domingo, 15 de janeiro de 2023

Salários não sobem, o custo de vida aumenta e a pobreza atinge cada vez mais pessoas

RICARDO PAES MAMEDE: “O PS ESTÁ A NEUTRALIZAR AS OPOSIÇÕES DE DIREITA” AO SEGUIR AS SUAS POLÍTICAS

João Biscaia entrevista Ricardo Pais Mamede, em Setenta e Quatro

PORTUGAL

Foi em 2022 que se registou a maior transferência de rendimentos do trabalho para o capital do milénio, superando até o período da troika. Os salários não sobem, o custo de vida aumenta e a pobreza atinge cada vez mais pessoas. Entretanto, o Governo faz austeridade para pagar, a “um ritmo quase fetichista”, a dívida pública, diz o economista.

A inflação atingiu o valor mais alto dos últimos 30 anos, as taxas de juro sobem todos os meses, as prestações dos créditos à habitação devoram uma cada vez maior porção dos salários, as rendas atingem valores insuportáveis, os preços do gás, da electricidade e dos combustíveis não dão descanso. E o desemprego voltou a aumentar, principalmente entre os mais jovens. Fala-se de a economia portuguesa sofrer uma recessão, mas ainda não é certo que assim seja. Certa é a incerteza  económica: há cada vez mais famílias portuguesas a enfrentar dificuldades para chegarem ao final do mês. Sem apoios sociais, o país tem 4,4 milhões de pessoas na pobreza. 

Entretanto, o governo do Partido Socialista avançou com apoios de 125 euros e, depois, para os mais vulneráveis, de 240 euros. Ainda que estes apoios tenham sido criticados por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, o economista Ricardo Paes Mamede garante que, além de não serem respostas a problemas sociais concretos, serviram para evitar que o Governo chegasse ao final de 2022 “com um nível de défice orçamental injustificadamente baixo”. Seria algo difícil de explicar quando, por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde se confronta com sérias debilidades.

Esses números refletem, “na prática, uma opção do Governo: retirar dinheiro à economia para atingir metas orçamentais às quais nem sequer está obrigado” pelas instituições europeias, disse Paes Mamede em entrevista ao Setenta e Quatro. Ou seja, o governo de António Costa está, desde 2019, a aplicar austeridade para pagar, “a um ritmo quase fetichista”, a dívida soberana, a terceira maior na União Europeia. 

Ao mesmo tempo, registou-se em 2022, dizem os economistas João Rodrigues e Paulo Coimbra, a maior transferência do trabalho para o capital do milénio (4,7%), superando até o período da troika. O peso da retribuição do trabalho no produto interno bruto (PIB) caiu 2,4%, quando com a troika foi de 1,5%. “A distribuição funcional do rendimento entre capital e trabalho tem vindo a tornar-se mais desigual e a favor do capital. Ou seja, há espaço para o aumento dos salários, o que não se verifica na prática”, garante o economista.

Daí que a oposição de direita esteja a sofrer um desnorte político e programático perante o executivo de António Costa, argumenta Paes Mamede. “O PS está a neutralizar as oposições de direita, pelo facto de seguir, ao nível orçamental, a agenda tradicionalmente defendida por elas”, salientou, referindo que as oposições de direita o preocupam menos que as de esquerda. É que, continuou, a esquerda saiu “muito fragilizada” das últimas eleições, e depende agora da sua capacidade de mobilizar nas ruas. 

Entrámos num novo ano e a inflação já levou consigo os últimos dois de valorização dos salários. A 1 de janeiro aumentaram as rendas, as prestações ao banco e as faturas do gás e da eletricidade, só para nomear alguns exemplos. O que esperar, economicamente, de 2023?

O mundo passa a vida a surpreender-nos — com pandemias, com guerras — e 2023 pode vir a surpreender-nos igualmente. O risco de instabilidade financeira é muito grande. Não sabemos como a guerra na Ucrânia vai evoluir. Qualquer antecipação do que poderá ser a vida das pessoas em 2023 será sempre incerta.

