Breve panorama do conflito na
Ucrânia. Após derrotas militares, Moscou evoca poderio nuclear. Europa capitula
aos EUA, que usam seu arsenal para dissuadir qualquer resistência. Paz está
mais distante; e os falcões da guerra, apreensivos
#Publicada em português do Brasil
A guerra da Rússia na Ucrânia se
prolongou por quase nove meses, e agora escala a níveis altamente letais. Putin
tem como alvo a infraestrutura de energia da Ucrânia e pôs em pauta
repetidamente o fantasma das armas nucleares. Os ucranianos, por outro lado,
continuam acreditando que podem derrotar os russos no campo de batalha e até
retomar a Crimeia. De fato, a guerra na Ucrânia não tem fim à vista. Como Noam
Chomsky aponta nesta entrevista, a escalada do conflito colocou as alternativas
diplomáticas ainda mais em segundo plano.
Chomsky é professor emérito do
Departamento de Linguística e Filosofia do MIT e professor laureado de
linguística e catedrático Agnese Nelms Haury no Programa de Meio Ambiente e
Justiça Social da Universidade do Arizona. Um dos estudiosos mais citados do
mundo e um intelectual público considerado por milhões de pessoas como um
patrimônio nacional e internacional, Chomsky publicou mais de 150 livros em
linguística, pensamento político e social, economia política, estudos de mídia,
política externa dos EUA. Seus livros mais recentes são The Secrets of
Words (com Andrea Moro; MIT Press, 2022); A retirada: Iraque, Líbia,
Afeganistão e a fragilidade do poder dos EUA (com Vijay Prashad; The New
Press, 2022); e The Precipice: Neoliberalism, the Pandemic and the Urgent
Need for Social Change (com C.J. Polychroniou; Haymarket Books, 2021).
C.J. Polychroniou – Noam, a
guerra na Ucrânia se aproxima da marca do nono mês e, em vez de um
arrefecimento, caminha para uma “escalada sem controle”. Na verdade, está se
tornando uma guerra sem fim, já que a Rússia tem alvejado a infraestrutura de
energia da Ucrânia nas últimas semanas e intensificado seus ataques na região
leste do país, enquanto os ucranianos continuam pedindo mais e mais armas do
Ocidente, acreditando que têm a capacidade de derrotar a Rússia no campo de
batalha. Como as coisas estão na conjuntura atual, a diplomacia pode acabar com
a guerra? De fato, como é possível desescalar uma guerra quando o nível de intensidade
é tão alto e os lados em confronto parecem incapazes de chegar a uma decisão
sobre as questões sobre as quais eles têm conflito? Por exemplo, a Rússia nunca
aceitará reverter as fronteiras para a posição que estavam antes de 24 de
fevereiro, quando a invasão foi lançada.
Noam Chomsky – Tragédia
anunciada. Vamos fazer uma breve retrospectiva do que discutimos ao longo de
meses.
Antes da invasão de Putin, havia
alternativas baseadas geralmente nos acordos de Minsk, que poderiam ter evitado
o crime. Há um debate não resolvido sobre se a Ucrânia aceitou esses acordos.
Pelo menos verbalmente, a Rússia parece ter feito isso até pouco antes da
invasão. Os EUA os rejeitaram em favor da integração da Ucrânia ao comando
militar da OTAN (ou seja, dos EUA), recusando-se também a levar em consideração
quaisquer preocupações de segurança russas, conforme já foi admitido. Esses
movimentos foram acelerados sob Biden. Poderia a diplomacia ter conseguido
evitar a tragédia? Só havia uma maneira de descobrir: tentar. Essa
possibilidade foi ignorada.
Putin rejeitou os esforços do
presidente francês Macron, até quase o último minuto, de oferecer uma
alternativa viável à agressão. Rejeitou-os no final com desprezo – um tiro no
pé de si próprio e da Rússia, pois colocou a Europa no bolso de Washington, o
que era seu maior sonho. Ao crime de agressão somava-se o crime de tolice, do
seu ponto de vista.
