quarta-feira, 14 de setembro de 2022

JOÃO DE BRITO: "AS PESSOAS NÃO PENSAM NA CULTURA COMO UM DIREITO"

Ana Patrícia Silva | Setenta e Quatro

O Estatuto dos Profissionais da Cultura suscita mais receios do que entusiasmo. Com ele questiona-se um cenário de precariedade no sector, um acesso cada vez mais escasso em certas zonas do país e políticas públicas que "só remedeiam" as suas fragilidades. O Setenta e Quatro falou com o ator e encenador João de Brito para entender estas realidades. 

ENTREVISTA 

Aprovado há nove meses, em outubro de 2021, o Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura não está a ter um início de vida frutuoso. Apesar de corresponder a uma das reivindicações mais antigas do sector, em parte acelerada pela crise laboral decorrente da pandemia, as críticas não param de ganhar amplitude e explicam a fraca adesão ao novo regime contributivo e fiscal criado para os trabalhadores deste ramo cheio de especificidades. Com pouco mais de dois mil profissionais registados, de acordo com o Ministério da Cultura, o desejo de fazer do sector um combate à precariedade cai por terra quando comparado com o universo dos profissionais da Cultura que atinge os 150 mil. 

Sindicatos, associações, artistas, produtores, gestores e advogados afirmam que o diploma desenhado e aprovado no mandato da ex-ministra da Cultura, Graça Fonseca, exige demasiado aos trabalhadores e às estruturas do sector. Não só em termos de burocracia mas sobretudo no que diz respeito às taxas contributivas.

A estes dados soma-se ainda o facto de a grande maioria dos portugueses (75%) considerar que o Estado deveria investir mais em Cultura, “coisa que não deveria de ser surpresa após o governo declarar um investimento abaixo do 1% no sector cultural”, afirma o ator e encenador João de Brito. 

O ainda mediador e programador cultural não é desconhecido a quem segue os palcos e atenta a televisão. Deu vida a Otelo de Saraiva no filme Salgueiro Maia - O Implicado. Subiu a grande parte dos palcos portugueses vindo diretamente de Faro. Trabalhou com as mais diversas companhias de Teatro, entre elas Artistas Unidos, Companhia Experimental de Cascais, Teatro dos Alóes, Formiga Atómica, Projeto Ruínas e, mais tarde, com a Companhia Experimental do Porto. Expondo uma voz expressiva com uma pronúncia que não recusa o lugar de onde vem, faz circular à sua volta inúmeros impulsos que partem de um caminho que começa pela relação da Cultura com a Educação, passa pelas políticas públicas e não cede à descentralização. 

O Setenta e Quatro encontrou-se com o ator na Boutique da Cultura, em Lisboa.  Sem acertar grandes horários, mas com muitas palavras a dizer, depois do ensaio da Casa de Bonecas, uma peça em exibição no Teatro Villaret até 19 de setembro, um café atrás do outro levou à longa conversa sobre a precariedade na Cultura e o pouco que tem sido feito pelos sucessivos governos para que assim não continue. 

A importância de se trabalhar a Cultura em colaboração com a Educação é algo que tem reforçado na sua bagagem. Desde a primeira edição do Festival Mochila às oficinas nas escolas, estamos perante portas que continuam entreabertas?

Sim, sem dúvida. Não posso deixar de falar do Plano Nacional das Artes que apresenta ideias lúcidas e importantes de estreitamento de caminhos, mas só no plano logístico, tendo um investimento financeiro quase nulo. É difícil, porque não há um financiamento específico, ou o que tem é muito pouco. No entanto, acredito que pode evoluir. Há um trabalho logístico e de agregação que se tenta trilhar com as escolas, as estruturas e os equipamentos culturais.

As escolas estão cheias de iniciativas a acontecer e isolam cada vez mais esta luta para se  inserir a Cultura. Os professores estão cheios de matéria para dar. Os timings são curtos. Há toda uma burocracia gigante que tem de ser quebrada. Muitos professores e professoras das mais diversas disciplinas não estão "chipados" para a área artística. Começamos logo por cima. Se os professores não se permitem agilizar tempo e oportunidades para trabalhar connosco, os alunos também não vão estar.

