sábado, 30 de julho de 2022

Angola | GRANDEZA HUMANA TAMBÉM É GRATIDÃO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A vida só faz sentido quando temos a certeza de que há sempre uma amiga ou um amigo à nossa espera. Quando sabemos que há sempre um braço amigo para nos amparar. Uma palavra sábia que nos ajuda a ver melhor o que parece baço, triste, perdido, inatingível. A amizade é mais do que a mãe de um rio. Muito mais do que a água fresca. Mais ainda do que o Sol nascente. Mário Pizarro é um angolano de excepção e meu amigo há mais de meio século. Naquele tempo de guerra e sem liberdade ele encarava os ocupantes e dizia com a sua voz grave: Viva o MPLA! Viva Angola Independente! Era preciso coragem. Eu só o imitava quando metia um copinho a mais.

O meu amigo, quando eu não tinha onde cair morto, abria-me as portas de sua casa, dava-me comida, dormida e o calor da amizade. Ele e a sua companheira Vera. Na época só ainda existiam os seus filhos Paulo e Miguel. Recebiam-me como se eu fosse um rei mago perdido do presépio da manjedoura na Palestina. Gente muito, muito amiga e que me salvou da indigência. Iam todos dormir e eu matraqueava umas crónicas na velha máquina de escrever Hermes Baby. Dormia a correr e depois partia, antes dos da casa acordarem, para não incomodar.

O Mário Pizarro nunca se vergou, nunca calou o que pensa. E um dia foi afastado do cargo que desempenhava no Banco Nacional de Angola, pelo Presidente José Eduardo, de quem era muto próximo. Partilhou comigo os seus receios porque se sentiu perseguido. Nunca mais os dois amigos se reconciliaram. Quando falávamos do tema, ele apelidava o Presidente José Eduardo de Zeca Diabo! 

Um dia  não muito longínquo (há quatro anos…) disse-lhe: Ainda vais ter saudades do Zeca Diabo. Ele olhou-me muito sério e respondeu:

- Eu reconheço que o Presidente José Eduardo dos Santos fez coisas muito positivas em Angola. O Povo Angolano deve-lhe muito. 

Hoje mandou-me o texto que vos envio, intitulado Em Defesa do Presidente José Eduardo. Faço a sua distribuição na esperança de que muitas e muitos dos que tudo lhe devem, tenham um assomo de dignidade. E no pacote incluo quem teve a coragem de cuspir na sua Honra dizendo que antes de falecer, recomendou o voto na UNITA e em Adalberto da Costa Júnior. Nunca ninguém tinha chegado tão longe no insulto ao Presidente José Eduardo. Os do MPLA não mudam de lado nem de bandeira, nem mortos! Leiam a peça.  

"Ponto prévio: 

Os meus amigos ficarão seguramente surpreendidos com um texto escrito por mim com este título. De facto, o Presidente José Eduardo não teve um comportamento correcto no processo que levou à minha saída do Banco Nacional de Angola. Foi um processo injusto, pouco transparente e que teve impactos negativos para mim e para a minha família.

Mas isso são histórias de uma outra história que oportunamente contarei. 

O que aqui interessa assinalar é que não sou um admirador do Presidente José Eduardo dos Santos, nem tenho dívidas para com ele para alem daquelas que, como cidadão angolano, reconheço e que decorrem dos aspectos positivos do seu mandato.

E é por isso mesmo que tenho dificuldade em aceitar de forma passiva os comentários que se vão fazendo, em jornais ou televisões, na maior parte dos quais tratam o Presidente José Eduardo de forma insolente, pouco respeitosa e revelando pouco conhecimento da história e realidade angolanas.

Desde que foi noticiada a morte do Presidente José Eduardo que vejo surgir de todos os lados artigos de opinião, crónicas, editoriais onde se pinta uma imagem dantesca do mesmo. Ditador, déspota, corrupto, etc. É um facto que Angola, como muitos outros países produtores de petróleo, não escapou ao chamado “Dutch Desease” – com todas as consequências negativas que daí resultam.

No caso particular de Angola, as consequências foram ainda mais desastrosas pelos efeitos acumulados da guerra, de uma economia enfraquecida por anos de politicas económicas centralizadoras, em que o Estado era ao mesmo tempo o maior produtor, comercializador e controlador… Estado esse que à data da independência se encontrava fragilizado e inoperacional (o funcionamento do aparelho de estado dependia em grande parte dos portugueses, que entretanto se tinham retirado de Angola) e cuja operacionalidade levou muitos anos a repor.

É, pois, um facto que o “boom” do petróleo não trouxe aos angolanos a prosperidade que todos esperavam. É um facto que as práticas de corrupção e nepotismo atingiram níveis chocantes. É um facto que tudo isso aconteceu na vigência dos seus mandatos do Presidente José Eduardo dos Santos. É um facto que muitas das pessoas que rodeavam o Presidente, familiares ou não, beneficiaram de tais práticas de corrupção.