As negociações Ucrânia-Rússia
ocorreram sob os auspícios da Turquia em março-abril. Falharam. Os
EUA e o Reino Unido se opuseram. Devido à falta de investigação, o que é parte
do menosprezo geral da diplomacia nos círculos tradicionais, não sabemos até
que ponto essa oposição foi um fator para o colapso das negociações.
Washington inicialmente esperava
que a Rússia conquistasse a Ucrânia em poucos dias e estava preparando um
governo no exílio. Analistas militares ficaram surpresos com a incompetência
militar russa, a notável resistência ucraniana e o fato de a Rússia não ter
seguido o esperado modelo de guerra dos EUA e Reino Unido (também o modelo
seguido por Israel na indefesa Faixa de Gaza): atacar direto na jugular, usando
armas convencionais para destruir comunicações, transporte, energia, o que quer
que mantenha a sociedade funcionando.
Com a escalada do conflito, as
opções de diplomacia diminuíram. No mínimo, os EUA poderiam retirar sua
insistência em sustentar a guerra para enfraquecer a Rússia, barrando assim o
caminho para a diplomacia.
Os EUA então tomaram uma decisão
fatídica: continuar a guerra para enfraquecer severamente a Rússia, evitando
assim as negociações e fazendo uma aposta medonha: que o destino de Putin seria
fazer as malas e escapar da derrota para o esquecimento, se não pior, e
que não usaria as armas convencionais que, como todos sabem, ele tinha com
capacidade para destruir a Ucrânia.
Se os ucranianos querem arriscar
a aposta, isso é problema deles. O papel dos EUA é problema nosso.
Agora Putin avançou para a
escalada que fora prevista, “visando a infraestrutura de energia da Ucrânia nas
últimas semanas e intensificando seus ataques na região leste do país”. A
escalada de Putin igualando-se ao modelo celebrizado pelos EUA-Reino
Unido-Israel foi condenada com razão por sua brutalidade – condenada justamente
por aqueles que aceitam os “originais” com pouca ou nenhuma objeção, e cuja
aposta medonha deu as bases para essa escalada, tal como foi amplamente
advertido. Não haverá responsabilização, embora algumas lições possam ter sido
aprendidas.
Enquanto os apelos liberais,
mesmo muito moderados, para que se considerasse uma saída diplomática dando
apoio total à Ucrânia foram imediatamente submetidos a uma torrente de
difamação, e muitas vezes apagados com medo, as vozes do mainstream que
clamam por diplomacia foram poupadas desse tratamento, incluindo vozes da
principal revista do establishment, a Foreign Affairs. Pode ser que
as preocupações a respeito de uma guerra destrutiva, com consequências
potencialmente cada vez mais sinistras, estejam chegando aos “falcões” neocons
que parecem estar conduzindo a política externa de Biden. É o que parecem
indicar algumas de suas declarações recentes.
Muito possivelmente eles também
estão ouvindo outras vozes. Enquanto as corporações de energia e militares dos
EUA estão rindo à toa, olhando as contas no banco, a Europa está sendo
duramente castigada pelo corte de suprimentos russos e pelas sanções iniciadas
pelos EUA. Isso é particularmente verdadeiro para o complexo industrial alemão
que é a base da economia europeia. Permanece uma questão em aberto se os
líderes europeus estarão dispostos a monitorar o declínio econômico da Europa e
o aumento da subordinação aos EUA, e se suas populações vão tolerar tais
consequências da adesão às demandas dos EUA.
O golpe mais dramático para a
economia europeia é a perda do gás russo barato, agora parcialmente substituído
por suprimentos americanos muito mais caros (aumentando também a poluição em
trânsito e na distribuição). Isso, porém, não é tudo. Os suprimentos russos de
minerais desempenham um papel essencial na economia industrial da Europa,
incluindo os esforços para mudar para energia renovável.