Com os dados que temos hoje disponíveis, podemos esperar uma desaceleração do aumento dos preços, o que não significa que haverá uma descida. O poder aquisitivo das pessoas não vai melhorar, mas é possível que a perda desse poder seja, para a generalidade da população, menos acentuada do que em 2022. Haverá sempre perda de poder de compra e isso vai significar dificuldades acrescidas. O aumento expectável dos preços afetará sobretudo os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas.

É importante olhar para o desemprego. As expectativas que existem para a evolução do mercado de trabalho não são negativas. Até são, moderadamente, positivas. A taxa de desemprego [hoje de 6,4%] caiu muito ao longo da última década e não se espera que haja um agravamento acentuado. Isso são boas notícias, porque o desemprego tem estado sempre associado, em Portugal, a problemas sociais significativos, ao agravamento das condições de vida.

Também se espera um golpe nos rendimentos das pessoas com créditos contraídos, em particular empréstimos à habitação. A maioria das pessoas nessa situação não serão particularmente penalizadas, porque, em Portugal, quem tem acesso ao crédito à habitação costumam ser famílias com rendimentos acima da média, e em situações mais protegidas. Ainda assim, veremos alguns segmentos da população afetados pelo aumento das taxas de juro.

O salário mínimo também sobe de €705 para €760. É suficiente?

O aumento do salário mínimo em 2023 é o mais generoso de todos os aumentos previstos. É o reflexo de uma política seguida não apenas pelos governos do PS, mas já antes pelos governos PSD-CDS. Primeiro, desregular e fragilizar o poder negocial dos trabalhadores — por via da caducidade dos contratos coletivos de trabalho, por exemplo. Depois, há uma desregulação genérica das relações de trabalho que tenta ser compensada com um aumento, superior à média, do salário mínimo.

Por um lado, protege-se o poder de compra dos trabalhadores que recebem o salário mais baixo de todos, mas prejudica-se o poder de compra de trabalhadores que recebem um pouco acima do salário mínimo. A minha expectativa é que estes aumentos protejam cerca de 20% dos trabalhadores recebem salários muito baixos. Temos trabalhadores pobres — e os aumentos do salário mínimo não permitem tirar as pessoas da pobreza. Permitem, na melhor das hipóteses, manter os seus níveis de rendimentos reais.

Temos estado a falar em médias. Se os salários mínimos estão a ser aumentados em linha com aquilo que tem sido a evolução geral dos preços, a verdade é que os preços de alguns produtos, principalmente dos bens alimentares, são superiores aos aumentos médios dos preços. Tipicamente, esses produtos, cujos preços estão a aumentar muito acima da média geral, têm um peso desproporcionado nos orçamentos das famílias mais pobres. 

Isto significa que os aumentos do salário mínimo alinhados com a média geral dos preços não conseguem proteger o poder de compra das famílias mais pobres, para quem a aquisição de bens essenciais tem um peso muito grande. São os rendimentos das populações mais pobres que tendem a cair.

A economia portuguesa, sendo periférica, está desenhada para só funcionar com baixos salários?

As economias não são homogéneas. Temos situações diferentes dentro da economia portuguesa. O facto de termos alguns setores importantes da nossa economia a registar neste momento lucros significativos é a demonstração que há nesses setores margem para aumentar os salários mais do que têm aumentado. O setor da distribuição é o melhor exemplo disso, até porque representa uma fatia importante do emprego em Portugal.

Há outros setores em que, por razões diferentes, o aumento dos salários se torna um problema para a viabilidade das empresas. Por um lado, temos as empresas mais expostas à concorrência internacional, onde há pouca margem para aumentar preços, visto que os praticados são os que vigoram nos mercados internacionais. Para essas empresas, um aumento dos salários pode significar não só a redução das taxas de lucro, mas dificuldades para a sua viabilidade. Essas empresas estão a ser afetadas por um aumento substancial dos custos de produção, em particular das matérias primas e dos bens energéticos.