É por isso que tem de haver um diálogo maior para se quebrar esta pedra que está a ser lapidada. A parte artística tem de estar mesmo próxima da Educação, até para a compreensão também dos nossos timings. Nós percebemos melhor as metodologias da escola, estamos mais dentro das matérias e esperávamos que, em resposta, cooperassem neste trabalho, onde o outro lado estaria mais a par do que queremos trabalhar ou das propostas que queremos fazer. Mas isso não acontece.  

Sinto que no Algarve, onde estou mais próximo da Anabela Conceição [coordenadora Inter-Regional do Plano Nacional das Artes], tem-se feito um trabalho meritório e de esforço. Há a preocupação em agregar os agrupamentos, permitindo-lhes fazer parte deste plano para que se chegue a determinado lugar. De repente há um intercâmbio direto com todas as escolas e com todas as turmas. E isso não deixa de ser positivo. Neste panorama há também a preocupação de facilitar a circulação de espetáculos em escolas e, essencialmente, o diálogo através de projetos que levam os artistas a trabalhar diretamente com os mais jovens. Temos programas onde um artista está quatro meses a trabalhar junto da comunidade escolar e isso, por si só, espoleta uma ligação direta dos alunos para com as artes, ou com um artista específico que vive daquilo. Mas este é um trabalho que está longe de chegar a todas as escolas ou comunidades.      

Há uma necessidade de aproximar as estruturas destes lugares. O objetivo deveria passar por começar com uma conversa – “quem é esta pessoa?”, “de onde vem?”, “que trabalho faz?” - e depois, aos poucos, haver uma formação, um estreitamento, uma mediação. O que vemos é uma falta de preocupação de mediar as escolas e as estruturas de Teatro. Falo pela experiência particular com o LAMA Teatro.

Destaca um plano bastante específico, mas esta instabilidade de ação ou de inserção das escolas também exigiria uma reformulação total dos programas curriculares, o que já é debatido há anos.

É muito bonito dizer e, aliás, diz-se de facto, que este é um trabalho essencial. De certa maneira, as estruturas tentam, mas a dificuldade de derrubar burocracias torna-se cada vez maior. Fazemos ações e intervenções que muitas vezes deviam ser feitas pela câmara ou pelas juntas de freguesia. O bater à porta, o conversar, o disponibilizar meios para levar os alunos a frequentar equipamentos culturais e, acima de tudo, permitir-lhes um acesso que é seu por direito.

Tudo isto parte das pequenas estruturas, que têm de se desdobrar em mil coisas. E não falo só da minha, mas de outras que conheço que, no pouco tempo que dispõem, ainda têm de ir às escolas, manter o contacto, mandar e-mails, fazer follow-up, conversar. Fazer um trabalho base que, muitas das vezes, é da estaca zero, quando já devia estar na estaca dois ou três. E isto é ainda pior em lugares fora das metrópoles.

Olhemos para a realidade algarvia. Há diferenças significativas no acesso à Cultura?

Claramente. Há um desinvestimento brutal na Cultura em grande parte das cidades do Algarve. Diria que Faro, Loulé, Lagos, Lagoa são os poucos lugares que apresentam alguma diversidade cultural continuada e, mais do que isso, acesso a ela. As outras cidades têm alguma programação, mas investimento de raiz, de estruturas que tenham condições para trabalhar, que os equipamentos funcionem com uma regularidade, há três ou quatro cidades. O resto é um marasmo gigante e não há um pensamento central também que coordene isso. A grande preocupação é sempre o show-off do Verão.

365 Algarve [programação cultural que complementa a oferta da região] ter desaparecido foi claramente um reflexo de indiferença ao desenvolvimento cultural. Era um programa do Turismo de Portugal e, por sua vez, do Turismo do Algarve, que contava com uma ligação direta com a Direção Regional da Cultura. Em quatro edições mobilizou projetos de cariz turístico e cultural na época baixa. Tratava-se de um milhão e meio de investimento que dava apoio a cerca de 20 projetos. A evolução que se presenciou foi notável. Havia  sempre eventos a acontecer, desde o cinema, à música, ao teatro, à dança, ao circo, à gastronomia. E todas estas iniciativas vão morrer porque esse financiamento deixou de existir. 

