quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Pedrógão Grande, a tempestade de fogo e a infrutífera espera de casar a culpa

Na EN236-1, a culpa ardeu solteira

Pedro Candeias | Expresso (curto)

As coisas são como são: cinco anos depois de um incêndio dramático que matou 65 pessoas, causou centenas de feridos e levou a tribunal onze arguidos por 63 mortes e 44 feridos, o processo terminou com a absolvição integral dos acusados pelo Ministério Público.

Assim, Augusto Arnaut (comandante dos bombeiros), Jorge Abreu (presidente da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos), Valdemar Alves e José Graça (antigos presidente e vice-presidente de Pedrógão Grande), Margarida Gonçalves (gabinete florestal de Pedrógão), Fernando Lopes (ex-presidente de Castanheira de Pêra), Ugo Berardinelli, José Revés e Rogério Mota (da Ascendi), e Casimiro Pedro e José Geria (EDP Distribuição) foram inocentados pelo Tribunal de Leiria de todos os crimes de que estavam indiciados nos fogos de Pedrógão Grande de 2017.

Para o coletivo de juízes, o aconteceu o que tinha de acontecer, uma inevitabilidade provocada por um fenómeno “raro” e imparável chamado downburst que lá surgiu e que tentarei explicar: uma coluna maciça de vento quente desce vertiginosamente dos céus e espalha-se radialmente ao nível do chão a “velocidades da ordem dos 100 a 130 km/h”.

Ora, isto acrescentou imprevisibilidade num incêndio ocorrido num lugar composto por 72% de manchas densas e ininterruptas de “pinhal, eucaliptal e acácia”. Disse a juíza Maria Clara Santos que, num contexto climatérico destes e sem faixas de gestão de combustível, o combate às chamas é praticamente impossível, independente do número de botas e de meios no terreno - e da coordenação dos mesmos. “A generalidade dos óbitos [...] foram consequência direta do ‘downburst’ verificado”, ponto final.

Para a defesa dos 11 absolvidos, provou-se que foi feito tudo o que era possível naquelas circunstâncias para evitar a tragédia. Para os advogados de 10 Marias, três Antónios e três Anabelas e três Manuéis, e outros 44 nomes e apelidos que perderam a vida, o Tribunal de Leiria falhou.

E agora entra a culpa, conceito católico e também jurídico que costuma ser atirado à fogueira quando as coisas ardem. Marcelo e António Costa foram os primeiros a fazê-lo, logo em 2017, garantindo que a “culpa não poderia morrer solteira” num caso destes. Acabou por arder solteira.

Um representante de seis assistentes, André Batoca, disse que a decisão do Tribunal contrariava “toda a prova produzida em julgamento”, considerando que o “único evento imprevisível e excecional foi a morte das 66 pessoas e as centenas de feridos e tudo o resto deveria ter sido evitado pelos arguidos”.

Leiam agora o que disse o presidente da Liga dos Bombeiros António Nunes, num discurso em futebolês: a responsabilidade não foi do comandante Arnaut, que entrou no Tribunal de Leiria ladeado por uma guarda de honra de homens fardados em continência, mas de um sistema com vários “protagonistas” que os jornalistas conhecem bem. “Estão ao nível o nível das estruturas, do sistema de proteção e socorro, que na altura já existiam e que hoje existem. E devem pedir desculpa por aquilo que fizeram aos bombeiros de Portugal. E eram eles que deviam estar sentado no banco dos réus”, argumentou Nunes. Quem são? O bombeiro não os nomeou, mas é fácil adivinhar.

As defesas das vítimas mortais pedem a justiça que a Justiça não lhes deu; as defesas dos absolvidos, que a justiça repare a injustiça que lhes foi feita durante cinco anos.

No fundo, toda a gente perdeu.

OUTRAS NOTÍCIAS

ENERGIA. Em Portugal – e até dentro do PS – há quem aconselhe António Costa a taxar os lucros considerados excessivos das empresas de petróleo e gás que lucram com o aumento dos preços provocado pela Guerra na Ucrânia. A isto, o primeiro-ministro e o Governo têm respondido de várias formas, numa gradação que vai do ‘nem pensar’ até ‘todas as opções estão em cima da mesa’; a linha oficial diz que é preciso esperar primeiro pelas recomendações da UE e só então agir. Hoje pode ser esse dia, porque é o dia do discurso do Estado da União em que Ursula Von der Leyen poderá anunciar uma “contribuição solidária” de 33% das petrolíferas a reverter para as famílias. Obviamente, “contribuição solidária” é uma suavização para “taxa”, um truque retórico, portanto. [Já que aqui estamos: quer saber por que o gasóleo está mais caro que a gasolina?]

GODARD. Morreu um dos mais influentes realizadores/criadores de cinema. Segundo o “Libération”, citando uma fonte familiar, Jean-Luc Godard morreu numa clínica suíça a seu pedido, não por estar doente “mas cansado”. Partiu aos 91 anos e deixou uma obra singular e revolucionária e um lastro de gratidão.

SNS. Aqui está o homem providencial: Fernando Araújo foi escolhido pelo amigo e colega de secundário investido como ministro da Saúde para a liderança da direção executiva do Sistema Nacional de Saúde. Araújo tem o currículo notável, a obra feita e o consenso da classe do seu lado; a tarefa que terá pela frente é hercúlea.

PIRATAS I e II. Primeiro: um grupo de hackers com o nome de um herói popular nórdico roubou os dados de centenas de milhares de clientes da TAP e despejou informações de 115 mil na deep web; a transportadora avisou a clientela de que poderá correr riscos, a PJ está a investigar o caso desde o início. Segundo: o Ministério Público abriu um inquérito ao furto de documentos da NATO no Estado-Maior-General das Forças Armadas.