Outros casos têm menos que ver com a exposição à concorrência internacional e mais com as particularidades dos setores, com os que vivem de contratos realizados com bastante tempo de antecedência. O setor da construção, por exemplo. Em particular, a construção financiada pelo Estado enfrenta um problema neste momento. As empreitadas foram negociadas com preços que já não são válidos. A menos que haja possibilidade de renegociar, as empresas estão hoje a ter de entregar os mesmos serviços com custos de produção muito mais avultados. Nestes casos, o aumento dos salários pode ser também um problema para a viabilidade das empresas.

Fazendo uma abordagem agregada, o que se tem sistematicamente verificado é que o aumento dos salários tem ficado abaixo do crescimento da produtividade. Na prática, isso significa uma coisa muito simples: a distribuição funcional do rendimento entre capital e trabalho tem vindo a tornar-se mais desigual e a favor do capital. Ou seja, há espaço para o aumento dos salários, o que não se verifica na prática.

Um artigo recente dos economistas João Rodrigues e pelo Paulo Coimbra afirma que assistimos neste momento à maior transferência de rendimentos do trabalho para o capital do milénio, maior até que a do período da troika. Que políticas económicas estão na sua génese?

A paralisação da negociação coletiva é um fator crucial. A capacidade de dinamizar a evolução dos salários em vastos setores da economia portuguesa é, assim, posta em causa. Outro fator relevante é a prática salarial na função pública. Os salários na função pública têm estado sistematicamente congelados e isso tem efeitos não apenas na evolução dos rendimentos dos mais de 700 mil funcionários públicos, como também acaba por afetar as negociações no setor privado. Os aumentos salariais na função pública são usados, em muitos setores, como referência para a fixação dos aumentos salariais.

Um terceiro fator é a desregulação ao nível dos contratos de trabalho. O facto de sermos um dos países europeus com maior incidência de contratos precários — falsos recibos-verdes e contratos a termo certo, por exemplo. Todas essas formas de contratação, além da economia informal, significam uma redução substancial do poder de negociação dos trabalhadores. 

Se a economia estivesse a crescer muito e não houvesse incerteza quanto ao futuro, isto não seria um problema. Quando assim não é, é normal que os trabalhadores não arrisquem e se tentem proteger, aceitando condições de trabalho desvantajosas. Todos estes fatores acabam por contribuir para a estagnação dos salários em Portugal.

O primeiro-ministro, António Costa, tem respondido à pauperização dos trabalhadores com subsídios. Primeiro, com um mais abrangente de €125, depois outro de €240 para as pessoas mais desfavorecidas. São medidas corretas para combater a inflação e a crise?

Não vejo esse último subsídio, o de €240, para as famílias mais desfavorecidas, nem como política de recuperação do poder de compra nem sequer como política social coerente. O facto de o Governo ter anunciado esta medida pouco depois de se ter sabido a execução orçamental prevista para 2022 (em que o nível de receitas é muito superior ao que foi estimado e o nível de despesas nem por isso) sugere que o Governo procurou encontrar à pressa uma medida que evitasse deixá-lo demasiado exposto à opção que tem seguido, de dar uma prioridade total a uma redução acelerada — e injustificada — da dívida pública.

Por outras palavras, o Governo sabia que se não encontrasse forma de gastar dinheiro rapidamente, ainda em 2022, iria chegar ao fim do ano com um nível de défice orçamental injustificadamente baixo. Isso reflete na prática uma opção do Governo: retirar dinheiro à economia para atingir metas orçamentais às quais nem sequer está obrigado.

Várias coisas poderiam ser feitas com a margem orçamental que o Governo tem. Um aumento dos salários da função pública, por exemplo. E não precisaria sequer de atingir níveis próximos da inflação para dar o sinal que a administração pública não deve ser a variável de ajustamento sempre que há dificuldades económicas em Portugal. O Governo deveria tê-lo feito. 