É importante perceber que não há uma consequência política central e, por sua vez, não há como pegar numa coisa que foi bem feita e dar-lhe continuidade. As estruturas que já existem ficam ameaçadas e outras acabam por morrer. Vão-se diluindo. Não há dinheiro para sedimentar projetos. 

É interessante dizer isso, porque em fevereiro deste ano foram apresentados os resultados preliminares do Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais. Os factores de desigualdade e exclusão são mostram-se preocupante porque há pessoas que chegam a afirmar não ter conhecimentos para desfrutar da oferta cultural.

Quem assume esta realidade não são os empresários e os profissionais liberais, mas os operários de serviços. Os grupos que não têm essas ferramentas, e que são transversais a todas as categorias socioprofissionais, mostram sempre práticas culturais bastante inferiores à média nacional. Isto é grave. Depois tens situações como Faro, em que o problema é as pessoas dizerem que lá não acontece nada, porque na verdade não procuram.

"O país está feito para que a classe média seja chacinada. A classe baixa já passa por dificuldades há muitos anos e as pessoas não têm tempo de lazer."

O desconhecido mete muito medo e esta coisa de não terem capacidade intelectual - se é que é preciso - para ver um espetáculo de teatro mais experimental, levando à sua recusa, começa a ser até uma incapacidade que não é real. É importante falar sobre o não saber.

Num país em que a maioria da população passa um ano sem ler um livro, os hábitos de fruição e participação cultural ainda são privilégio dos mais ricos, dos mais novos e dos mais escolarizados.

Onde está a raiz deste problema? De que forma podemos caminhar para chegar à solução?

É muito mais complexo do que isso. É importante perceber que insistir em pôr a Cultura num patamar de erudição não permite que ela chegue a todas as pessoas. É importante perceber também como divulgar os espetáculos, como falar neles de uma forma mais descomprometida. Não quer dizer que seja uma lei ou uma forma correta. O Teatro já deixou de ser uma coisa de elite há muito tempo. Entre a comunidade também tem de deixar de o ser. E tudo isto parte de cima.

Se numa televisão ou num debate não vês o tema Cultura ou Arte ser pronunciado por parte de quem nos governa, de quem quer governar e pelos deputados, como podemos pedir a uma sociedade que não se sinta deficitada?

Sem ser o Bloco de Esquerda ou o PCP, que às vezes lançam alguma problemática sobre a Cultura, mais nenhum partido ou instituição fala sobre o tema. E, normalmente, é sempre uma problemática, nunca é uma medida pensada e analisada previamente. As temáticas nunca são levadas ao espaço público. Nunca surge um pensamento sobre o que podemos melhorar, é sempre uma coisa já em défice. É o que falta aqui. Tudo surge em torno da forma como fomos maltratados, o estatuto [profissional] que nunca foi levado avante ou perceber o que falta para podermos estar noutro patamar. Nunca é uma medida de pensamento sobre, mas sim uma medida de remediar. De resto, não é nada falado. As pessoas envolvidas nas suas vidas não vão falar sobre isso e é normal que não se preocupem.

Em situações de exceção, a conversa que surge é em torno dos apoios, por exemplo. E é também preciso entender que não se trata de um apoio, mas sim de um investimento distribuído para pagar a pessoas, hotéis, trabalho artístico, disseminar o trabalho por vários sítios. Este dinheiro não é um apoio, mas  um investimento que o Estado faz para fazermos serviço público.

Falta trabalho de proximidade e é também um espelho de muita falta, até por parte dos órgãos de comunicação social. Na televisão, e não só, não tens jornalismo sobre espetáculos para miúdos, por exemplo. É um sarilho haver uma entrevista, falar sobre espetáculos para a infância.

Há uma falta de interesse ou uma desvalorização?

Há uma falta de conhecimento e um não querer. Como não conhecem ou não sabem abordar a temática, simplesmente não falam. Quem não tem do seu lado o privilégio depois vê-se num beco sem saída.

Ainda assim, há também estruturas que tentam ter e atuar em força em projetos incríveis que acontecem em bairros sociais, em comunidade e isso é sobre a urgência de dinamizar, mediar e escavar ferramentas que nos ponham mais próximos uns dos outros.

Ao longo desta conversa foi destacando o direito à Cultura. Acha que há quem ainda se esqueça que é, de facto, um direito?

