Assassinado anteontem à noite, o
ex-primeiro-ministro Shinzo Abe fustigava China e Coreia e, revisionista,
pregava o renascimento de um Japão imperial. Crime abre espaço para o atual
líder Kishida, de mesma ideologia, se prolongar no poder
Bernhard Horstmann* | Outras Palavras | Tradução:
Maurício Ayer
Anteontem à noite, um homem com uma
arma desmontável matou o ex-primeiro ministro do Japão, Shinzo Abe.
Aderindo à tradição familiar,
Shinzo Abe foi um japonês imperialista. Como Peter Lee escreveu
sobre ele em 2013:
Mito: Shinzo Abe é um dos
principais membros do time de democracias mundiais e asiáticas que lutam contra
a China em nome de valores universais como “liberdade de navegação” e para
ajudar a garantir a paz e a prosperidade compartilhadas na Ásia.
Realidade: Shinzo Abe é um
nacionalista revisionista que usa o atrito com a China para perseguir os
interesses nacionais japoneses, colocar o Japão no lado direito de uma equação
econômica de soma zero em oposição à República Popular da China, maximizar a
independência de ação do Japão como nação hegemônica regional, na esperança de
que seja de modo pacífico, mas se não for…
Missão para a mídia ocidental:
Gerenciar a dissonância cognitiva entre o mito reconfortante e a realidade
perturbadora para o bem de seus fiéis leitores.
Desafio: Explicar a visita do
primeiro-ministro Abe, em 26 de dezembro de 2013, ao Santuário Yasukuni.
Alguns dos mais monstruosos
criminosos de guerra Classe A da Segunda Guerra Mundial, que incluem o avô de
Abe, foram enterrados no Santuário Yasukuni. O santuário e seu museu anexo
extrapolam os limites para a maioria dos políticos japoneses. Mas Shinzo Abe o
visitou com pompa e circunstância, porque ele partilhava da ideologia daqueles
que estão enterrados lá:
As questões centrais do
revisionismo histórico de Abe não eram apenas que os territórios da China e da
Coreia, infestados de bandidos, exigiram a tutela japonesa nas décadas de 1930
e 1940, mas também que o Império Japonês naquele momento liderava a luta dos
povos oprimidos da Ásia contra o colonialismo britânico e o imperialismo
estadunidense – em outras palavras, o verdadeiro crime de guerra da Segunda
Guerra Mundial foi a agressão dos EUA contra o Japão. Os Estados Unidos, e suas
pretensões de superioridade moral sobre o Japão, bem como as presunçosas
alegações da China e da Coreia de serem vítimas inocentes, eram o alvo da
visita de Abe a Yasukuni.
Sua política de promover o
militarismo e o conflito, especialmente com a China e com as duas Coreias, e ao
mesmo tempo demonstrar simpatia pela Rússia, nasceram dessa ideologia.
A última passagem de Shinzo Abe
como primeiro-ministro durou oito anos. Isso foi surpreendente, já que os
primeiros-ministros no Japão raramente servem por mais de um ano. Requer
qualidades especiais para sobreviver politicamente por um tempo tão extenso, e
Shinzo Abe realizou isso.
Crimes com armas no Japão são
extremamente raros. Do punhado que acontece por ano, a maioria ocorre entre
grupos rivais da máfia japonesa, a Yakuza.
A polícia japonesa provavelmente
descobrirá que o atirador era um “indivíduo solitário”. Pode muito bem ser
verdade, mas certamente haverá outros que se beneficiarão com o incidente. Como
William Pesek escreve no Asia
Times:
Embora os motivos e as
implicações de longo prazo deste ataque sejam impossíveis de avaliar, uma
dinâmica política pode ter sido alterada: o primeiro-ministro Fumio
Kishida pode agora ter um maior espaço para permanecer no gabinete
além do marco de um ano, que se completará em outubro.
Mesmo que o campo político de Abe
o negue, Tóquio estava alvoroçada com as conversas de que Abe, que renunciou em
setembro de 2020, poderia querer entrar no ringue para disputar um terceiro mandato
como líder. Abe foi primeiro-ministro de 2006 a 2007, depois de 2012 a 2020.
Abe vinha desempenhando um papel
de grande influência política nos bastidores desde que renunciou. Havia grande
especulação de que ele estava infeliz com o recuo de Kishida em relação aos
esforços que empreendeu de pactuar uma distensão com a Rússia de Vladimir
Putin.
Abe também não gostava da visão
de Kishida prometendo reformar, após longo tempo, a segunda economia da Ásia,
subentendendo-se que a chamada “Abenomics” não teria conseguido colocar o Japão
em uma rota
mais vibrante.
Os primeiros-ministros japoneses
não costumam durar mais de 12 meses. O mandato de oito anos de Abe foi
totalmente atípico. Basta dizer que Kishida não precisará olhar por cima do
ombro para o poderoso Abe do Partido Liberal Democrata (LDP). As eleições deste
domingo para a Câmara Alta provavelmente darão a Kishida um controle mais firme
sobre seu conflituoso partido, permitindo que ele emerja da sombra dos líderes
do passado.
As políticas de Kishida estão de
acordo com as de Abe. Ele quer um Japão fortemente militarizado que possa
projetar seu poder para o exterior. Os EUA promovem isso, pois favorece suas
políticas anti-China. Mas devem ter cuidado com o que desejam.
O Japão é uma potência nuclear
latente, pois armazenou bastante urânio e
plutônio:
O Japão tem 47,8 toneladas de
plutônio reprocessado de alta sensibilidade, 10,8 toneladas das quais são
armazenadas no Japão, o suficiente para fazer 1.350 ogivas nucleares. Além
disso, o Japão também possui cerca de 1,2 tonelada de urânio altamente enriquecido
(HEU) para reatores de pesquisa.
O país tem competência para lidar
com esse material. Em uma situação de crise, poderia construir
bombas nucleares rapidamente. O Japão tem veículos de carga de longo
alcance devido ao seu programa espacial. Uma vez eclodido, um Japão
revisionista seria um perigo, não apenas para seus vizinhos imediatos, mas para
os próprios EUA.
China e ambas as Coreias ficarão
aliviadas de que Shinzo Abe, o revisionista industrioso, se foi.
Eu me pergunto em qual santuário
suas cinzas serão enterradas.
*Bernhard Horstmann é editor da
mídia independente norte-americana Moon of Alabama.
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