Poderia também haver uma eventual redução de impostos, a pensar nas classes médias e baixas, e até a aplicação de medidas mais estruturantes, que reforçassem os serviços públicos e o investimento. Não vejo estas medidas pontuais como respostas a problemas sociais concretos. Vejo-as como medidas de natureza fundamentalmente comunicacional. Dito isto, e quando falamos deste tipo de medidas, sou mais favorável a soluções seletivas em vez de universais.

Os serviços públicos devem ser universais. As opções fiscais devem ter um caráter universal, ainda que progressivo. Os apoios sociais permanentes devem ser generalizados. No que respeita a medidas ad hoc, que podem justificar-se em situações específicas de crise, faz pouco sentido para mim caráter universal. Faz mais sentido que se atribuam €240 a um milhão de pessoas do que €125 a 10 milhões. Isso não significa que me pareça o mais correto e adequado no atual momento.

Que tipo de medidas crê que fariam mais sentido?

Neste momento não há muita margem para adotar as medidas que eu defendo, pois seriam medidas a adotar em sede de orçamento de Estado. Se o objetivo é gastar muito dinheiro depressa, não há muita alternativa. As medidas que deveriam ter sido tomadas, como defendi, seriam o aumento dos salários na função pública, o reforço do investimento público e de verbas para serviços públicos, em particular os que continuam a dar sinais óbvios de suborçamentação, como o Serviço Nacional de Saúde.

Se falamos de medidas ad hoc para compensar o desempenho orçamental — que reflete mais poupança do que era previsto — teríamos de averiguar com mais cuidado para que segmentos da população é que esse tipo de medidas faria mais sentido. Candidatos potenciais não faltam. 

Já passaram quatro meses do início do ano letivo e é claro que a situação no mercado de arrendamento está a tornar-se um sufoco para vastas camadas de estudantes do ensino superior. Deveria haver um reforço das verbas para a ação social escolar. Seria fundamental para prevenir situações de abandono e insucesso escolares. Isto é apenas um de muitos exemplos. Deveria ter havido uma averiguação cuidada para saber quem é que está, neste momento, com mais dificuldades, para canalizar essas verbas inesperadas com maior justiça e eficácia. Esse trabalho não foi feito.

Christine Lagarde, hoje presidente do BCE, criticou duramente a opção dos governos em distribuir subsídios dizendo que contribui para o aumento da inflação. Lagarde foi criticada por essa postura e vários governos europeus, entre os quais o português, têm criticado a política de subida dos juros pelo BCE. O banco central está a empurrar a UE para uma recessão autoinfligida?

Christine Lagarde está numa posição muito delicada para fazer esse tipo de afirmações. Foi ela mesma que, há poucos meses, fez o discurso exatamente inverso. Defendia que a inflação na Zona Euro — ao contrário do que se passava nos Estados Unidos — tinha pouco que ver com fatores do lado da procura, estando ligada aos do lado da oferta, em particular com a crise energética. Portanto, vindo de quem vem, não é um discurso convincente.

A ideia de que aumentar as taxas de juro é, hoje, a forma ideal de fazer controlo do aumento dos preços não faz muito sentido, por várias razões. Na Europa, a inflação é decorrente de fatores do lado da oferta e não da procura. O que os manuais nos dizem é que a política monetária, via aumento das taxas de juro, demora muito tempo a traduzir-se numa redução da inflação. Segundo algumas estimativas, seria preciso esperar um ano e meio até que o aumento das taxas de juro se refletisse inteiramente numa redução dos preços. Pela simples razão de não haver um canal direto entre uma coisa e a outra.

A transmissão da política monetária faz-se fundamentalmente através da desaceleração da atividade económica, tornando mais difícil o investimento e o consumo. Havendo menos procura, há um menor aumento dos preços. Na prática, esta política monetária procura controlar os preços impondo uma recessão económica aos países.

