terça-feira, 25 de outubro de 2022

O BANCO DE PORTUGAL E A COBERTURA DA CONTRAÇÃO COLECTIVA

Numa conjuntura como a presente, o que se justifica é o banco central defender medidas que promovam o crescimento económico, impedindo a recessão económica, e não atacar os direitos fundamentais dos trabalhadores.

Fernando Marques | AbrilAbril | opinião

O Boletim de Outubro1, publicado recentemente pelo Banco de Portugal (BP), contém uma curiosa afirmação em que estabelece uma relação entre a cobertura da contratação colectiva (que diz ser muito elevada) e a rigidez do mercado de trabalho.

O BP afirma:

«cerca de 80% dos salários são definidos no âmbito de instrumentos de regulamentação colectiva em Portugal, o que pode introduzir um elemento de rigidez na transmissão da inflação aos salários.» (p. 16)

Esta afirmação tem três implicações fundamentais:

Em primeiro lugar, assimila o direito de contratação colectiva a «rigidez». Insinua-se que não havendo contratação colectiva, que determina os salários de 80% dos trabalhadores, os salários não eram tão elevados. Estranho, pois o Boletim refere-se a um ano em que os salários, incluindo os contratuais têm uma queda de poder de compra. Estranho também porque o banco central parece ignorar que o direito de contratação colectiva é um direito fundamental dos trabalhadores, exercido pelas associações sindicais (Constituição da República Portuguesa, Parte I, Direitos e deveres fundamentais, Título II, Direitos, liberdades e garantias, Capítulo III, Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, artigo 56, Direitos das associações sindicais e garantias).

Segundo, porque ataca a actualização dos salários por via da contratação colectiva, quando afirma que a elevada cobertura é factor de «rigidez» (expressão bem ao gosto neoliberal). O banco central, tão rigoroso em tantos aspectos, confunde aqui dois conceitos. A cobertura das convenções em vigor, foi, de acordo com os dados da DGERT de 76,6%2 em 2020. Este conceito abrange os trabalhadores que podem ser abrangidos por convenção colectiva.

O segundo conceito é o dos trabalhadores cujas convenções são revistas e os textos publicados em cada ano. A cobertura das convenções publicadas é divulgada mensalmente pela DGERT. Em 2020, a cobertura DS convenções publicadas não foi além de 13,7%. Dito de outra forma, a que mais interessa do ponto de vista da evolução conjuntural dos salários, menos de 14 em cada 100 trabalhadores viram as suas convenções actualizadas (normalmente na parte salarial.) em 2020. Em 2021 a cobertura subiu, mas não alcançou sequer 20 em cada 100 trabalhadores. Este ano, foram cobertos meio milhão de trabalhadores (dados até Agosto, inclusive), o que representa uma parte muito pequena dos trabalhadores.

Terceiro, não só a máxima cobertura não é factor de «rigidez» como compete ao Estado, segundo o Código de Trabalho, «promover a contratação coletiva, de modo que as convenções colectivas sejam aplicáveis ao maior número de trabalhadores e empregadores» (artigo 485, sublinhado meu).

Numa conjuntura como a presente, o que se justifica é o banco central defender medidas que promovam o crescimento económico, impedindo a recessão económica, e não atacar os direitos fundamentais dos trabalhadores.

Notas:

1. Em rigor: BP, Boletim Económico de Outubro de 2022.

2. O BP refere 80%, mas não divulga nem a fonte, nem o ano a que se refere a percentagem.

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