Citando um artigo recente de Jonuel Gonçalves (Jornal Publico – 22.07.2022) …” Foi um período de perto de uma década crucial para compreender a formação da nova burguesia angolana. Crucial no encaminhamento porque na prática não teve nada de diferente das outras formações de classes ou grupos ou segmentos no resto do mundo. Como disse Paul Krugman, numa palestra em Luanda, ‘isto raramente foi feito de mãos limpas’. É um facto que oportunidades houve, em que toda esta situação poderia ter sido revertida, ou pelo menos atenuada. Tal não aconteceu. Como dizia o meu amigo Gerald Bender …’ MPLA never lost an oportunity to loose an oportunity’…”

É um facto que Angola viveu praticamente em guerra desde a Independência até 2002. É um facto que Angola sofreu invasões dos exércitos Sul Africano e Zairense. É um facto que, sobretudo a seguir às eleições de 1992, a guerra resultou na destruição de grandes infraestruturas produtivas e vias de comunicação. É um facto que as negociações de Nova Iorque, que levaram à Independência da Namíbia, e a subsequente libertação de Nelson Mandela foram consequência directa da derrota da África do Sul em Angola, e dos esforços diplomáticos do Presidente José Eduardo. É um facto que o Presidente José Eduardo afirmou com independência e dignidade o nome de Angola na comunidade internacional. É um facto que, depois da morte de Jonas Savimbi não se disparou mais um tiro de guerra em Angola. É um facto que no mandato de José Eduardo dos Santos a pena de morte foi abolida em Angola.

É um facto que quando ocorreu a morte de Jonas Savimbi, a questão foi tratada com o máximo de discrição e dignidade por parte do Presidente José Eduardo. Não foi permitida qualquer manifestação pública, nem o Governo manifestou qualquer júbilo por tal facto – afinal tratou-se de uma vitoria militar! Isto ao contrário do que diz um comentador do jornal Expresso “…Depois da exibição pública da morte de Savimbi, também comprou a UNITA e reforçou assim o poder do MPLA…”. É um facto que não obstante as invasões estrangeiras, a guerra muitíssimo violenta e destrutiva contra a UNITA em Angola nunca foi imposta a lei marcial.

É um facto que a paz que se seguiu à morte de Jonas Savimbi, permitiu a total integração dos elementos da UNITA quer nas forças armadas quer nos serviços públicos e na sociedade civil. Quem não sabe que dezenas de generais e dirigentes da UNITA poderiam ter sido mortos na parte final da guerra que culminou com a morte de Savimbi? Não há memória em África de uma transição tão pacífica como esta. Será que esta transição pacífica resultou da compra da UNITA pelo Presidente José Eduardo – como diz o mesmo comentador, ou será que resultou de uma política deliberada e implementada de forma consequente?

É um facto, como já disse, que o aparelho de Estado em Angola se encontrava em frangalhos por alturas da Independência. É preciso fazer notar que, em Angola, ao contrário de outros territórios coloniais, os portugueses preenchiam toda a escala de postos de trabalho – desde empregados de bar até professores universitários. Por isso mesmo, quando os portugueses se retiraram houve o colapso da administração pública e de muitas empresas e serviços.

Foi no mandato do Presidente José Eduardo que a administração do Estado foi reposta em todo o território nacional. Angola é um país com 1.246.700 km2. É obra repor a administração do território num país com esta dimensão, e com a escassez de quadros que resultou do processo colonial. É também e sobretudo por isso que Angola não é um Estado falhado. 

É um facto que em Angola foram realizadas eleições em 1992, 2008, 2012 e 2017. Não foi seguramente responsabilidade do Presidente José Eduardo a UNITA ter perdido as eleições em 1992 e ter recusado o resultado das mesmas (resultado esse aceite pelas Nações Unidas). A este propósito vale a pena mais uma vez citar o artigo de Jonuel Gonçalves no Público …” Após Bicesse, José Eduardo e o seu partido venceram as primeiras eleições democráticas muito ajudados pela campanha da UNITA, que recorreu a símbolos militares num país cansado de guerra e revelou grande desconhecimento das mudanças operadas na economia e sociedade angolanas naqueles 15 anos. Nessas eleições, José Eduardo venceu na primeira volta, mas aceitou um acordo de bastidores que lhe tirou a percentagem suficiente para ficar ligeiramente abaixo dos 50% e, portanto, oferecer a segunda volta a Savimbi. Nem isso evitou a segunda guerra civil…”

Mas foi responsabilidade do Presidente José Eduardo o MPLA ter ganho as eleições em 2008, 2012 e 2017. Haverá seguramente outros, mas são estes, em meu entender, os pontos marcantes do mandato do Presidente José Eduardo. Isso não o absolve, ou melhor, não desculpa os pecados e excessos que cometeu, mas dá-lhe direito ao reconhecimento e ao respeito por aquilo que alcançou.

Algumas das pessoas que hoje comentam o Presidente José Eduardo, nunca tiveram de exercer a coragem de hipotecar os melhores anos da sua juventude para defender e lutar pela liberdade da sua pátria, nunca experimentaram a angústia de viver num país em guerra, a angústia de tomar decisões que poderiam ou não resultar na morte de pessoas, nunca sentiram o peso da responsabilidade de ser o último a decidir…

Não foi por acaso que ao longo do texto sempre usei a expressão Presidente José Eduardo dos Santos, e não simplesmente José Eduardo. É por reconhecimento, por respeito!

Mário Pizarro Lisboa, Julho de 2022

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