Não sou capaz de dizer que a situação é semelhante à que aconteceu em torno de 2010 [aquando da denominada crise das dívidas soberanas na Europa], porque hoje é menos expectável que o BCE deixe as coisas se agravarem ao ponto de existir instabilidade financeira associada aos riscos no incumprimento das dívidas. 

Desde 2012 que se tornou claro que o BCE não está disponível para deixar colapsar a Zona Euro por causa de  fatores que pode controlar, como o demonstrou. Não espero que este agravamento das taxas de juro conduza a uma nova crise da Zona Euro, mas é evidente que ele tenderá a traduzir-se numa desaceleração da atividade económica e, em alguns países, numa recessão, com aumento do desemprego e agravamento da crise social.

Disse há pouco que a inflação iria desacelerar. Não parar, mas desacelerar. É isso que nos espera em vez de uma recessão?

As previsões económicas não apontam nesse sentido, mas para um ligeiro crescimento económico e a manutenção dos níveis de emprego. A inflação não tem de ter uma relação direta com o desenvolvimento económico ou com uma recessão, mas tem uma relação direta com o poder de compra das pessoas. A economia teve um desempenho razoável em 2022, mas as pessoas estão a sentir a crise no bolso.

A prestação média de um empréstimo à habitação subirá 30% até ao fim de 2023. O preço dos alimentos sobe há 14 meses seguidos. O fim do imposto adicional sobre os combustíveis acabou por não baixar os preços de maneira significativa. Onde se pode traçar a linha entre inflação e especulação?

É difícil traçá-la. A especulação faz-se muitas vezes em coisas relativamente simples. Qualquer um de nós conhece alguém que trabalha numa atividade onde esse tipo de prática acontece. Imaginemos um negócio de bairro que vende materiais de construção e que tem, em armazém, um conjunto de materiais que adquiriu a preços de 2021. 

O preço de mercado desses materiais duplicou desde então. Quando vende esses materiais, vende-os a que preços? Vende-os de acordo com os preços atuais, por haver uma grande procura, escassez de alguns materiais, e porque quem os quer comprar está disponível para pagar um preço mais alto para conseguir, por exemplo, concluir uma obra a tempo.

Isto é especulação ou não? À partida, parece claro que sim. Se falarmos com o dono deste hipotético negócio, ele dir-nos-á: "bom, quando eu for reabastecer o meu armazém, os materiais vão estar a um preço muito mais elevado, portanto tenho de cobrar por eles um valor que me permita comprar mais". Este pequeno exemplo aplica-se a muitas esferas da nossa vida em comum. Há, claramente, momentos de especulação.

Se perguntarmos a essa pessoa quando é que esse armazém deverá ser reabastecido e que preço pagará, ela não sabe verdadeiramente. Até pode dar-se que daqui a cinco meses os preços estejam muito mais baixos do que atualmente. Aí, teve um lucro extraordinário. Há aqui um elemento especulativo que, em parte e em algumas atividades, pode ser justificado.

O problema não se põe tanto neste tipo de atividades. É mais grave quando falamos em empresas com grande poder em mercados que tendem a ser oligopolistas, como é o caso da distribuição ou dos vários segmentos do mercado da energia. As empresas têm um poder de negociação muito mais elevado e acabam por fazer aquilo que estamos habituados a ver no mercado dos combustíveis: os preços sobem muito mais rapidamente do que descem.

O nosso Governo foi dos últimos a assumir que se deveria taxar esses lucros extraordinários. Será suficiente? Ou justo? Porquê a timidez em aplicar essa taxa?

Os governos portugueses são mais vulneráveis às pressões dos grandes interesses económicos do que os governos de outros países. Isso só é atenuado quando há outras forças que funcionam como contra-tendência e que permitem compensar esse enorme poder. Podemos sempre arranjar muitas justificações: tributação, justiça relativa, cumprimento de contratos ou atração de investimento estrangeiro.