ABUSOS. O Patriarcado de Lisboa enviou a lista de padres suspeitos de abusos sexuais de menores elaboradas por um sacerdote denunciante. Por sua vez, a Comissão Independente que investiga estes casos reuniu-se com a Conferência Episcopal; o resultado do estudo destes investigadores deverá ser conhecido em janeiro.

UCRÂNIA. Os serviços secretos ucranianos garantiram que os comandantes do exército e também agentes russos estavam a abandonar a Crimeia. Nos últimos dias, as tropas de Kiev têm recuperado terrenos perdidos durante a invasão iniciada em fevereiro. Isto significa que o equilíbrio de forças na guerra está a mudar? É cedo para perceber.

RAINHA. No Reino Unido, prosseguem o cortejo, o protocolo e as cerimónias fúnebres de Isabel II. Há várias histórias que se cruzam e também algumas dúvidas que se levantam: sendo óbvia a admiração da generalidade dos britânicos pela rainha, pergunta-se até que ponto a sua morte poderá ter sido o início de uma nova era. Haverá outros países longínquos que procurarão a sua independência, como Barbados em 2021? E então a Escócia? E estarão os ingleses prontos a transferir o respeito e o carinho que tinham por Isabel para o filho Carlos? A reportagem do Expresso dá algumas pistas na chegada do corpo da Queen a Londres - e também uma polémica que a série “The Crown” poderá aproveitar se lá chegar em tempo útil.

CHAMPIONS LEAGUE. O Sporting derrotou o Tottenham em Alvalade com dois golos nos últimos minutos marcados por um par de suplentes, um deles do mal-amado avançado Paulinho. Foi, escreve-se na Tribuna, um jogo com uma “pitada de inexplicável”. Já o FC Porto foi derrotado por 0-4 pelo Club Brugge, num encontro que alguns dos seus futebolistas perderam por falta de comparência. Esta quarta-feira, o Benfica joga em Turim contra a Juventus (20h).

FRASES

“O que a justiça decide está decidido, a menos que haja recursos do Ministério Público e não seja uma decisão final”, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o acórdão do julgamento dos incêndios de Pedrógão Grande

“Quando digo festejar um bocadinho é ir jantar fora, às 23h tem que estar tudo a dormir porque somos profissionais”, Rúben Amorim, treinador do Sporting, sobre uma folga dada aos jogadores após o triunfo com o Tottenham

“Nem nos jogos da pré-época fazemos aquilo que fizemos hoje”, Sérgio Conceição, treinador do FC Porto, sobre a falta de atitude no jogo contra o Club Brugge

PODCASTS A NÃO PERDER

Adeus verão, olá Má Língua Manuel Serrão oficializou a sua militância no PS e Júlia Pinheiro diz que aprova. Rita Blanco faz revelações chocantes sobre Marcelo e Rui Zink, toda a gente sabe, é um Deus. Oiça o novo episódio da Noite da Má Língua no regresso das férias

O bom-senso que falta na loucura do futebol português Novo episódio do podcast da Tribuna Expresso A culpa é do Árbitro que se debruça sobre as intervenções do VAR e outros temas da última jornada de futebol

O padre Júlio Lancellotti tornou-se conhecido em todo o Brasil por defender os mais pobres entre os pobres. Tem sido perseguido por grupos de extrema-direita por defender a população em situação de rua. Mais de 100 mil pessoas já assinaram uma petição para o indicar ao Prémio Nobel da Paz. Em conversa com o podcast “Brasileiros, que tal?”, este padre confessa medos e esperanças quanto ao futuro do Brasil

O QUE ANDO A LER

“Napoleão - O Homem por Trás do Mito”, de Adam Zamoyski (ed. Crítica)

O título deste livro diz o que o autor quis fazer dele: despir um personagem quase mitológico como Napoleão de todos os excessos, contos e lendas, e apresentá-lo como um homem como outro qualquer, um produto do contexto onde nasceu e cresce, uma vítima das circunstâncias e também dos seus próprios erros.

O ponto de partida é discutir a genialidade militar de Napoleão, algo que Adam Zamoyski acredita ter sido exagerada pelo tempo e pelo próprio, uma vez que o corso tinha por hábito engrandecer todos os seus feitos, por exemplo, reduzindo o número de baixas das suas tropas e aumentando o dos adversários. Além disso, argumenta o escritor, como pode Napoleão ser um génio depois do desastre no inverno russo?

Recorrendo a fontes primárias, o autor prefere descrever a ascensão de um tipo ambicioso, incansável, corajoso (não poucas vezes encabeçava o pelotão que carregava sobre o inimigo), que passou por cima dos preconceitos (afinal de contas, era um “estrangeiro”), um líder que inspirava pelo exemplo e pela oratória inflamada e que arriscou ganhar batalhas por estudar minuciosamente a cartografia da época - e por tomar decisões inesperadas.

Mas Napoleão também era emocionalmente imaturo, dado a birras, grandes rebates do coração e ataques de fúria inesperados, que procurou sempre o reconhecimento primeiro dos pares, depois do Diretório e a seguir da França e do mundo, pois dentro da cabeça dele vivia um homem que iria libertar os povos e trazer-lhes a luz.

Por hoje é tudo.

Tenha um bom dia dentro do possível, que a chuva é inclemente, e acompanhe-nos no Expresso.

LER O EXPRESSO

Sem comentários:

Mais lidas da semana