sábado, 30 de julho de 2022

Portugal | A INOCÊNCIA DOS CARDEAIS

Pedro Ivo Carvalho* | Jornal de Notícias | opinião

Os telhados de vidro da Igreja Católica em matéria de abusos sexuais de menores são demasiado finos para que alguém possa ter a pretensão de caminhar temerário sobre um tema tão sensível e complexo. Mas há, nessa fronteira vaporosa entre a moralidade, a religiosidade e o crime, valores nucleares que não podemos remeter para o breu redentor do confessionário. Dois cardeais-patriarcas de Lisboa pouco ou nada fizeram para travar, primeiro, e denunciar, depois, um padre que, em finais dos anos 1990, terá molestado crianças. D. José Policarpo, já falecido, não afastou o clérigo de funções, depois de ter ouvido a história da boca da mãe de um dos rapazes. O abusador continuou até 2001 com responsabilidades nas duas paróquias da capital, com acesso, presume-se, a menores.

Em 2019, essa vítima, já homem, encontrou-se com o atual patriarca, D. Manuel Clemente, e contou-lhe o sucedido. Mais uma vez, os contornos deste crime hediondo ficaram sob a batina da instituição. E nada foi comunicado às autoridades judiciárias. D. Manuel Clemente alega, em sua defesa, que não o fez a pedido da vítima ("a preocupação da vítima era a não repetição do caso"), parecendo desconhecer que as denúncias podem ser anónimas e que, mais do que respeitar a suposta vontade deste homem certamente amargurado, tinha o dever cívico e moral de levar o caso às autoridades. Aliás, foi precisamente essa a indicação dada em 2019 pelo Papa Francisco aos bispos, numa célebre cimeira em que foram traçadas as linhas gerais da legislação canónica aprovada um ano mais tarde. A Igreja portuguesa podia perfeitamente ter denunciado o padre sem denunciar a vítima.

Ao contrário do que sugeriu, de forma ligeira, o presidente da República, que falou como "pessoa" e não como chefe de Estado, não está em causa nem a honradez nem a seriedade de nenhum dos patriarcas. A obrigação de ambos, enquanto responsáveis máximos da Igreja, era denunciarem em devido tempo o padre abusador à justiça civil, não partindo do princípio de que as leis canónicas bastavam. Não o tendo feito, foram coniventes com um comportamento criminoso. E para isso não há perdão.

*Diretor-adjunto

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