domingo, 16 de outubro de 2022

Angola | TRABALHO E DESCANSO NA CASA DAS ARTES – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A Nação funciona e o seu estado não inspira cuidados especiais. Nos tempos que correm, isto é excelente. Enquanto a União Europeia se tornou política e diplomaticamente irrelevante assumindo a sua condição de instrumento de guerra, João Lourenço, no seu discurso sdobre o Estado da Nação, pôde falar de uma Angola que é campeã da paz, de uma União Africana que recusa a indiferença, de uma SADEC que constrói pontes e rasga novos caminhos de cooperação, das perspectivas de paz e desenvolvimento nos países dos Grandes Lagos. Enquanto Angola liderada por João Lourenço e o MPLA conta na região, no continente e no mundo, a ONU está transformada num instrumento de agressão ao serviço dos EUA. 

O discurso sobre o Estado da Nação, que abriu os trabalhos parlamentares, foi muito bom. Mas só vou realçar dois asectos. O primeiro, importantíssimo, tem a ver com o compromisso do Estado na preservação dos princípios e valores do Jornalismo Angolano através do sector público, definindo assim o padrão de actuação. Fundamentalíssimo! Sobretudo quando a comunicação social está dominada pelo banditismo mediático expresso nas redes sociais e nas publicações electrónicas. Dominada pela direcção do Sindicato dos Jornalistas e pelo seu representante na ERCA. Dominada pela proliferação de títulos que ninguém sabe quem paga. 

João Lourenço foi ao pormenor de nomear as acções a desenvolver na Rádio Nacional de Angola, na agência noticiosa ANGOP e na Empresa Edições Novembro. Para que ninguém tenha dúvidas de que a comunicação social não vai cair na rua nem estará disponível para os compradores acoitados nas embaixadas da União Europeia ou dos EUA em Luanda.

Ontem, o representante do Sindicato dos Jornalistas na ERCA publicou um relatório de camionista onde teve a ousadia de especular sobre o mandato do Presidente João Lourenço. Para o bêbado da valeta há dúvidas se este vai ser o seu último mandato! Isto é intriguismo barato, acéfalo, irresponsável. Porque um político só pode cumprir dois mandatos presidenciais seguidos. Alguém que representa os Jornalistas Angolanos na ERCA mostra a sua honra, a sua dignidade, o seu respeito pelos códigos de conduta, fazendo intriga ao serviço dos donos.

Este “conselheiro” da ERCA já se embebeda com pouco, por isso fica baratinho. Mas há outros que são de alto consumo. Por isso, fiquei particularmente satisfeito quando o Presidente da República anunciou alterações legislativas na ERCA e no Estatuto do Jornalista. O Jornalismo Angolano tem um passado riquíssimo. A História Contemporânea de Angola foi também escrita por dezenas de repórteres de nas frentes de combate na guerra pela soberania nacional e a integridade territorial. 

O Jornal de Angola é uma das marcas mais valiosas do país. A Rádio Nacional também. Já agora, a TAAG. A nossa companhia de bandeira, como marca, tem um valor incalculável. O filho do Cacau e seus capangas ainda não compreenderam isso. Mas uma comunicação social isenta, responsável, rigorosa e profissional vai mostrar que debutantes da profissão, oportunistas descaradas e descarados, incompetentes encartados, nada valem. O Jornalismo Angolano nestes cinco anos vai ficar ainda mais forte. As manobras para atirar com o sector para as ruas da amargura, falharam. Neste particular, o Estado da Nação é excelente.

O anúncio do Palácio da Música e do Teatro também me agradou e muito. Ainda que me tenha deixado muitas dúvidas e ainda mais inquietações. O Presidente João Lourenço afirmou que a antiga sede da Assembleia Nacional vai ser a futura casa da música e do teatro. Com o devido respeito, esta informação está envenenada. Truncada. Perigosamente manipulada.