Tenho muitas vezes esta conversa. As pessoas que não são do universo cultural não pensam sobre isso. As  pessoas da área Cultural é que pensam sobre a Cultura. É triste, mas é verdade. As pessoas não perdem tempo sem ser em programação de massas. És capaz de ouvir um diálogo sobre o Paredes de Coura ou um festival maior que envolve um tipo de logística diferente. E o resto? As pessoas não pensam que seja um direito, até ao momento em que se cruzam com um espetáculo no meio da rua.

Num cenário como o que vivemos hoje, o pensamento primordial nunca é a Cultura. Vivemos num país que poderia ser gerido de uma outra forma. As pessoas vivem nesta azáfama da vida ser difícil e não têm tempo para pensar sobre outras coisas. Estão preocupadas com o ganha pão do dia-a-dia. O país, neste momento, está feito para que a classe média seja chacinada. A classe baixa já passa por dificuldades há muitos anos e as pessoas não têm tempo de lazer, de questionamento, de pensar sobre isso. Perdem liberdade para pensar noutras coisas. A isto junta-se uma precariedade que estraçalhou uma nova geração que não tem perspectivas nenhumas.

Sente que o véu sobre a precariedade na Cultura foi levantado com a pandemia? Qual foi a sua experiência nesse período?

Em parte, tivemos [o LAMA Teatro] sorte porque tínhamos ganho o apoio da DGArtes e conseguimos que não mexessem com isso. A candidatura manteve-se e conseguimos manter a base dos serviços mínimos.

Conseguimos ter a sorte de ter um ordenado, mas o LAMA levou um grande abalo. Dependemos muito da venda de espetáculos para termos algum retorno ou estabilidade financeira. Paramos tudo e, mesmo no meio disso, fomos privilegiados por ter dinheiro para manter os lugares de trabalho. Mas houve um retrocesso grande no crescimento. Presenciamos uma estagnação assustadora que está a regressar muito aos poucos.

O Estatuto de profissional da Cultura veio tentar colmatar isso. Sente que não passou disso, de uma tentativa?

Sem dúvida. Uma tentativa muito falhada. Não houve um esforço para dialogarmos, o estatuto não foi determinado por quem conhece o nosso meio. Esta coisa da obrigatoriedade dos contratos de trabalho é ótima, mas eu estou dos dois lados e vejo que há muitas questões à volta. Consigo olhar para esta realidade como pessoa contratada e de uma estrutura contratante. Facilmente percebemos que quem beneficia é somente o Estado, por causa dos impostos. Claro que podemos recorrer aos direitos que temos passado um período, mas só esta fase da contratualização vai ser super prejudicial e vai criar uma guerra no meio. Já a estamos a presenciar.

Como assim?

Há um ordenado que é estabelecido para um trabalhador a tempo inteiro, onde, por norma, as pessoas não estão habituadas a esse tipo de trabalho. Olhando para o Teatro, há pessoas que trabalham dois períodos de ensaios, mas se trabalharem só um, as estruturas são obrigadas a contratar-te a tempo inteiro. O que fazes nessas horas?

No entanto, se te contratar só para quatro horas, há estruturas que vão pagar part-time e as pessoas não estão habituadas a isso. Tudo o que são  trabalhos continuados implica um contrato de trabalho, o que é bom, mas não protege grande coisa e as estruturas ficam extremamente negligenciadas.

O estatuto foi feito à imagem da lei do trabalho e até aí está tudo bem, mas não foram considerados vários aspectos que se distinguem de um outro meio qualquer. E isso vai ser muito problemático a longo prazo. Os ordenados vão baixar, mais impostos para pagar, as pessoas vão reclamar mais, porque vão receber menos e as ‘guerras’ com as entidades empregadoras vão começar. Vai ser muito difícil manter um salário digno.

Olhando para esta situação de forma prática, os recursos financeiros para produzir uma peça hoje mostram-se mais escassos dadas as medidas que o Estatuto veio aplicar?

Sim, completamente. Tu pagas cerca de 20 e tal por cento de imposto ao Estado sob a pessoa contratada, mais os 5% que cada pessoa paga. No entanto, o orçamento que te é dado não aumenta face a estes impostos. Além de as compensações, como o subsídio de desemprego, as licenças de maternidade, entre outras, ainda estarem em análise, ainda estamos a ver como vai funcionar. Não conheço ninguém que tenha falado sobre isso, até porque as estruturas ainda estão a tentar perceber como vai acontecer. Acredito, infelizmente, que há malta que vai ficar pelo caminho, a falta de trabalho vai aumentar, porque há menos dinheiro para a execução dos projetos. 

