordem internacional liberal”, mas seu embargo claramente viola a carta da ONU e a lei internacional que ela consagra. Outro é geopolítica: pelo 29º ano consecutivo, os membros da assembleia geral da ONU votaram pelo fim do embargo por uma esmagadora votação de 184 a dois; com a hegemonia dos EUA em declínio, o país mal consegue bancar uma demonstração tão flagrante de força unilateral. E ainda outro argumento é democrático: 57% dos eleitores norte-americanos apoiam a suspensão do embargo, enquanto apenas 29% se opõem. Ao impor o embargo, Joe Biden permitiu que uma minoria de desertores idosos no sul da Flórida ditasse a política externa de todo um governo.

Acima de tudo, porém, o embargo falha no teste de sua própria lógica. Em seus comentários à assembleia geral da ONU no ano passado, o governo Biden argumentou que o embargo visa “apoiar o povo cubano em sua busca para determinar seu próprio futuro”. Mas o governo Biden não se atreve a explicar como tornar Cuba mais pobre, mais doente e mais isolada apoia sua busca pela autodeterminação. É uma pedra angular da política externa dos EUA que o crescimento, a riqueza e a integração internacional sejam caminhos para a liberdade. “Matar de fome” a ilha de Cuba, então, soa mais como administrar tortura do que abrir caminho para a liberdade.

Em seu discurso no plenário do Senado, Marco Rubio argumentou que o embargo dos EUA é apenas um bode expiatório para os comunistas de Cuba, um “argumento de discussão” enfatizado pelo regime. Se for esse o caso, então, por que não levantar o embargo e tirar o assunto da discussão? Se o comunismo é um sistema falido, por que não deixá-lo falhar em seus próprios termos e deixar os cubanos verem por si mesmos a verdadeira face de sua revolução? Do que Marco Rubio tem tanto medo? Se estamos comprometidos em apoiar a “busca dos cubanos para determinar seu próprio futuro”, só há um caminho a seguir: acabar com o embargo e deixar Cuba finalmente viver.

*David Adler é o coordenador geral da Progressive International

*Publicado originalmente por The Guardian | Tradução por César Locatelli

Imagem: ''O presidente Joe Biden faz jus ao legado de Kennedy e às ambições de seu embargo cubano.'' (Yamil Lage/AFP/Getty Images)

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