A verdade é que outros países costumam dar respostas bastante céleres quando é para compensar situações como a dos lucros extraordinários. Em Portugal há sempre mais resistência —  e menos capacidade em fazer frente —  aos interesses instalados. É um dos problemas da nossa democracia e é um dos motivos pelos quais é muito importante que haja capacidade de resistência democrática a opções governamentais que se façam exprimir das mais diversas formas, sejam elas sob a forma de uma presença forte no Parlamento ou outras formas de protesto, mais ou menos institucionais.

Temos de ser contidos nas expectativas sobre o impacto que a taxação extraordinária sobre os lucros pode ter. As taxas de imposto sobre os lucros do setor energético não seriam por si só suficientes para compensar a dinâmica geral de aumento dos preços. Mas criariam receitas adicionais que permitiriam dar respostas mais eficazes a outros problemas que existem na atualidade.

Se procurássemos traduzir as taxas de lucro do setor energético sobre os preços dos combustíveis e gastássemos aí os recursos adicionais, estas receitas adicionais iriam diluir-se pelo conjunto da economia portuguesa e ter impactos que seriam, em todo o caso, modestos. Embora haja sinais óbvios de especulação e lucros excessivos, temos de nos lembrar que aquilo que está hoje a determinar o grosso dos aumentos dos preços energéticos não são as decisões das empresas energéticas, são as condições nos mercados internacionais.

O desemprego jovem é ainda marcadamente superior ao desemprego geral, estando nos 15,9%. Entre a crise na habitação, a desvalorização dos salários e os recibos verdes,  as novas gerações, as mais bem educadas e preparadas, estão condenadas à precariedade. Como se melhora a vida dos jovens adultos?

São muitos os desafios colocados aos jovens portugueses. A pandemia foi uma experiência social dramática, desde logo do ponto de vista laboral. Houve uma incrível preservação dos postos de trabalho, mas apenas daqueles trabalhadores com contratos permanentes. Houve um recurso ao instrumento do lay off, em que o Estado subsidiou os custos salariais das empresas que, por sua vez, mantiveram os trabalhadores na sua folha de salários. Uma vez que esse apoio não foi total, muitas empresas dispensaram os trabalhadores mais fáceis de dispensar. E esses ou estavam em período experimental ou eram precários. E eram trabalhadores jovens.

Daí que se tenha assistido a um aumento brutal do desemprego jovem em Portugal, ao mesmo tempo que o aumento do desemprego geral foi muito moderado. Isto reflete um problema fundamental da economia portuguesa: a utilização de contratos precários como forma de ajustamento das empresas aos ciclos económicos. Isso acaba por penalizar os mais jovens.

A este nível, é preciso intervir sobre a legislação laboral, é preciso haver mais exigência no recurso a formas atípicas de contrato laboral. Não devem deixar de existir, mas só devem existir quando são devidamente justificadas, o que não é o caso.

Há um outro problema, de natureza mais estrutural. Temos uma população jovem cada vez mais qualificada. Quando comparamos Portugal com o resto das economias mais avançadas, já não estamos mal do ponto de vista das qualificações. O número de licenciados entre os 25 e os 34 anos já é superior à média europeia. No entanto, ainda não temos uma estrutura económica capaz de absorver pessoas com esses níveis elevados de qualificações. Nenhum governo, nenhuma estratégia de política económica pode resolver isto do pé para a mão. Se há uma economia assente em atividades pouco intensivas em conhecimento, não devemos esperar que, de repente, as pessoas com mais conhecimento sejam facilmente absorvidas por essa estrutura produtiva.

