domingo, 24 de abril de 2022

“O ESTADO A QUE ISTO CHEGOU”: ZELENSKY NO PARLAMENTO PORTUGUÊS


A escassos dias de se completarem 48 anos sobre o 25 de Abril, a célebre frase que o capitão Salgueiro Maia dirigiu naquela madrugada às suas tropas, antes de marcharem sobre Lisboa, mostra-se absoluta e infelizmente actual: “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os Estados Sociais, os Estados Corporativos e o estado a que isto chegou.”[1]

Vivemos, efectivamente, tempos particularmente perigosos e até dolorosos. 

As verdades oficiais e a perseguição aos divergentes

Não só por virtude da invasão da Ucrânia (invasão essa que deve ser criticada e denunciada sem reservas ou ambiguidades) e daquilo em que ela pode degenerar (uma guerra a nível mundial com consequências catastróficas), como também por tudo aquilo que, de profundamente errado, mas à sua sombra, se vem tratando de justificar e de impor como o “novo normal”.

Refiro-me, como julgo ser evidente, à lógica da imposição das verdades absolutas do pensamento dominante, da censura, da ostracização e até da perseguição dos que ousem dizer, ou até simplesmente pensar, coisas diferentes daquelas que, à pior maneira inquisitorial, são apresentadas e impostas como axiomas indiscutíveis. Tudo isto através da execração pública e do incitamento ao insulto, ao ataque pessoal e ao ódio mais irracional contra os “divergentes” ou aqueles que, para conveniência dos poderes dominantes, como tal foram arvorados. 

Assim, é de imediato criticado e condenado quem quer que discorde de medidas censórias (como as do silenciamento, nos países ocidentais, incluindo Portugal, da estação televisiva RT–Russian Today ou da agência noticiosa russa Sputnik, silenciamento esse que transforma os seus autores e executores em iguais àqueles que dizem combater), ou quem manifeste alguma espécie de relutância em acreditar em tudo aquilo que os EUA e os governos que os seguem diariamente propagandeiam, ou quem simplesmente denuncie o cinismo e a hipocrisia de quantos agora clamam pelas terríveis perdas de vidas humanas na Ucrânia, mas nunca quiseram saber de outras tantas ou até mais numerosas vítimas noutros pontos do mundo (Iraque, Síria, Jugoslávia, Palestina, Somália, Iémen, etc.).

Como logo é violenta e odiosamente apelidado de “pró-putinista”, “cúmplice ou encobridor de crimes de guerra” ou até “whataboutistas” (assim ridicularizando e insultando todos os que entendem que criticar Putin e a invasão da Ucrânia não pode significar apoiar a Nato e incensar Zelensky) quem chame a atenção – e sempre sem que tal signifique justificar o que quer que seja da agressão militar russa! – para factos como o de, não obstante a promessa de não extensão para Oriente assumida pelas principais potências ocidentais em 1990, aquando da reunificação das Alemanhas, a Nato ter-se alargado sucessivamente para Leste com 14 novos Estados membros (e uma centena de bases militares, entre aeroportos e estações de lançamento de mísseis). Ou o facto de, após diversos ataques[2] e massacres[3] cometidos pelas tropas e milícias ucranianas contra as populações da região de Donbass (que aliás inicialmente falaram sempre em autonomia e auto-determinação, e não em independência), o governo de Zelensky ter aí concentrado um enorme contingente de soldados, milicianos (entre 100 e 150 mil) e material de guerra, numa evidente e mais que hostil ameaça àquelas populações. Ou ainda o facto de a Nato já estar, de facto, na Ucrânia, em particular a partir de 2014, através de um PfP (Partnership for Peace Programme) no âmbito do qual, por exemplo, foi criada a base de Yavoriv, onde instrutores americanos e canadianos têm treinado e armado milhares de militares e milicianos ucranianos e estrangeiros).

