domingo, 20 de fevereiro de 2022

Portugal | O drama dos sem-abrigo nas ruas do Porto está a chocar os turistas

Alfredo Teixeira | Jornal de Notícias

Câmara diz que número de pessoas que vivem na rua não aumentou, mas a presença é bastante visível e impactante um pouco por toda a Baixa da cidade.

A pandemia agravou a situação de carência económica de muita gente e basta circular pela cidade do Porto para se perceber que locais que até 2020 estavam desocupados de pessoas em situação de sem-abrigo integram agora um bilhete-postal cada vez mais caracterizado por cobertores, travesseiros, roupa e lixo. De acordo com o último inquérito oficial realizado sobre o fenómeno, em finais desse ano, no Porto existiam 590 pessoas em situação de sem-abrigo, das quais 398 na condição de sem casa e 192 na condição de sem teto.

Logo pela manhã os serviços de limpeza da Câmara do Porto não têm mãos a medir na higiene do espaço público ocupado pelos sem-abrigo. O cheiro a urina denuncia a falta de asseio, assim como os restos de comida e os pacotes de vinho vazios. "São drogados e por esse motivo não querem ir para uma instituição e preferem dormir na rua. É aqui, é na Batalha, é na Sé. Têm apoio alimentar, mas não querem seguir regras porque nas instituições têm de entrar e sair a horas", diz Anabela da Costa, residente no Centro Histórico.

Num dos lados do chafariz da Rua de Mouzinho da Silveira, um jovem estrangeiro dorme embrulhado em cobertores, na companhia de dois cães. Do outro lado, uma família permanece deitada.

Má imagem da cidade

"Todas as manhãs vem o pessoal da Câmara com as mangueiras e lava tudo e deita tudo fora. Devia-se procurar uma forma de os levar para um lugar onde tivessem cuidados, porque isto é a Zona Histórica e até fica mal para o nosso país", acrescenta Anabela.

Na Praça da Liberdade, o impacto desta "má imagem" sente-se junto de quem passa. Maria José, Sónia e Verónica são turistas espanholas naturais de Cádiz e estão no Porto pela primeira vez. "É chocante! Vemos que há muita gente a viver na rua. Numa mesma porta mais de três ou quatro pessoas e já vimos algumas famílias", refere Maria José, enquanto coloca um saco com comida junto a um sem-abrigo que dorme na entrada de uma antiga dependência bancária. As turistas compraram sandes, tortilhas com carne e fiambre. "É um cenário horroroso. Em Espanha os sem-abrigo estão mais resguardados no inverno, aqui são deixados à sua sorte na rua! Um montão em cada esquina, o que não se justifica, até porque o Porto não é assim uma cidade tão grande", acrescenta a espanhola.

Sem documentos

Desemprego de longa duração, consumo de substâncias psicoativas, rutura com a família e desestruturação familiar e aumento das perturbações do foro da saúde mental são fatores que estão na origem desta condição de sem-abrigo. De acordo com o NPISA - Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo do Porto, a cidade acaba por atrair pessoas em situação frágil, dadas as estruturas de apoio de que dispõe. Muitas pessoas também deixam os concelhos de origem por vergonha.

Carlos Alberto tem 67 anos e é de Guimarães. Dorme há dois meses na Travessa do Cativo, numa das portas laterais do Teatro Nacional de S. João. Alimenta-se na cantina do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA), mas só à noite. Não tem dinheiro e de dia não come. Senta-se na Praça da Batalha e conta as horas até à hora do jantar.

"É arroz todos os dias. É arroz com arroz", conta. "Gostava de ter uma casa ou um quarto", acrescenta, reclamando apoio da Segurança Social. Nas várias entradas do teatro vivem sete pessoas.

O problema da falta de documentos é comum a muitas destas pessoas que estão na rua. Jason tem 39 anos e vive há três anos e meio na Rua de Camões, sob as arcadas de um edifício e a escassos metros do Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto. Em direção aos cafés ali instalados, polícias, advogados e juízes passam pelo genovês Jason e por outros sem-abrigo, "indiferentes ao espetáculo de miséria", refere uma comerciante. Mais uma vez, os turistas que saem dos hotéis existentes na artéria mostram-se perplexos e tiram fotos com o telemóvel.

Ajuda alimentar não pára

"Durante a fase mais crítica da pandemia, não fechamos o portão, mas houve alturas em que tivemos de pôr um travão porque temos poucas ajudas e o financiamento é limitado. Foi um aumento muito elevado de pessoas a pedir ajuda", conta Inês Lima, assistente social no Refeitório Social da ACISJF - Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina. Neste momento, são servidos 75 almoços todos os dias a pessoas sem-abrigo ou com carência económica na cantina que a associação gere nas traseiras do Ateneu Comercial do Porto . "Quando foi o confinamento eram 190 refeições, enquanto recebíamos o mesmo apoio da Segurança Social. Foram quatros meses muito gritantes em que as pessoas desciam aqui o beco e pediam de comer. Como temos uma missão de dar de comer, decidimos não fechar portas", salienta a responsável.

Também Natália Coutinho, coordenadora do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA), que tem uma equipa de 400 voluntários que diariamente distribuem na rua 150 a 200 refeições e que servem nos restaurantes sociais 600 pratos, notou um aumento de solicitações, quer de pessoas sem-abrigo quer de famílias sem rendimentos. "Pessoas que perderam emprego e que se não tivessem este apoio alimentar seriam sem-abrigo", afirma.

Apoios da Autarquia

A Câmara do Porto afirma que, ao contrário da perceção que existe em quem circula pelas ruas, a população sem-abrigo não aumentou. "Decorrido o período de pandemia e os problemas que daí advieram, na cidade do Porto não se verificou um aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo, ao contrário do que se tem verificado noutros centros urbanos onde o fenómeno se tem intensificado", afirmou ao JN Cristina Pimentel. A vereadora da Ação Social destaca a resposta da Autarquia com o Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano, os três restaurantes solidários, o acompanhamento das equipas de rua e o apoio médico e psicossocial.

Detalhes

8200 pessoas em situação de sem-abrigo no país

O último inquérito da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, com dados referentes a 31 de dezembro de 200, dava conta de 8200 pessoas sem-abrigo no país.

3780 sem-abrigo em Lisboa

O concelho com mais pessoas sem-abrigo é Lisboa: 3780. Alvito e Beja registam o maior número de sem-abrigo por 100 mil habitantes: 11,35 pessoas e 9,72 pessoas, respetivamente.

Imagem: O italiano Jason com o cão Jerónimo - Foto Igor Martins / Global Imagens

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