O Brasil vive um momento único para chamar as coisas pelo nome e apontar o dedo para as Forças Armadas que dissimulam o golpismo.
Carla Jimenez, colonista | The Intercept_ Brasil | # Publicado em português do Brasil
O dia 8 de janeiro expôs ao
Brasil a materialidade de um crime que estava em gestação no submundo da
política. Houve um intento de golpe de estado transmitido praticamente em tempo
real por milhares de apoiadores de Jair Bolsonaro. Desde então, já sabemos que
há potencial para novos atentados violentos, que há integrantes golpistas nas
Forças Armadas e na Polícia Militar, e até que o ex-ministro da Justiça de Jair
Bolsonaro, Anderson Torres, tinha uma minuta pronta para contestar o resultado
das eleições de 2022.
Uma janela foi aberta naquele domingo para desembarcar do cinismo das
argumentações retóricas, como a famigerada “liberdade de expressão” defendida
por bolsonaristas, e passarmos a chamar as coisas pelo verdadeiro nome por vias
oficiais, saindo da tucanização que a falsa diplomacia brasileira carrega
Enquanto o mundo assistia estarrecido às imagens da réplica malfeita da invasão
do Capitólio nos Estados Unidos, nasciam novos braços institucionais para
blindar a democracia. A Advocacia Geral da União, a AGU, criou o Grupo Especial
de Defesa da Democracia, e a Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão,
a PFDC, formou o Grupo de Apoio à Defesa da Democracia para agilizar a
comunicação entre os órgãos públicos.
“Temos notícias da criação de diversos grupos extremistas. Precisamos nos unir para desmobilizá-los e promover a estabilidade necessária ao nosso país”, me disse o procurador Carlos Alberto Vilhena, da PFDC. Até a Procuradoria-Geral da República anunciou, dias depois, um Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos para não ficar atrás.
Parte da imprensa parece rever
também o seu papel. Ainda soa estranho ouvir os apresentadores do Jornal
Nacional anunciarem “vândalos” ou “atos terroristas” de uma massa de pessoas brancas,
viúvas da ditadura militar. Faz bem pouco tempo que no Brasil a imprensa se negava a admitir que Bolsonaro era um
mandatário de ultradireita.
A nossa geração não tinha ideia do que era a extrema direita
Agora, já não há dúvidas de que integrantes das forças de segurança do Planalto
abriram as portas para os golpistas invadirem a praça dos Três Poderes, como
disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na semana passada – isso porque
a posição dos estilhaços indica que as vidraças foram quebradas de dentro para
fora.
Antes do fatídico 8 de janeiro,
havia agressões verbais, milícias virtuais e uma negação de que, nessa dinâmica
com roupagem de “liberdade de expressão”, havia incitação a crimes. Foi a tese
sustentada pelo governo Bolsonaro e os generais em seu entorno, como Hamilton
Mourão.
É a mesma hipocrisia da qual são vítimas inúmeras mulheres que denunciam as
ameaças de agressão de seus parceiros, mas são ignoradas até que uma tragédia
aconteça. A democracia brasileira também viveu sua tentativa de feminicídio no
último domingo, desnudando a desfaçatez que permeia as relações de poder no
Brasil desde a fundação da República.
Os militares nunca deixaram de querer se colocar como uma instância superior e
heroica. Fomentaram o messianismo de inocentes úteis em nome da pátria. Pessoas
idosas, gente simples que ingenuamente se colocou em acampamento, seguindo
mensagens religiosas, quiçá para aplacar a solidão de não conseguir acompanhar
uma sociedade mais complexa, com o fortalecimento de diversos estratos que
antes não tinham voz. Não faz tanto tempo que o general Villas Bôas fez ameaças
dissimuladamente golpistas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula,
que poderia liberá-lo da prisão. Foi um tuíte sinuoso que deu aval aos
"patriotas". “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga
compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de
respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento
às suas missões institucionais”, escreveu ele, em 3 de abril de 2018,
arvorando-se uma competência que jamais coube às Forças Armadas.
Villas Bôas, então comandante do
Exército, plantava as sementes que colhemos com Jair Bolsonaro presidente e com
os atos terroristas de domingo. Maria Aparecida Villas Bôas, esposa do general,
inclusive, era uma visitante entusiasta dos “cidadãos de bem” em frente ao
quartel-general de Brasília.
“Ficou claro agora que essas pessoas são capazes de cometer crimes, ações
materiais muito violentas, com o intuito de iniciar um caos geral que levasse
ao colapso das instituições”, me disse o jurista Carlos Ari Sundfeld, presidente da Sociedade Brasileira de
Direito Público. “Não é só uma possibilidade. O fato ocorreu, a partir de um
caldo de cultura fomentado também por pessoas como as deputadas Carla Zambelli,
Bia Kicis, por Bolsonaro”, completou.
Não estamos em 1964. O mundo se move para fortalecer a democracia contra
governos autoritários. Não podemos mais baixar a guarda, mesmo que uma boa
parte do Brasil ainda esteja cego. Não vai ser em um dia, em um mês ou em um
ano que o país vai colocar tudo no eixo. Esses tristes anos de governo
Bolsonaro, ao menos, nos ensinaram a resistir e a reconhecer os hipócritas e a
perceber como são camaleônicos. Temos de ensinar às próximas gerações a
identificar esses falsos democratas.
Carla Jimenez, colonista | The Intercept_ Brasil
Texto em: newsletter.brasil@emails.theintercept.com
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