domingo, 24 de abril de 2022

O QUE É VIOLÊNCIA “INACREDITÁVEL”?

Heidi Morrisson*

“O tipo de violência que temo perpetuar é aquela que valoriza a vida de algumas crianças, nomeadamente as ucranianas, em detrimento das de outras, nomeadamente as mais de 450 milhões de outras crianças em todo o mundo que hoje vivem em zonas de conflito consideradas de pouco ou nenhum interesse para cobertura mediática.”   

Como académica cuja carreira se centra em escrever e ensinar sobre crianças e guerra, o último conflito na Ucrânia deveria ser-me tragicamente muito familiar. Mas, num sentido real, não é. E fiquei, por um breve período, sem palavras. O meu silêncio, porém, não foi por falta de compaixão pelas crianças da Ucrânia; é por medo de que eu possa de facto contribuir para perpetuar a violência.

O tipo de violência que temo perpetuar é aquela que valoriza a vida de algumas crianças, nomeadamente as ucranianas, em detrimento de outras, nomeadamente as mais de 450 milhões de outras crianças em todo o mundo que hoje vivem em zonas de conflito consideradas de pouco ou nenhum interesse para cobertura mediática. 

Há semanas, os meios de comunicação de massa omnipresentes imploraram-nos que reagíssemos – porque os acontecimentos em questão são mais do que trágicos: mais de cem crianças ucranianas mortas e 1,5 milhão a fugir para outros países. São mostradas imagens assombrosas: um memorial de carrinhos vazios em Lviv; uma “ponte de brinquedo” romena que se liga à Ucrânia.

Bem, dizer que o sofrimento das crianças ucranianas é terrível e inaceitável é um eufemismo. Mas também o é a insinuação predominante de que o seu sofrimento é excecionalmente horrível e, portanto, digno de cobertura mediática sem precedentes.

Por causa do meu papel de facilitar discussões abertas sobre o tema, posso testemunhar as consequências que chegam não apenas aos alunos, mas também aos colegas académicos. Ouvir um experiente erudito descrever o que está a acontecer na Ucrânia como “a pior catástrofe desde a Segunda Guerra Mundial” é chocante.

Fiquei totalmente confundida com a resposta a dar. Por um lado, o meu coração está com toda a Ucrânia e o seu povo, muitos dos quais sofreram imensamente; para não mencionar os 14.000 mortos no leste da Ucrânia antes de 2022, após o golpe de Maidan em 2014 que levou ao poder os aspirantes à  NATO Petro Poroshenko e agora Volodymyr Zelensky. Por outro lado, o que tem a perda de vidas ucranianas que a qualifica como um desastre pior do que o dos milhões que morreram no Vietname, Ruanda, Iraque, República do Congo ou em muitos outros lugares de conflitos evitáveis desde a Segunda Guerra Mundial?

Katharina Ritz, uma funcionária da Cruz Vermelha, lembra-nos: “Acho que não  se trata de saber se é ou não a Ucrânia. Agora é a Ucrânia, o Iémen, a Síria, o Iraque, o Congo e assim por diante… Temos de juntar a Ucrânia a todas as crises, mas não devemos substituí-la.”

Um académico informado disse que o que está a acontecer na Ucrânia é “incrivelmente violento”, mesmo quando comparado com guerras prolongadas noutros lugares. A guerra Irão-Iraque foi citada como uma época em que as crianças supostamente vivenciavam os bombardeamentos como um “momento divertido”, quando os pais as levavam para os abrigos. “Talvez a guerra Irão-Iraque não tenha sido tão violenta [como a atual guerra na Ucrânia]”, disseram-me.

Embora tenha relutância em comparar números, também não estou disposta a esquecer os factos: dois milhões de crianças foram mortas e outros quatro a cinco milhões ficaram gravemente feridas durante o conflito Irão-Iraque. As armas de destruição em massa foram usadas pelo então aliado dos EUA, Saddam Hussein, para aterrorizar as populações civis, sem qualquer condenação ou sanções que causassem danos económicos. Sobre o selvagem conflito Irão-Iraque de oito anos, o vencedor do Prémio Nobel da Paz e secretário de Estado Henry Kissinger comentou assustadoramente: “Espero que se matem uns aos outros”.

Outro respeitado estudioso confidencia que é difícil dormir à noite porque os recentes acontecimentos na Ucrânia evocam memórias traumáticas da participação dos seus antepassados na guerra com os russos. Como consolar alguém tão traumatizado? Embora o medo e a dor sejam reais, também o é a psicose generalizada de que a definição de violência “real” é condicionada pela relativa proximidade. Uma  injustiça num lugar é uma injustiça  em qualquer outro.

Que para a maioria das pessoas, a guerra evoca, com razão, a imagem de violência direta e tangível, como bombas caindo e ferimentos de balas, é compreensível. Igualmente prejudicial no conflito armado, no entanto, e ainda infelizmente ausente da consciência coletiva das ideias dominantes, é a violência cultural, especificamente o uso de normas sociais dominantes para justificar relações de poder hegemónicas, desiguais e desumanizantes. Os perpetradores da guerra racionalizam as suas ações através da crença de que o “inimigo” é moralmente inferior.

No caso da guerra na Ucrânia, uma norma social  transformada em arma, inconscientemente ou não, é que a vida de algumas crianças importa mais do que a de outras neste mundo. Quem pode esquecer as 500.000 crianças iraquianas cujas mortes foram diretamente devidas às sanções do presidente Clinton? Quem pode esquecer o comentário arrepiante feito pela então Secretária de Estado Madeline Albright: “Valeu a pena o preço”.

O que é violência “inacreditável”? Com a indústria de defesa norte-americana de quase meio bilião de dólares a fornecer silenciosamente armas e a obter enormes lucros; com as ações da gigante norte-americana Lockheed a subir cerca de 16% desde a invasão, contra uma queda de 1% no Standard & Poors 500 Index; e com a BAE Systems1 do Reino Unido, o maior negociante da Europa, com uma subida de 26%, alguém se atreve a dizer que violência inacreditável é aquela que poderia ter sido evitada com diplomacia? Ou as mortes em potência de crianças em todos os lugares agora são aceitáveis e valem a pena?

Nota:

1 -  É uma empresa multinacional britânica de armas, segurança e indústria aeroespacial com sede em Londres, Inglaterra. É a maior empresa de defesa da Europa.

*Heidi Morrison é Professora Associada de História na Universidade de Wisconsin, La Crosse. É autora de Global History of Childhood Reader [História global do leitor infantil] (Routledge, 2012) e Childhood and Colonial Modernity in Egypt [Infância e modernidade colonial no Egito](Palgrave, 2015).

Fonte: https://www.counterpunch.org/2022/03/29/what-is-unbelievable-violence, publicada e acedida em 29.03.2022

Tradução de TAM

Imagem: A capital iemenita Sanaa depois de bombardeamentos aéreos. Fonte da fotografia: Almigdad Mojalli/VOA

Publicado em Pelo Socialismo

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