Aquele edifício é a antiga sede da Assembleia Nacional, sim. Mas até à Independência Nacional era a mais importante sala de espectáculos de Angola. A maior. A mais bem apetrechada. A mais luxuosa. A que tinha uma programação mais cuidada. Chamava-se Cine Teatro Restauração! Em homenagem à libertação de Angola dos ocupantes esclavagistas holandeses, por Salvador Correia de Sá e Benevides.

O Restauração, em 1961, foi palco do primeiro espectáculo radiopublicitário que existiu em Angola. Chamava-se Chá das Seis. O apresentador e realizador era Artur Peres, que escolheu como partenaire uma jovem a dar os primeiros passos na Rádio, Alice Cruz. Alguns meses depois era a voz feminina mais importante do panorama radiofónico angolano. Artur Peres foi um enormíssimo artista da Rádio. Tinha a noção exacta de que o espectáculo da voz é o mais belo do mundo. Grande Peres foste o maior!

No palco do Restauração, uma vez por semana, Peres e Alice punham Angola com os ouvidos colados aos receptores de rádio. O programa tinha uma orquestra privativa, regida pelo maestro Casal Ribeiro. Uma das rubricas mais importantes era dedicada à descoberta de novos valores no “show bizz”. A grande Jenny, cantora do Bairro da Cuca, foi descoberta pela dupla Peres-Alice.

O Restauração tinha uma sala luxuosa, com primeiro e segundo balcão, frisas e camarotes, além da ampla plateia. Possuía um palco apetrechado para o teatro com fosso de orquestra e buraco do ponto. Nesse “buraco” aconteceu uma das cenas mais saborosas da Rádio Angolana. O cantor e actor francês Charles Aznavour veio actuar a Luanda e só podia ser no palco do luxuoso Restauração. 

Na época, o talentoso Paulo Cardoso pontificava na Rádio Eclésia, depois de uma experiência dolorosa na Voz de Luanda, com o Pedro Moutinho. David Mestre, Horácio da Fonseca e este vosso criado davam lá o seu contributo.´

O Paulo anunciou que o espectáculo de Aznvaour ia ser transmitido em directo na Rádio Eclésia. O padre Zé Maria (director da estação) quis saber como foi possível tão importante exclusivo mas o Paulo Cardoso disse que era segredo. A empresa que explorava o Restauração emitiu um comunicado informando a opinião pública que o espectáculo do cantor francês não passava na rádio.

O pano subiu e Aznavour começou a cantar. Paulo Cardoso, escondido no buraco do ponto e servindo-te da linha do Chá das Seis “abusivamente” usada, começou a descrever a figura do cantor e como estava vestido. Depois abriu-lhe o microfone. Um escândalo que acabou mal para o Paulo Cardoso. Foi preso pela polícia! Estou a falar do maior repórter da Rádio Angolana. 

O Restauração, nos últimos anos da sua existência também tinha uma sala estúdio onde só passavam filmes de realizadores não comerciais. Portanto, o Restauração volta a ser casa da música e do teatro como sempre foi, antes da sua adaptação a parlamento. 

O Presidente João Lourenço chama-lhe palácio. Não faz mal. Mas quando falamos de artes, isso de palácios não interessa nada. Casa sim. Vamos ter uma casa de teatro e música. Cinema, pelos vistos, não. Mas podiam exibir os documentários dos Irmãos Henriques (Ano Zero) ou os filmes do António Ole, o nosso génio da sétima arte.

Já agora uma inquietação. O que vão fazer ao Cine Teatro Nacional, uma sala fabulosa onde se combina sabiamente a arquitectura da época com a arquitectura do ferro.?  Dado o triunfo dos oportunistas, o saldado motorista do R I20 ficou com aquela joia preciosa para umas jantaradas e bailaricos. 

Será que o Nacional vai ficar nas mãos dos bárbaros? Que tristeza! 

Está ali a memória de uma Luanda onde o teatro e a música faziam figura. Cremilda Torres criou lá a sua companhia de teatro infantil. Mais recentemente, o Nacional foi a casa da dança contemporânea. Pelos vistos vai morrer nas mãos de um soldado motorista que confunde arte com caldeirada e bebedeiras de carnaval.

*Jornalista

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