O futuro do abastecimento de gás
para a Europa foi prejudicado severamente – talvez permanentemente – com a
sabotagem dos gasodutos Nord Stream que ligam a Rússia e a Alemanha através do
Mar Báltico. Este é um grande golpe para os dois países. Foi recebido com
entusiasmo pelos Estados Unidos, que vinham tentando há anos barrar esse
projeto. O secretário de Estado [Antony] Blinken descreveu a destruição dos
oleodutos como “uma tremenda oportunidade para remover de uma vez por todas a
dependência da energia russa e, assim, tirar das mãos de Vladimir Putin a
belicização da energia como meio de avançar em seus desígnios imperiais.”
Os fortes esforços dos EUA para
bloquear o Nord Stream precederam em muito a crise na Ucrânia e as atuais
narrativas febris sobre os desígnios imperiais de longo prazo de Putin. Eles
remontam aos dias em que
Bush II olhava nos olhos de Putin e percebia que sua alma era
boa.
O presidente Biden informou à
Alemanha que se a Rússia invadisse a Ucrânia, “então não haverá mais Nord
Stream 2. Vamos colocar um fim nisso”.
Essa sabotagem, um dos eventos
mais importantes dos últimos meses, foi rapidamente despachada para a obscuridade.
Alemanha, Dinamarca e Suécia conduziram investigações sobre a sabotagem em suas
águas próximas, mas mantêm silêncio sobre os resultados. Há um país que
certamente tinha capacidade e motivo para destruir os oleodutos. Isso não pode
ser mencionado na sociedade polida. Então vamos deixar por isso mesmo.
Ainda há uma oportunidade para o
tipo de esforço diplomático que as vozes do establishment estão
pedindo? Não podemos ter certeza. Com a escalada do conflito, as opções
diplomáticas diminuíram. No mínimo, como mencionado, os EUA poderiam retirar
sua insistência em sustentar a guerra para enfraquecer a Rússia. Uma posição
mais forte é a das citadas vozes do establishment: pedem que opções
diplomáticas sejam exploradas antes que os horrores se tornem ainda piores, não
apenas para a Ucrânia, mas muito além.
As autoridades ucranianas afirmam
que têm uma estratégia para retomar a Crimeia porque foi anexada ilegalmente
por Moscou em 2014. Anúncios semelhantes foram feitos antes mesmo da invasão da
Ucrânia pela Rússia. Embora nenhum estrategista militar acredite que a Ucrânia
esteja em posição de retomar a Crimeia, isso não seria mais uma evidência de que
não há um fim à vista para a guerra Rússia-Ucrânia? Não é esta outra razão pela
qual as armas ATACMS de longo alcance que a Ucrânia diz precisar não devem ser
entregues a eles?
A administração Biden e o
Pentágono tiveram o cuidado de limitar o fluxo maciço de armas àqueles tipos
que provavelmente não conduziriam a uma guerra OTAN-Rússia, que seria
efetivamente terminal para todos. Se esses assuntos delicados podem ser
mantidos sob controle, ninguém pode ter certeza. Mais uma razão para tentar
acabar com os horrores o mais rápido possível.
A China alertou a Rússia contra
ameaças de usar armas nucleares na guerra contra a Ucrânia. Seria esse um sinal
de que Pequim pode estar pensando em se distanciar das aventuras militares de
Putin na Ucrânia? Em ambos os casos, indica que há limites para a amizade entre
China e Rússia, não é?
Há poucas evidências, que eu
saiba, de que a China esteja se distanciando da Rússia. Ao contrário, parece
que suas relações estão se estreitando em oposição comum ao entrincheiramento de
um mundo unipolar dirigido pelos Estados Unidos, sentimentos compartilhados na
maior parte do mundo. A China certamente se opõe ao uso de armas nucleares,
assim como qualquer um que ainda tenha um pingo de sanidade. E como quase todo
o mundo, quer uma solução rápida para o conflito.