A ideia inicial do estatuto era boa. A necessidade de tomar decisões circulares e de terem deixado de comunicar com as associações foram os maiores erros cometidos. Quando vimos que o estatuto entrou em vigor já com o orçamento aprovado, foi outro tiro no pé. Tivemos de reformular tudo para conseguir pagar ordenados e suportar impostos. 

Podemos então considerar que o estatuto, neste momento, não conseguirá agir face aos seus objetivos primordiais: combater a desregulação do sector, a precariedade e dar proteção aos profissionais da cultura? 

No início, pensei genuinamente que estaria a cair na ironia. Com ou sem contexto são declarações graves e mostra-se um chavão daquilo que se espera ser e que interessa que não seja dito.

"O problema do sector da cultura não é a falta de contribuições para a Segurança Social, até porque elas existem, são cumpridas e representam uma enorme percentagem dos cachets dos trabalhadores."

A Cultura é um meio que dá dinheiro e que gera riqueza. Influencia o país no desenvolvimento económico e social, mas isso não interessa. Apenas conta em números. Não interessa para mudar medidas, o que tira também força junto das entidades competentes. 

Olhar para a cultura em Portugal como ponto de partida para o seu crescimento é ter a visão certa, porque, de facto, os números provam isso mesmo. Mas ao mesmo tempo há um histórico que não deixa dúvidas.

A nomeação de Adão Pedro Silva foi tão surpreendente quanto a anterior nomeação [de Graça Fonseca]? 

Eu conhecia o nome e a cara deste ministro pelos comentários desportivos e como comentador nos média, mas antes de analisar dou sempre benefício da dúvida. 

O grande problema foi sempre pôr em primeiro plano a informalidade nas relações laborais e o desafio do estatuto por parte do Estado. 

O problema do sector da cultura não é a falta de contribuições para a Segurança Social, até porque elas existem, são cumpridas e representam uma enorme percentagem dos cachets dos trabalhadores. O problema do sector da cultura é a enorme precariedade a que está entregue: cachets e salários extremamente baixos, falsos recibos verdes, falsos outsourcings, desregulação, falta de contratos de trabalho, falta de proteção social nas eventualidades e impossibilidade de acesso a subsídios por não se cumprirem as condições de recurso.

Foram raras as vezes em que vi ou tive um contrato de trabalho. A maioria achava que não tinha direito a um. O documento aprovado não responde às necessidades das pessoas que trabalham na cultura e por isso, não podemos esperar uma evolução positiva a longo prazo. Entristece-me perceber isso.

A gratuitidade dos museus sofreu também alterações. Chegou a dizer-se ser um retrocesso considerável.

A ideia de capitalizar tudo para obter resultados imediatos é degradante. Não faz qualquer sentido modificar esta medida de gratuitidade de visita dos espaços públicos só até às 14h quando a maior parte das famílias portuguesas sai para frequentar este espaço pela tarde. Falamos de monumentos e de equipamentos públicos.

Há todo um trabalho de mediação em que abres as portas para as pessoas reconhecerem um espaço, ou um artista, e inserirem-se no meio para que haja uma maior compreensão. Para que se torne um hábito frequentar a Cultura, ter acesso a ela. Tirar uma tarde de domingo para faturar é elevar o patamar a uma necessidade de mercantilismo extrema. E falo em extrema, porque para muitas famílias, ainda seria aquela tarde de domingo o único meio de fazer chegar a cultura a um filho, a um pai ou a qualquer outra pessoa. É muito triste, mas tornou-se transversal fazer contas, apresentar números e esvaziar bolsos. 

Paremos para pensar: os monumentos faturam imenso. A Fortaleza de Sagres, por exemplo, tem milhares de visitas por ano. Se o dinheiro que esses espaços ganham fosse injetado para as estruturas de cada zona, seria o mundo ideal. Mas não. Aquilo é canalizado para o poder central e depois distribuído conforme os seus critérios. 

Até que ponto pode ajudar a que haja uma mudança se virmos a Cultura como um serviço? 

