Artur Queiroz*, Luanda
Godard, God Art eu te saúdo. Fizeste do cinema uma arte sem tiroteios, sem canastrões, sem histórias da carochinha, sem amores rançosos nos quais o papel da mulher era sempre boneca de carne, boca de beijos cinéfilos, recipiente de esperma ou saco de pancada. Abaixo os melodramas.
Como artista de variedades retirado, sinto a tua perda como os escravos sentem a morte da rainha que esteve 70 anos no poder e só largou o osso quando deu o peido mestre. O filhote, coitado, está careca, atacado pela gota, coxo, corcovado e com um esgar de atrasado mental. Prometeu seguir as pegadas da mamã o que vai fazer dele um rapaz com 140 anos, para mais, nunca para menos.
No meu tempo o cinema era mediatizado pela revista Cinelândia, com mexericos, casamentos e divórcios, de um lado. Do outro, a Chaiers du Cinéma, que eu assinava. Pedi muitas vezes dinheiro emprestado para pagar a assinatura, Foi nessa catedral da sétima arte escrita que conheci Jean-Luc Godard.
O cinema francês era um luxo. Amigava com o Nouveau Roman. Fui ver que escrita feria o papel e violava conformismos. Encontrei Alain Robbe-Grillet. Bebi garrafas de Evel e Grão Vasco, no tempo das vacas gordas, lendo em voz alta, para os meus amigos de copos e truz, parágrafos das suas obras, em francês.
O Nuveau Roman chegou ao cinema
na Rive Gauche e o primeiro construtor de consciências dolorosas foi Alain
Resnais com as suas obras Hiroshima Meu Amor e O Ano Passado
Sempre que via um filme de Godard remexia-me na cadeira, sentia um tremendo incómodo e de cena em cena, de plano em plano, perguntava a mim próprio se merecia aquele arte suprema. Uma tragédia, se tivermos em conta que sou um artista de variedades fracassado. Comecei como partenaire de uma bailarina que se despia no Bambi (era anunciada pelo professor Feruza como bailarina frívola). Perdi o emprego porque me peguei à pancada com uns roceiros, podres de bêbados, que queriam apalpar a artista. Impedi, galhardamente.
Mais tarde arranjei lugar num conjunto suburbano, tocando dicanza. Nos salões da Terra Nova chamavam-me o rei do reco-reco. Em Paris fiz a minha estreia no cinema. O realizador Philippe de Broca estava a fazer os exteriores de um filme. Eu vendia a última edição do jornal France Sor, entre a Concórdia e a Place Pigalle. As putas chamavam-me jeune home e compravam vários jornais que atiravam logo para o lixo. Queriam apenas aliviar-me o peso. Muito gentis.
Nesse tempo usava um casacão até aos pés, comprado no Marché aux Puces, um boné maoista e os jornais eram guardados num sacão amarelo. Ia a passar à frente de um café, apregoando a dernière edition e uma menina bem-parecida chamou-me. Era da produção. Veio um sujeito bem penteado, negligentemente vestido, e disse que precisava de mim para uma cena. Eu devia entrar no café, sem o sacão dos jornais, olhava à volta, voltava a olhar e saía apressadamente. Só isso. Ofereceu-me 20 francos. Eu disse logo que por menos de 50 não alinhava. Sou um artista de variedades, quand même!
O gajo pagou os 50 e eu entrei, saí e continuei a apregoar a última edição do France Soir. Confesso que nunca vi a cena. Por isso nada vos posso dizer sobre o meu desempenho. Mas hoje, que perdi Godard, tenho a certeza de que me saí bem. Não foi por acaso que vi os seus filmes e fui assinante da Cahiers du Cinéma.
Je te Salue Godard!
*Jornalista
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