Solon Neto |
Sputnik – A crise humanitária Yanomami ganhou notoriedade nacional após a recente visita do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao território indígena e uma investigação sobre genocídio foi aberta. A Sputnik Brasil ouviu especialistas para discutir o assunto e o possível envolvimento do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Segundo o governo federal, 570 crianças menores de cinco anos morreram nos últimos quatro anos no território Yanomami de mortes evitáveis. Apenas no ano passado, foram cerca de 100 crianças mortas no território. Diante da situação, ainda no dia anterior à visita de Lula, o Ministério da Saúde já havia criado uma sala de situação para apoiar ações na Terra Indígena Yanomami e declarou emergência em saúde pública de importância nacional.
Além das ações emergenciais da Saúde, o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciou a abertura de uma investigação de possível genocídio envolvendo a responsabilização do ex-presidente Jair Bolsonaro e de membros de seu governo. Na segunda-feira (30), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso determinou a abertura de investigação de crime de genocídio contra o povo Yanomami praticado pelo governo Bolsonaro.
Em relatório preliminar divulgado na mesma data, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania aponta possíveis omissões e violações do extinto Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos durante o governo Bolsonaro, prevendo a “responsabilização de agentes que promoveram ações deliberadas contra a dignidade humana na gestão passada”.
Entre as denúncias apresentadas está a “sugestão de veto à obrigação do fornecimento de água e equipamentos básicos” para as comunidades Yanomami em meio à pandemia da COVID-19, além da ausência de planejamento de assistência para crianças e adolescentes indígenas no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes.
Apesar da notoriedade recente, a crise atual foi denunciada dezenas de vezes nos últimos anos por diversas organização e instâncias da Justiça, como no caso do Ministério Público Federal (MPF), que denuncia a situação desde 2020.
A população Yanomami vive em um território cobiçado há décadas por garimpeiros com área de 192 mil quilômetros quadrados na região fronteiriça entre Brasil e Venezuela. Estudiosos apontam que a floresta e o tipo de vegetação presente na região têm influência direta dos Yanomami, que preservam e cultivam a região como “ativos construtores”. A área demarcada dentro do território brasileiro — homologada em 23 de maio de 1992 — se estende pelos estados do Amazonas e de Roraima. Com cerca de 96.650 quilômetros quadrados, o território abriga, no Brasil, cerca de 26 mil indígenas divididos em 228 comunidades.
Crise pode agravar situação de Bolsonaro
Para o advogado Wallace Corbo, professor da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), as evidências que surgiram nos últimos dias em relação à crise Yanomami reforçam os processos enfrentados pelo ex-presidente no Tribunal Penal Internacional (TPI), também conhecido como Tribunal de Haia, mas o desdobramento desse caso depende da Justiça brasileira.
O TPI, que existe desde 2002, tem jurisdição sobre mais de 120 países, incluindo o Brasil, e julga crimes contra a humanidade, de guerra, ambientais e genocídios. A admissão das denúncias ocorre principalmente quando há evidências de que a justiça nacional dos países falhou em julgar os crimes apontados.
“Os novos fatos, as novas provas, os novos indicativos de que o ex-presidente contribuiu — ou eventualmente até participou em um possível crime de genocídio, ou de perseguição contra os povos Yanomami — acabam reforçando a tese dos processos e de eventuais novos processos que possam ser apresentados perante o Tribunal Penal Internacional [TPI]. Isso pode fortalecer uma eventual condenação, mas é preciso sempre lembrar que o TPI atua de maneira subsidiária, de modo que vai caber primeiro à Justiça brasileira agir ou, não agindo, aí sim, o tribunal pode vir a se manifestar”, avalia o professor em entrevista à Sputnik Brasil.
Uma eventual condenação por genocídio contra o povo Yanomami não seria a primeira. Em 1993, o que ficou conhecido como Massacre de Haximu — envolvendo o assassinato de mulheres, idosos, crianças e adolescentes Yanomami por garimpeiros na região — resultou em uma denúncia do Ministério Público Federal (MPF) pelo crime de genocídio contra cinco pessoas, que foram condenadas pela Justiça Federal de Roraima. A condenação foi mais tarde confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os condenados enfrentaram pena de 20 anos de prisão.
