Noémia Malva Novais* | Jornal de Notícias | opinião
É de António Guterres a afirmação "o mundo não tem de ser assim" e os seus biógrafos - Pedro Latoeiro e Filipe Domingues - elegeram-na para título da sua biografia. E é verdade, o mundo não tem de ser assim, mas, para o mundo ser de outra maneira, as pessoas e as instituições têm de desempenhar o seu papel de acordo com as suas obrigações, os estatutos dos organismos mundiais e os princípios do direito internacional em nome da paz universal.
Ora, sucede que se soube, há dois dias, que o Secretário-Geral da ONU António Guterres não falou com o Presidente russo Vladimir Putin desde o início da invasão da Ucrânia. Este é o 56.º dia de guerra e, de acordo com os números da própria ONU, mais de dois mil civis já perderam a vida neste conflito. Aliás, a Organização admite que o número real seja muito maior. O regime ucraniano fala em 20 mil civis mortos só na cidade costeira de Mariupol, cerca de 3 mil soldados ucranianos mortos e mais de 10 mil feridos. Desde que a Rússia começou esta guerra, a 24 de fevereiro, o governo de Moscovo admitiu a morte de 1350 dos seus soldados, enquanto o governo da Ucrânia indica que quase 21 mil militares russos já morreram neste conflito bélico.
Os números desta guerra são, a todos os níveis, impressionantes, sobretudo quando sabemos que aos números correspondem pessoas: homens, mulheres e crianças mortas, feridas, violadas, deslocadas, refugiadas... Esta guerra já provocou o maior êxodo de civis desde a segunda guerra mundial. Segundo os números da ONU, mais de 5 milhões de ucranianos deixaram o país desde o início da invasão russa, tendo a maioria ficado nos países vizinhos da Ucrânia, sobretudo na Polónia, com uma fé inabalável no fim da guerra e no regresso possível ao que então sobrar do seu país.
Nesse longo caminho pela sobrevivência, durante o percurso a pé, nas viagens rodoviárias, nas estações de comboio ou de metro, em locais de alojamento temporário, em abrigos para refugiados, os milhões de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças, estão expostos a todos os perigos, enfrentam todo o tipo de violência, havendo já provas, por parte de organizações humanitárias, de pessoas desaparecidas, de mulheres e crianças violadas, de tentativas de rapto, de aliciamento por redes de tráfico de seres humanos disfarçadas de entidades empregadoras.
É impossível assistirmos, ainda que à distância, à barbárie desta guerra e permanecermos indiferentes ao silêncio da ONU. Agora que a representante oficial dos Negócios Estrangeiros do Kremlin, Vladimirovna Zakharova, afirmou que António Guterres não tentou estabelecer contacto com Vladimir Putin desde o início desta guerra, frisando, à Al Jazeera, que "ninguém entrou em contacto, nem através da missão permanente da Rússia na ONU nem diretamente com o Ministério dos Negócios Estrangeiros", é impossível resistir a perguntar publicamente: Quo vadis, ONU? O mundo poderia ser diferente. O mundo pode ser diferente, mas, para tanto, é preciso que a ONU cumpra a sua principal missão fundadora: impedir a terceira guerra mundial. Limitar-se a pedir umas tréguas durante a Páscoa ortodoxa (de amanhã a domingo) é pouco.
A ONU foi fundada em 26 de junho de 1945 por 50 Estados, mas foi dois anos antes, numa conferência em Moscovo, que os representantes diplomáticos do Reino Unido, dos EUA, da China e da URSS (agora Federação Russa /Rússia) concordaram na necessidade de constituir uma organização mundial "baseada no princípio da igualdade de soberania de todos os Estados pacíficos"; e foi, no mesmo ano, em Teerão, que os líderes do Reino Unido (Winston Churchill), EUA (Franklin Roosevelt) e URSS (Joseph Stalin) decidiram, em definitivo, constituir a organização, o que aconteceu, dois anos depois, em Yalta, na Península da Crimeia. A mesma Crimeia que a Rússia ocupou ilegalmente em 2014.
A Carta fundadora da ONU evidencia o aproveitamento, pelos três grandes, dos ensinamentos da Sociedade das Nações (SDN) - criada após a primeira guerra mundial e inoperacional devido ao princípio da unanimidade, - e o objetivo de assegurarem o seu caráter de superpotências mundiais; contudo, também mostra a necessidade de
ultrapassar os constrangimentos impostos pelo princípio da unanimidade da SDN, através de um modelo de direção de grandes potências, membros permanentes do Conselho de Segurança, com direito de veto. Deste modo, Reino Unido, EUA, URSS, China e França selaram o seu compromisso com a paz mundial, atribuindo à Assembleia Geral um poder que, apesar do direito de veto no Conselho de Segurança, pudesse, em caso de conflito, assegurar a possibilidade de entendimentos. Foi o que aconteceu a propósito desta guerra na Ucrânia, em que, apesar da Rússia ser membro efetivo do Conselho de Segurança e estar até a presidir a este diretório quando invadiu a Ucrânia, a Assembleia Geral aprovou, a 2 de março, por ampla maioria, uma Resolução relativa à "Agressão contra a Ucrânia", condenando a invasão e exortando a um cessar fogo imediato. Nessa altura, o Secretário Geral da ONU António Guterres considerou esta decisão "histórica".
Hoje, 50 dias depois dessa decisão, percebemos que será, provavelmente, um facto histórico estéril. A guerra agrava-se em Mariupol e na região do Donbass. A Rússia lançou um novo ultimato à Ucrânia exigindo a rendição de Mariupol. A Ucrânia reconhece a dificuldade em combater o inimigo nesta cidade portuária e pede armas para lutar e corredores humanitários para retirar as mais de 100 mil pessoas que aí permanecem há várias semanas sem luz, aquecimento, água, comida... Os fuzileiros da 36.ª Brigada, que ainda resistem em Mariupol, pedem ajuda à comunidade internacional através de mensagens divulgadas em jornais internacionais. Os autarcas de Mariupol imploram por ajuda militar, comida, água e cuidados médicos.
No Leste, no território junto à fronteira com a Rússia, cresce a pressão dos exércitos russos no ar e no terreno. Os soldados russos estão em trânsito de outras regiões da Ucrânia para as cidades do Donbass mais próximas da sua fronteira, onde a esta hora se intensificam os combates. Os relatórios americanos e britânicos anunciam o risco de ataques aéreos de precisão em toda a Ucrânia. O Presidente Volodymyr Zelenskyy receia que a Rússia lance mão das armas nucleares e das armas químicas que vem acumulando desde 2019. Rússia que, enquanto aumenta a ofensiva militar, acaba de informar que enviou à Ucrânia um projeto de documento com propostas para a paz.
Perante este cenário na Ucrânia e de ameaça mundial não se ouve a ONU, não se ouve António Guterres, o líder ocidental que melhor conhecerá Vladimir Putin, o homem que invadiu a Ucrânia alegando - pasme-se - o direito à autodeterminação e à legítima defesa consagrados na Carta das Nações Unidas. Conhecendo-se a evolução desta guerra e sabendo-se que a Rússia, membro efetivo do Conselho de Segurança da ONU com poder de veto desde a sua fundação, será a maior potência nuclear do mundo e terá um poder de influência assinalável junto da China, do Irão, da Síria... não se compreende a ausência, por parte da ONU, de qualquer tentativa de mediação deste conflito trágico na Ucrânia. A paz ainda está tão longe e não tinha de ser assim.
* Historiadora (HTC - CFE - Nova FCSH)
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