O facciosismo e fanatismo em curso são tais que, lá fora e também nesta democracia “à beira-mar plantada”, se proíbem atletas, artistas e músicos de actuarem, só por virtude da sua nacionalidade russa!? E até se chega ao ponto – que seria de rir até às lágrimas não fosse o significado e a gravidade do sucedido – de vários órgãos da comunicação social portugueses noticiarem, em alertas ou em grandes parangonas, que os autores de um assalto a uma ourivesaria em Aveiro eram russos, para depois “convenientemente” se calarem quando se apurou que eram afinal ucranianos e vindos para Portugal após a guerra!…

E mesmo muitos daqueles que se pretendem justos e com princípios, por ilusão (que é, porém, cada vez mais menos aceitável), conveniência ou medo, calam-se perante todas estas barbaridades e assim permitem e até legitimam este verdadeiro retrocesso anti-democrático e inquisitorial.

Depois de dois anos de pandemia e de massiva utilização do terror e da manipulação para melhor aquietar e governar as massas, eis que a guerra da Ucrânia “matou” a Covid-19, mesmo que continuem a morrer pessoas com ela. E, mais grave e simultaneamente mais ridículo do que isso, a maior parte dos “especialistas” em Covid-19 transformou-se mesmo numa verdadeira legião de “especialistas” (pró-Nato, quase todos) naquela mesma guerra. 

Deste modo, todos os dias temos, durante horas e horas a fio, a “informação” que a Nato quer, ou melhor, que os EUA querem que nós tenhamos. E quase ninguém discute questões, e menos ainda consegue ser ouvido sobre elas, como as do completo desaparecimento da ONU neste conflito, da infeliz e definitiva demonstração da completa dependência da diplomacia europeia relativamente aos EUA, e menos ainda da ausência de quaisquer esforços, reais e efectivos, para se alcançar a paz e pôr fim à guerra (que é, como sempre, um enorme negócio para os fabricantes de armas).

Diferenças entre Putin e Zelenski?

Putin é, indiscutivelmente, um ditador, que persegue violentamente os seus adversários, que promove farsas eleitorais, que encabeça uma autêntica corte de oligarcas, que é profundamente reaccionário e que nada tem a ver com socialismo ou comunismo[4], sendo antes um continuador e aprofundador de uma economia capitalista, e em larga medida não já monopolista de Estado, mas (sobretudo após Boris Ieltsin) verdadeiramente neo-liberal.

A invasão da Ucrânia pelas tropas russas e o massacre de populações civis indefesas são violações, claras e inadmissíveis, das regras mais elementares do Direito Internacional e, mais do que isso, crimes injustificáveis e imperdoáveis, que já causaram milhares de mortos e perto de cinco milhões de refugiados. 

Mas Zelensky não é nenhum democrata nem patriota! Sob pena de aceitarmos ser grosseiramente manipulados, estar contra e denunciar Putin, o seu governo e as suas práticas ditatoriais e imperialistas, e em particular a sua guerra contra a Ucrânia, não significa de todo apoiar e elogiar quer Zelensky, quer quem verdadeiramente o colocou no poder e o sustenta (desde os EUA, o seu braço armado que é a Nato, e a União Europeia até à oligarquia financeira e aos grupos neo-nazis que o apoiam).

Não obstante o completo unilateralismo da “informação” que nos chega todos os dias pela Comunicação Social e pelas declarações dos responsáveis políticos americanos, europeus e portugueses, importa não esquecer que foi a própria e insuspeita OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa)[5] a reconhecer que, em 18 de Fevereiro deste ano, rebentaram violentos bombardeamentos contra a população ucraniana de Donbass, os quais, num só dia (22/2), atingiram o astronómico número de 1.600 explosões e originaram, num curto espaço de dois dias, a fuga desesperada de mais de 100.000 pessoas, principalmente para a Rússia.

Zelensky não é de todo um democrata ou um patriota, mas antes um produto de uma certa oligarquia[6], muito em especial a do seu principal promotor, o banqueiro nazi Ihor Kolomoyskyi (que, curiosamente, tem nacionalidade israelita) e do seu séquito. Recordo aqui que os primeiros actos políticos de Zelensky foram o de retirar a Ucrânia do Comité das Nações Unidas para a Defesa dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestiniano e, logo de seguida, o de levar o seu país, juntamente com o EUA, a serem os únicos a votarem contra a Resolução da Assembleia Geral da ONU de combate à glorificação do nazismo e de outras práticas defensoras de formas contemporâneas de racismo, discriminação racial e xenofobia.

O governo de Zelensky tratou também de perseguir a oposição política, ilegalizando 12 (doze!!) partidos políticos, alguns dos quais, aliás, de ideologias e de programas muito próximos de vários dos partidos políticos representados no Parlamento português.