“Se for revelada qualquer culpa por parte do ex-presidente na tragédia Yanomami, seja por ação, seja por omissão deliberada que contribua para o que nós estamos vendo hoje, o presidente pode ser responsabilizado não só civil como também criminalmente pela prática de crimes como, por exemplo, o crime de genocídio, ou, eventualmente, outros crimes que estejam previstos na legislação penal”, ressalta Corbo.
O papel do garimpo ilegal na crise Yanomami
Em entrevista à Sputnik Brasil, a assessora jurídica do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana de Paula Batista ressalta que o garimpo ilegal tem papel central na crise Yanomami. A advogada destaca que o garimpo ilegal na região já existia anteriormente, mas teve aumento expressivo durante o governo Bolsonaro, ampliando problemas de saúde e violência no território indígena.
“A partir do governo Bolsonaro essa invasão aumenta muito por conta da desestruturação de órgãos, principalmente de fiscalização ambiental. E isso começa a gerar uma crise de saúde muito maior entre os Yanomami. Primeiro, porque o garimpo abre grandes lagoas com água parada, o que vira um criadouro de malária […]. Segundo, porque a maior parte dos rios vai sendo desviada, transformada nessas lagoas que vão ficando com água barrenta, com contaminação de mercúrio — metal pesado utilizado para separar o ouro da terra”, aponta a advogada.
O metal pesado também impacta na alimentação dos indígenas, pois amplia a mortalidade de peixes nos rios e contamina fontes de água potável. Além disso, aponta Batista, os garimpeiros atacam plantações cultivadas pelos indígenas, reduzindo ainda mais as fontes de alimentos dessas populações. A advogada ressalta ainda que o problema se estende para a violência, incluindo sexual.
“A gente tem que ter em mente que esses garimpeiros, muitas vezes, estão fortemente armados, assediam sexualmente as meninas e mulheres. A gente tem muitos relatos de estupro e a gente tem indícios de que eles estejam envolvidos com grandes organizações criminosas. Então isso também começa a gerar um ambiente de muita violência e os indígenas começam a ficar sitiados dentro das suas próprias casas”, afirma.
Além de causar a escassez de alimentação, o garimpo ilegal também afeta diretamente a infraestrutura de saúde nessas regiões. Batista aponta que há “sequestros da estrutura de postos de saúde”, impossibilitando o atendimento médico às comunidades indígenas.
“Os médicos, quando vão atender nos postos de saúde dentro da terra indígena, geralmente ficam cerca de 15 dias por lá, porque é uma logística difícil — tem que ir de avião, não dá para ir e voltar todo dia. E aí, associada ao posto de saúde, geralmente há quartos, cozinha e banheiro para hospedar essas equipes de saúde. Quando essas estruturas são sequestradas e passam a ser utilizadas pelos garimpeiros, os médicos não têm mais como ir fazer esse atendimento”, aponta.
Ex-ministros também podem sofrer consequências legais
O profesor da FGV-RJ Wallace Corbo ressalta que a responsabilidade criminal pode se estender a “todos os agentes que contribuíram ou que se omitiram indevidamente com relação ao povo Yanomami”, incluindo ministros.
É o que também aponta a assessora jurídica do Instituto Socioambiental (ISA). Na avaliação de Batista, os ex-ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Direitos Humanos) também são responsáveis pela crise Yanomami.
“Com certeza existe uma responsabilidade tanto do ministro Ricardo Salles como da ministra Damares Alves. Primeiro, porque o ministro Ricardo Salles, como responsável pela pasta de Meio Ambiente, tinha o dever de determinar, por exemplo, operações por parte do Ibama nessa área, em articulação com outros órgãos”, diz a advogada, que aponta também a omissão da ex-ministra Damares Alves em ações de auxílio aos indígenas em meio à crise humanitária.
Imagem: Assembleia Geral Yanomami, que celebra 20 anos de homologação da terra indígena Yanomami, na aldeia Novo Demini, em Barcelos, AM / © Folhapress / Odair Leal
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