A solução para isto não é deixar de qualificar as pessoas. Há que procurar garantir que os jovens, à medida que adquirem mais qualificações, adquirem qualificações ajustadas ao tipo de estrutura produtiva que temos. Isto não significa que só queremos canalizadores e eletricistas e que não queremos licenciados em biotecnologia. Quer dizer que as pessoas formadas em biotecnologia, se não tiverem uma formação adequada ao tipo de atividades que mais facilmente se podem desenvolver em Portugal, não podem senão concluir que a única maneira de arranjarem o tipo de emprego que querem é emigrando.

Tem de haver um grande planeamento da oferta do ensino superior e uma preocupação em garantir que o ensino superior promove competências mais diversas do que está disponível para produzir. Há também um problema ao nível da própria administração pública, que paga salários mais baixos que o setor privado para a maioria das qualificações superiores. Ou seja, não é uma alternativa procurada, ao contrário do que acontecia há 30 ou 40 anos, quando as pessoas mais qualificadas olhavam para um emprego na administração pública como algo atraente e desejável. 

Não conseguimos ter a administração pública a atrair jovens mais qualificados e não conseguimos atrair jovens trabalhadores mais qualificados para o setor privado, porque este é estruturalmente desqualificado. Combater estas forças não é fácil. É preciso intervir persistentemente em vários domínios, com várias medidas.

Gostaria de lhe dizer que se tivéssemos políticas radicalmente diferentes acabaríamos com esta tendência de êxodo de jovens para fora do país. Atualmente, não vejo isso como algo fácil de conseguir, dadas as restrições que enfrentamos do ponto de vista da nossa estrutura produtiva ou das regras de inserção de Portugal nas relações económicas internacionais.

Falámos há pouco sobre a dívida pública. Porque é que já não se fala sobre a renegociação da dívida pública portuguesa?

A dívida pública deve ser paga. Mas a que ritmo e a que custo? O país pode e deve ter uma trajetória de redução do peso da dívida no PIB. Não precisa de a ter ao ritmo quase fetichista que o Governo adotou desde 2019. De resto, não se fala da reestruturação da dívida como se falava há dez  anos por ter havido uma reestruturação encapotada dessa dívida.

A proporção de dívida pública que está hoje nas mãos de instituições públicas é muito maior que há dez anos. O  programa de compra de ativos que o Banco Central Europeu significou que grande parte da dívida pública portuguesa não é, hoje, transacionada nos mercados internacionais de dívida.

Quando falamos da reestruturação da dívida, pensamos na reestruturação da dívida com os privados, em responsabilizá-los pela dívida que adquiriram. Quando há um incumprimento no pagamento da dívida, a responsabilidade deve ser colocada não só sobre quem a contraiu, mas também sobre quem decidiu conceder créditos nas condições em que as concedeu. Foi nestes termos que muitos de nós defendemos, há dez anos, a renegociação da dívida pública portuguesa.

A intervenção do BCE nos mercados internacionais significou que uma grande quantidade da dívida que existia deixou de ser negociada nos mercados. E foi transacionada com custos muito mais baixos para o Estado português e outros países da União Europeia. Além disso, parte dos lucros gerados pelo BCE, pelo facto de ter adquirido os títulos de dívida a preços mais baixos do que vieram a refletir-se adiante, foi devolvida ao Estado português através dos lucros do BCE.

Na prática, houve uma reestruturação encapotada da dívida. Aqueles que há dez anos diziam que seria impossível pagar a dívida nos termos que então vigoravam, estavam certos. Se até hoje não houve uma situação de incumprimento ou colapso político-social, isso deve-se em larga medida às autoridades europeias se terem visto forçadas a reestruturar a dívida de uma forma não evidente.

Neste momento, o custo do pagamento das dívidas públicas para os países mais endividados é muito mais baixo do que era há dez anos. E, tão ou mais importante que isso, os riscos de elevados rácios de dívida pública se transformarem em eventos especulativos que criam instabilidade financeira e tornam o pagamento da dívida incomportável é hoje muito mais baixo. 

Como já toda a gente percebeu, as autoridades europeias estão dispostas a fazer sofrer os países endividados, mas só até ao ponto em não ponha em risco a própria subsistência da Zona Euro. 