O papel dos neo-nazis no apoio a Zelensky

O próprio Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, antes de Fevereiro deste ano, referia inúmeros casos de detenções arbitrárias, encarceramentos, torturas e desaparecimentos forçados, executados com plena impunidade por polícias ucranianos, principalmente por elementos do sinistro SBU (Serviço de Segurança da Ucrânia). O actual chefe deste Serviço, Oleksandr Poklad, conhecido pelo significativo cognome de “O estrangulador”, devido às suas técnicas de interrogatório contra presos políticos, ligado aos grupos neo-nazis e a execuções sumárias de opositores ao regime, foi nomeado por Zelensky em 2021 e posteriormente condecorado com a “Ordem da Coragem”. Em 1 de Março último, Zelensky substituiu o então governador de Odessa por Maksym Marchenko, ex-comandante do também neo-nazi Batalhão Aidar e acusado de crimes de guerra no Donbass. Já Andryi Biletsky, um dos fundadores do Batalhão Azov, defendeu uma “cruzada branca” contra “os negros da neve”, denominação dada por ele e pelos seus correligionários aos ucranianos de origem russa.

Porque será então que todo este “currículo” é hoje esquecido por todos os apoiantes e defensores da figura de Zelensky?!

O actualmente denominado “Regimento Azov”, a mais bem treinada e equipada força militar de sustentação do governo de Zelensky e a principal força de defesa da estratégica cidade de Mariupol, apesar de formalmente integrado na Guarda Nacional Ucraniana desde 2014, é, na verdade, uma milícia neo-nazi, absolutamente torcionária e autora de diversos e gravíssimos crimes de guerra, em particular na região do Donbass, e que usa orgulhosamente a insígnia da famigerada 2.ª Divisão SS Das Reich, do Exército nazi[7].

A qualificação de neo-nazis dadas a essas milícias – cujo número ultrapassará os 60.000 homens e poderá mesmo chegar a cerca de 100.000 – foi aliás, e até muito recentemente, utilizada por entidades tão insuspeitas como o The Times de Israel, o Simon Wiesenthal Center ou o Counterterrorism Center da academia militar norte-americana de West Point, que, entretanto, e muito curiosamente, parecem ter perdido a memória…

E não é pelo facto de, a partir de 24/2, o Facebook, que até então proibia as publicações favoráveis ao Regimento Azov e aos seus “feitos”, ter passado a permiti-las, bem como os apelos não só ao ódio como até à prática do homicídio de militares e dirigentes russos, que a verdadeira natureza do principal apoio militar e político de Zelensky desapareceu…

O que será então a “sessão solene” do Parlamento português?

Aqui chegados, importa então verificar em que irá decerto consistir a “sessão solene” do Parlamento Português com a intervenção de Volodomyr Zelensky. Nela, sabe-se já, irão intervir o Presidente ucraniano e o Presidente da Assembleia da República (a segunda figura do Estado português), não sendo permitidas intervenções de quaisquer deputados. E estarão presentes no hemiciclo quer o Presidente da República, quer o Primeiro-Ministro, mas não serão admitidos nas galerias quaisquer elementos do público.

Tratar-se-á, pois, de uma sessão à porta fechada e com a presença dos mais altos dirigentes do Estado português, conferindo ao presidente da Ucrânia uma deferência e uma importância de tratamento que nem a Xanana Gusmão foram dadas em 1999!

E o que se espera que aconteça? Tendo também presente o que já se passou quer no Conselho de Segurança da ONU, quer em vários parlamentos europeus, em particular no grego, é mais que provável que, para além das mais que previsíveis palavras dos dois discursos, Zelensky aproveite para fazer o que já fez noutros lados, ou seja, apelar à intervenção directa da Nato e dos respectivos estados-membros, incluindo Portugal, na guerra, incitar ao agravamento das sanções económicas contra a Rússia, bem como ao fornecimento e à utilização de ainda mais armamento, e, sob a capa do aplauso ao heroísmo do povo ucraniano, promover os seus mais dilectos apoiantes[8].

