quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

PERU: VIAGEM AO CENTRO DA REVOLTA

A um passo de derrubarem a presidente usurpadora, camponeses colorem o país com colchas, sombreros e huarácas. “Toda a cordilheira está dizendo chega”, afirmam após 58 mortes. Ninguém arreda pé. São os herdeiros de Tupac Amarú

Tom Phillips | no The Guardian | Outras Palavras | Tradução: Rôney Rodrigues | # Publicado em português do Brasil

Um a um, os campesinos rebeldes subiram no palanque improvisado que construíram no topo de uma barricada de terra de 2 metros, declarando estar determinados em derrubar a presidente do Peru.

“Irmãos e irmãs, agora nosso Peru precisa de nós mais do que nunca”, disse Nilda Mendoza Coronel, agricultora de 35 anos, a centenas de grevistas que se reuniram sob o sol forte da manhã.

“Vamos lutar até o fim, carajo!”, Mendoza gritou através de um megafone. “Ninguém vai parar nossa luta!”

Outro orador, Aparicio Meléndez, instou a multidão na cidade andina de Sicuani a ignorar os relatos de que tropas do Exército estavam a caminho para desbaratinar a revolta. “Ficaremos aqui até que eles gastem a última bala”, prometeu o criador de gado de 55 anos enquanto observava o protesto que bloqueava a rodovia 940 que atravessa os Andes peruanos.

Um grito de guerra de duas palavras havia sido pintado na pista atrás da barricada: “Insurgência do povo”.

Há sete semanas, a cidade de Sicuani está no centro desta insurreição contra a presidente do Peru, Dina Boluarte, e o establishment político do país, que começou no início de dezembro após o presidente esquerdista, Pedro Castillo, ser destituído e preso sob acusação de tentar encenar um golpe.

Ventos políticos estranhos e violentos têm fustigado a América Latina e o Caribe ultimamente, com uma “revolta” de extrema direita no Brasil, colapso político e social no Haiti e protestos na Bolívia após a prisão de um dos líderes mais proeminentes de oposição. Mas em nenhum lugar a turbulência foi mais generalizada — ou mortal — do que no Peru, onde pelo menos 58 vidas foram perdidas desde a dramática queda de Castillo.

Grandes áreas do quarto país mais populoso da América do Sul foram paralisadas por protestos e bloqueios de estradas, enquanto os apoiadores de Castillo – e aqueles indignados com a resposta mortal do governo – saem às ruas para exigir a renúncia de Boluarte, novas eleições e justiça para as dezenas de assassinatos de que as forças de segurança são acusadas.

Uma viagem do Guardian pela região mais afetada, entre as cidades andinas de Cusco e Juliaca – onde 17 pessoas morreram no pior dia de violência – ouviu as vozes do levante contra o governo peruano.

A cansativa jornada de 340 quilômetros levou três dias e envolveu a passagem por dezenas de postos de controle guardados por camponeses rebeldes, bem como centenas de barricadas feitas de pedras, troncos de árvores, veículos em ruínas, vidro e sucata.

Além dos bloqueios de estradas, foi também uma jornada pela profunda desigualdade social, pobreza opressiva e discriminação que estão por trás da explosão de raiva rural contra o que muitos manifestantes chamam de sistema político corrupto, egoísta e, em grande parte, branco de Lima, capital do país.

“É como se não fôssemos humanos… É como se não valêssemos nada”, disse Raúl Constantino Samilán Sanga, cujo irmão de 30 anos foi morto a tiros em Juliaca durante confrontos entre policiais e manifestantes. “Toda a Cordilheira dos Andes está dizendo que já chega – isso deve mudar.”

A viagem pelo centro do terremoto político do Peru começou em Cusco, outrora capital do império inca e hoje destino turístico mais importante do país sul-americano, com quase 3 milhões de visitantes por ano. Os turistas sumiram desde o início do levante, com o aeroporto de Cusco sendo diversas vezes trancado pelas autoridades e a vizinha Machu Picchu, fechada no início deste mês.

“Todo mundo está tenso, preocupado e um pouco assustado também”, disse Hannah Jenkinson, uma estilista britânica que administra uma butique no agora deserto centro histórico de Cusco.

A algumas ruas de distância, centenas de manifestantes marcharam em direção à praça onde no século 18 o líder indígena Túpac Amaru foi esquartejado e decapitado após se rebelar contra o domínio espanhol.

“Ela está caindo! Ela está caindo! A assassina está caindo!”, as multidões cantavam sobre Boluarte enquanto avançavam pelas ruas de paralelepípedos de Cusco, agitando a bandeira vermelha e branca do Peru.