Na mesma notícia sobre os aumentos dos juros do BCE passou despercebido que o BCE anunciou que iria eventualmente parar de comprar dívida pública. Quais as consequências que isto poderá ter?

Vamos ver. Não é muito claro até que ponto isso pode causar pontos de pressão nos mercados das dívidas. Era inevitável que o BCE se sentisse forçado a interromper o programa de aquisição de ativos que lançou já há alguns anos. Se existe o discurso de que uma política monetária demasiado expansionista provoca inflação, então o domínio onde deve haver intervenção é, precisamente, naquilo que se chamou o quantitative easing.

Se os governos dos países do Sul [da Europa] se mostrarem alinhados com as exigências dos países mais poderosos, haverá sempre um "rebuçado" dado a estes países, através de uma garantia do BCE de que não haverá nova turbulência financeira. Vejo isto como a principal explicação para que o governo de extrema-direita italiano, por exemplo, se apresente como obediente às orientações financeiras e orçamentais da união.

Que alternativas crê haver, politicamente mas partindo de uma abordagem economicamente, ao atual governo? A alternativa neoliberal é a mais forte?

Bem, nós já vivemos num regime neoliberal. Não podemos esperar que haja diferenças radicais em algumas das opções políticas essenciais. Se levarmos à letra o programa da Iniciativa Liberal, teríamos uma alteração significativa do que seria viver em Portugal. Teríamos a reestruturação do SNS como o conhecemos, uma imposição da suposta liberdade de escolha no ensino, uma desregulação do mercado de trabalho, a transição para um sistema de capitalização na Segurança Social. Vejo com muita dificuldade a efetivação deste tipo de agenda.

O governo da troika tentou fazê-lo em parte. Tinha maioria absoluta, uma situação de crise financeira, política e social, num momento em que a capacidade de resistência das oposições era muito baixa, e não o fez. E não o conseguiu fazer por vários motivos.

A menos que haja um evento extremo em Portugal, o que é sempre uma possibilidade, será muito difícil a direita impor essa agenda. Isso não significa que os princípios constitucionais da educação e da saúde universais e gratuitas, da dignidade da pessoa humana, da proteção social e da justiça na distribuição dos rendimentos estejam assegurados. As pressões sobre a governação são muitas. Um governo como o do PS governar mais à esquerda ou à direita, simplificadamente, depende menos daquilo que são as atuais convicções das pessoas que governam e muito mais das pressões a que são sujeitas e como as escolhem gerir.

Teremos alterações mais substanciais na forma como o país é governado muito em função da pressão social que houver. E aqui tenho de dizer que me preocupam menos as oposições de direita que as oposições de esquerda.

O PS está a neutralizar as oposições de direita, pelo facto de seguir, ao nível orçamental, a agenda tradicionalmente defendida por elas. A governação tenderá a ser menos favorável à esquerda se esta tiver pouca capacidade de resistir, de mobilizar pessoas para aquilo que é a sua própria agenda.

A esquerda está à defensiva?

A esquerda saiu das últimas eleições muito fragilizada. O Governo e o PS foram bastante eficazes em pôr nos ombros do PCP e do Bloco [de Esquerda] a responsabilidade pela interrupção da legislatura. O PCP e o Bloco não conseguiram contrariar essa campanha massiva e isso explica, em larga medida, os resultados fracos que tiveram nas últimas eleições legislativas. 

Conseguir sair de uma situação destas não é fácil, ainda menos estes dois partidos, que têm muita dificuldade em mobilizar a juventude. Vejo isso com preocupação. Enquanto esse problema não for resolvido — e não se mobilizar a juventude para uma crítica à esquerda daquilo que têm sido as opções de governação — vai ser muito difícil conseguir ter a força necessária para que, quando as coisas apertarem, as decisões não caírem sistematicamente para o lado errado.

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