E assim sendo, de que servirá ou terá servido a dita sessão solene, na qual, repito, nenhuma voz crítica ou dissonante se poderá fazer ouvir? Para apoiar os filhos do povo ucraniano e também russo, vítimas desta guerra injusta? Para fortalecer esforços efectivos pela imposição da paz? Ou antes para glorificar Zelensky e os seus apoiantes, intensificar (com consequências imprevisíveis) os seus esforços de guerra e reforçar a narrativa da Nato e dos EUA (e a reboque deles, da União Europeia) não apenas sobre a guerra actual como também sobre tudo o que se tem passado no Leste da Europa e no resto do mundo nos últimos trinta ou quarenta anos[9]?

E os deputados portugueses, cuja grande maioria já aceitou este modelo de “sessão solene”, 48 anos depois do 25/4 vão ficar em silêncio ou até aplaudir entusiasmadamente estes apelos à intensificação da guerra, ao reforço dos obscuros poderes oligárquicos e para-militares ucranianos e ainda os elogios de retintos neo-nazis? Se, em vez de um torcionário ucraniano, se fizesse ver a imagem ou ouvir a voz de um esbirro assassino da Pide ou de um neo-nazi como Mário Machado, desde que clamando contra os russos, também os deputados portugueses o aplaudiriam? É isso que se espera que os representantes de um Povo que, há quase meio século atrás, derrotou uma feroz ditadura, afinal façam?

E é admissível que quem levante todas estas questões e tenha sobre elas uma opinião diversa da maioritária ou “oficial”, tenha alguma simpatia ou militância política ou não tenha nenhuma, seja de imediato odiado, insultado, silenciado e perseguido?

Foi para isto que se derrubou o regime fascista?

Temos que dobrar a cerviz e aceitar “o estado a que isto chegou”?

Não, de todo! Por isso, face ao estado a que isto chegou, repito ainda e uma vez mais: nem Putin, nem Nato! Pela Paz, contra a guerra! Não à censura! Pela liberdade de expressão de todas as correntes de opinião! Fazendo de novo eco das palavras de  Salgeiro Maia: “Vamos acabar com o estado a que chegámos!”.

António Garcia Pereira

Publicado em Notícias Online

https://www.noticiasonline.eu/o-estado-a-que-isto-chegou-zelensky-no-parlamento-portugues/?fbclid=IwAR3CpWiliLJBj8sBmE_Xg1Vz3_i9oOqC55tvLZFgNHEiW23ObhpPMU7iogQ


[1] A frase completa de Salgueiro Maia terá sido esta: “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os Estados Sociais, os Estados Corporativos e o estado a que isto chegou. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem não quiser sair, fica aqui!”.

[2] Um dos primeiros actos legislativos do novo governo resultante do derrube do Presidente pró-russo YanuKovych foi a revogação, a 23/02/2014, do diploma (a lei kovalov-kolesnichenko, de 2012) que havia reconhecido (também) o russo como língua oficial na região do Donbass.

[3] Os massacres, perante a passividade da comunidade internacional, foram praticados sobretudo entre Fevereiro e Julho de 2014 contra as regiões de língua russa (Odessa, Dnipropetrovsk, Carcóvia, Lugansk e Donetsk) e, com a importantíssima intervenção das milícias pró-nazis, atingiram particular ferocidade e malvadez em Odessa e Mariupol.

[4] Ao invés do que alguns “dinossáuricos” e primários anti-comunistas tentaram pregar…

[5] Que agrupa 57 Estados, incluindo todos os europeus e os EUA.

[6] Só que os oligarcas apoiantes de Zelensky (incluindo o filho de Joe Biden) são carinhosamente apelidados de “empreendedores”…

[7] Esta divisão das SS foi responsável, entre outros, pelo horrível massacre de 643 civis em Oradour-sur-Glane, na França, em 10 de Junho de 1944.

[8] Recorde-se que, na sessão do parlamento grego, a 7/4, Zelensky fez intervir, num vídeo que então apresentou, um neo-nazi membro do Regimento Azov, nascido em Mariupol e que afirmou estar a defender a sua cidade “contra os nazis russos”!…

[9] Desde os brutais bombardeamentos aéreos de populações civis na faixa de Gaza, na ex-Jugoslávia, na Somália, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, até aos cerca de 13.000 mortos civis no Donbass.

Sem comentários:

Mais lidas da semana