Joana Amaral Dias* | Diário de Notícias | opinião
Quando ouvi a história do questionário, pensei que incluísse algo como "Quando sair do seu tacho no Governo vai A) saltar para um poleiro altaneiro possivelmente numa área que tutelou ou da qual o seu marido/mulher tinha a respectiva pasta; B) receber indemnização de um milhão e meio; C) transitar para um cargo internacional (como sabe esta opção só é possível após muita genuflexão e/ou peculato); D) dedicar-se ao crime organizado, aos cartéis ou máfia, considerando a experiência curricular".
Só que não. Entretanto, percebi que há meses circulava uma checklist satírica que, afinal, antecipou na perfeição esta Ópera-Bufa. Nela constam perguntas como: "tem contas bancárias arrestadas?" ou "já alguma vez esteve preso?". Enfim. A realidade é agora tão imunda que urge recorrer ao humor como escapismo. Modo de sobrevivência.
Ou seja, chamem a isto questionário de Verão, questionário
de escolha (s) múltipla (s) mas, caramba! - não o titulem de mecanismo, muito
menos de escrutínio. Primeiro, não tem qualquer valor jurídico. Será sequer
constitucional? Depois, vai ser aplicado com retroactivos, isto é, a todos os
que já são ministros e primeiros ministros? Terceiro, vai ser fiscalizado por
um Tribunal - ou como em algumas instâncias europeias - ou fica só a marinar?
Vai ser tornado público e ser totalmente transparente? Sem estas e mais algumas
condições, precisando Portugal de prestação de contas como pão para a boca,
tudo isto é só patético. Um perigoso ridículo porque aquilo que pretende expor
acaba por tapar ainda mais. Oculta porque muitos portugueses esperançosos acreditarão
que algo mudará, porque permite colocar as culpas no candidato mentiroso,
dividir ónus com o Presidente da República e desculpar governos corruptos (a
responsabilidade da escolha é do PM e ponto final, mas quem foi que insistiu
Repare-se que qualquer governante dispõe de múltiplas formas de privilegiar empresas, desde ajustes directos e outras contratações públicas até benesses fiscais ou licenciamentos. Muitas são de difícil controlo. Imaginemos, e.g., que elementos como Alexandra Reis ou Jamila Madeira tinham respondido às 36 questões de fio a pavio. O interrogatório teria produzido zero efeito sobre os seus abusos, certo? Aliás, relembre-se que, por exemplo, os deputados já são obrigados a um registo de interesses que, por ser inconsequente, é vezes demais interpretado tipo declaração amigável. Já para não falar da lei sobre os Crimes da Responsabilidade de titulares de cargos políticos.
Logo, palha à parte, tudo isto é circo, alimentado por alguns jornalistas que também podiam responder a umas interpelaçõezinhas prévias (saco azul à parte). O que importa aqui discutir e procurar sanar é o curto diâmetro de recrutamento para os governos e administração pública, a diluição da ética - ou até da Democracia - e a ausência de verdadeiras punições, um caldo pestilento que, de resto, levou a 12 demissões em 9 meses, com maioria absoluta e sem oposição digna desse nome. Ou já todos se esqueceram do amigo de Sócrates?
*Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia
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