É uma boa pergunta. É uma incógnita que não pode ser transversal a todos os meios. Tendo em conta o Teatro, eu preocupo-me com o retorno financeiro. Mas é um pensamento difícil. No geral, não nos preocupamos tanto quando temos um investimento inicial, mas é muito difícil o trabalho que se faz. Da experimentação, de todo o tipo de abordagem em que facilmente chamas as massas. É difícil conseguir que seja um serviço que te dê realmente um retorno financeiro. Portanto, nem eu sei bem até que ponto pode gerar mudança.

Falava da importância da agregação na Cultura e de uma inclusão social que não pode ser fugaz. A peça Casa de Bonecas foi encenada por si e tem passado por grandes salas de espetáculos abordando um movimento que considera ser realmente muito importante: o feminismo. Um ano passou desde a primeira vez que foi levada a palco. Que evolução revê nesse período?

Na verdade, nunca pensei que a peça tomasse as proporções que tomou. Enchemos salas de espetáculos e causamos desconforto até pela frieza, diria, que a peça tem em si. 

A importância do papel da mulher na sociedade e a sua independência fez com que a heroína da história saísse a meio de cena. O bater de porta que aquela personagem dá tem um simbolismo maior do que alguma vez pensei. Numa segunda leitura, percebi a importância da liberdade de escolha além de todas as reivindicações que a peça vai trazendo e questionando. O não dependermos de ninguém para ser um indivíduo. De haver poucos silêncios e isso tirar-te a tua liberdade de gritar. 

Quando aquela personagem [Nora] fecha a porta e sente-se livre, o que será a vida dela? O que é que fará com aquela liberdade? A partir daquele momento aquela mulher pode ser quem quiser, quando quiser, onde quiser. E isto parece que ainda hoje é algo impossível. 

Enquanto homem criado por duas mulheres, há um longo caminho a fazer. Falamos de um texto do final do século XIX. Passou um século e tu ainda te debates com questões gravíssimas, vês a liberdade das mulheres a ser atentada consecutivamente e a serem submetidas a um mundo de fachada, tóxico, que alimenta padrões cada vez mais preocupantes.

O número de mulheres mortas este ano foi gritante [13 mulheres, quase o total do ano de 2021]. O que cheguei a presenciar pela primeira vez com atos de violência, tão próximas de mim, levaram-me muitas vezes a pensar naquele texto. Quis trabalhar o discurso sobre a importância da desmaterialização da palavra. E isto fez cada vez mais sentido sempre que aquele texto subia ao palco.

Esta peça também pisou os palcos do Algarve.

Esta não, mas a que estamos a ensaiar agora, de seu nome O Valor das Pequenas Coisas, estreia e novembro no mítico Teatro Lethes. 

E como foi trazer um espetáculo que sai da LAMA Teatro a Lisboa sem nunca ter pisado os palcos algarvios?

Como percebeste ao longo do que te fui dizendo, nós fazemos questão que o nosso trabalho tenha um impacto local e regional com a criação de espetáculos, com o trabalho pedagógico, com a proximidade com a comunidade, com a agregação de várias estruturas, a criação de novos públicos, etc. Levamos a bandeira de Faro e do Algarve aos teatros mais importantes do país, mas vivemos constantemente numa incógnita. Andamos pelo Teatro Nacional D. Maria II, Teatro São Luiz, Culturgest, Teatro da Trindade, Teatro Villaret, Teatro Viriato, por festivais importantes, circulamos por todo o país!

Como ferrenho farense e pela dedicação que meto no trabalho, pelas horas que não durmo e pelos milhares de quilómetros que faço para viabilizar tantos projetos com impacto local, regional e nacional, sinto que há alguma falta de reconhecimento local pelo trabalho desenvolvido há mais de uma década. Sou e somos muitas vezes mais reconhecidos fora de casa e isso é estranho.

*******************

APOIE O SETENTA E QUATRO

O Setenta e Quatro precisa de leitoras e de leitores, de apoio financeiro, para continuar. Em troca damos tudo o que tivermos para dar. Acesso antecipado às edições semanais e às investigações, conversas e publicações exclusivas, partilha de ideias e muita boa disposição. 

CONTRIBUIR AGORA

Sem comentários:

Mais lidas da semana