Deveria ser uma grande
preocupação o fato de que a conversa sobre a guerra nuclear esteja sendo
cogitada casualmente como uma possibilidade a ser considerada.
As conversas sobre armas
nucleares têm ocorrido principalmente no Ocidente. A Rússia reiterou a posição
universal dos Estados nucleares: que eles podem recorrer a armas nucleares em
caso de ameaça à sobrevivência. Essa posição tornou-se mais perigosa quando
Putin anexou partes da Ucrânia, estendendo a doutrina universal a um território
mais amplo.
Não é bem verdade que a doutrina
é universal. Os EUA têm uma posição muito mais extrema, enquadrada antes da
invasão da Ucrânia, mas anunciada apenas recentemente: uma nova estratégia
nuclear que a Associação de Controle de Armas descreveu como “uma expansão
significativa da missão original dessas armas, ou seja, dissuadir ameaças
existenciais contra os Estados Unidos.”
A expansão significativa é
explicada pelo almirante Charles Richard, chefe do Comando Estratégico dos EUA
(STRATCOM). Sob a recém-anunciada Revisão da Postura Nuclear, as armas
nucleares fornecem o “espaço de manobra” necessário para os Estados Unidos
“projetar estrategicamente o poder militar convencional”. A dissuasão nuclear
é, portanto, uma cobertura para operações militares convencionais em todo o
mundo, impedindo outros de interferir nas operações militares convencionais dos
EUA. As armas nucleares, portanto, “impedem todos os países, o tempo todo” de
interferir nas ações dos EUA, continuou o almirante Richard.
Stephen Young, representante
sênior de Washington na Union of Concerned Scientists (União de Cientistas
Preocupados), descreveu a nova Revisão da Postura Nuclear como “um documento
aterrorizante [que] não apenas mantém o mundo em um caminho de risco nuclear
crescente, mas aumenta esse risco”, já intoleravelmente alto, “de muitas
maneiras”.
Uma avaliação justa.
A imprensa mal noticiou a Revisão
da Postura Nuclear, descrevendo-a como não sendo uma grande mudança. Por acaso
eles estão certos, mas por razões que evidentemente eles desconhecem. Como o
comandante do STRATCOM, Richard, sem dúvida, poderia informá-los, essa tem sido
a política dos EUA desde 1995, quando foi elaborada em um documento do STRATCOM
intitulado “Fundamentos da Dissuasão Pós-Guerra Fria”. Sob Clinton, as armas
nucleares devem estar constantemente disponíveis porque “lançam uma sombra”
sobre o uso convencional da força, impedindo outros de interferir. Como disse
Daniel Ellsberg, as armas nucleares são usadas constantemente, assim como uma arma
é usada em um assalto, mesmo que não seja disparada.
O documento do STRATCOM de 1995
pede ainda que os EUA projetem uma “persona nacional” de “irracionalidade
e vingança”, com alguns elementos “fora de controle”. Isso vai assustar aqueles
que podem ter pensar em interferir. É a “doutrina do louco”, que foi atribuída
a Nixon com base em poucas evidências, mas que agora aparece em um documento
oficial.
Tudo isso está dentro da
estrutura da doutrina abrangente de Clinton de que os EUA devem estar prontos para
recorrer à força multilateralmente se pudermos, unilateralmente se precisarmos,
para garantir “acesso livre a mercados-chave, suprimentos de energia e recursos
estratégicos”.
É verdade, então, que a nova
doutrina não é muito nova, embora os americanos desconheçam os fatos – não por
causa da censura. Os documentos são públicos há décadas e citados na literatura
crítica, que é mantida à margem.
Deveria ser uma grande
preocupação que a conversa sobre a guerra nuclear esteja sendo cogitada
casualmente como uma possibilidade a ser considerada. Não é. Definitivamente
não é.
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*Noam Chomsky é um renomado
linguista, filósofo e ativista político estadunidense. É professor de
linguística da Universidade do Arizona.