A dezenas de quilômetros ao sudeste de Cusco, passando por ruínas pré-incas e montanhas pontilhadas de eucaliptos, fica a vila de Villahermosa – o local do primeiro grande bloqueio ao longo da rodovia Rota 3S do Peru.

Dezenas de aldeões, incluindo mulheres idosas segurando chicotes tradicionais, a huaraca, tecidos de lã de alpaca, bloquearam a estrada com troncos de árvores e pneus, expressando fúria contra décadas de negligência do governo e contra a recente onda de assassinatos, muitos dos quais foram atribuídos às forças de segurança.

Juvenal Luna Jara, 22, disse que se juntou à rebelião uma semana antes, indignado com o fato de tantos manifestantes terem sido mortos no sul rural do Peru, há muito tempo negligenciado e que estava no centro da brutal guerra travada pela guerrilha do Sendero Luminoso durante 12 anos. A seu ver, a maioria das vidas se perdia nessas regiões porque os provincianos eram considerados cidadãos de segunda classe, ou coisa pior. “É como se eles estivessem matando cachorros”, irritou-se ele.

Horas antes, Boluarte havia implorado aos manifestantes que aceitassem uma trégua nacional. Mas não havia sinal de adesão em Villahermosa, pois os agricultores se reuniram para expressar sua raiva pelo papel que a atual presidente desempenhou na destituição de Castillo, ex-líder sindical que nasceu na pobreza e chegou à presidência em 2021, com forte apoio de eleitores rurais empobrecidos de lugares como como este.

“Se não houver solução, a luta continuará”, rugiram os aldeões.

Ao longo da rodovia repleta de pedregulhos, aldeia após aldeia a mensagem era a mesma, com agricultores desiludidos e oprimidos se reunindo por causa dos bloqueios que construiam e oferecendo discursos apaixonados sobre a situação nacional e de como sua região mineira, rica em recursos, havia sido ordenhada para lucros que nunca foram vistos.

Dina Quispe chorou ao denunciar como as autoridades peruanas rotularam os manifestantes de terrucos (terroristas) financiados pelo narcotráfico, respondendo ao apelos por mudanças políticas com repressão e derramamento de sangue. “Fomos humilhados e esquecidos”, disse a vendedora de 41 anos da comunidade de Checyuyoc. “Eles estão matando nossos irmãos com balas.”

Em meio às lágrimas, Quispe expressou desgosto por ter o mesmo primeiro nome da primeira mulher presidente do Peru. Boluarte se tornou um para-raios para uma desilusão muito mais profunda, uma desilusão com a política falida de um país que teve sete presidentes nos últimos seis anos e onde um quarto da população luta para se alimentar adequadamente.

Quispe disse aos repórteres: “Por favor, levem esta voz de protesto do mais profundo e humilde Peru [para o mundo].”

A alguns quilômetros de distância, em Sicuani, uma cidade agora quase completamente isolada do mundo exterior pelos bloqueios de estradas, centenas de mulheres quéchuas usando sombreiros, saias pollera e colchas deslumbrantes estavam em marcha.

“Estamos lutando pelo nosso futuro e pelo futuro de nossos filhos e netos”, disse Roxana Chahuanco, 40 anos, enquanto os moradores se preparavam para debater seu próximo passo depois que o governo anunciou que enviaria tropas para “limpar” as estradas.

Lá, Mendoza Coronel evocou os mártires indígenas Túpac Amaru e sua esposa, Micaela Bastidas, enquanto exortava os moradores locais a intensificar a rebelião camponesa contra as elites “corruptas” de Lima. “Eles nos desprezam porque somos filhos de camponeses e por sermos pessoas do campo”, disse ela.

Na aldeia seguinte, um crânio de vaca foi colocado em um poste, logo acima de uma barricada formada por dois montes de entulho e terra. “É a Dina”, brincou uma das mulheres que faziam o policiamento do posto de controle.

De Sicuani, a rodovia sube ainda mais nos Andes até a espetacular fronteira de 4.300 metros com o departamento de Puno, onde também comunidades indígenas aimarás se revoltam contra o novo governo.

Boluarte se enfureceu ainda mais os habitantes da região na semana passada, quando disse a jornalistas estrangeiros que “Puno não é o Peru” – uma declaração que, posteriormente, a presidente alegou ter sido mal interpretada.

“Somos peruanos ”, disse uma mulher que guardava uma barreira na estrada fora da cidade de Ayaviri. “Foi em Puno que nasceu o império Inca.”

Depois de Ayaviri, a rodovia desce em direção à maior cidade de Puno, Juliaca, um centro de mineração e contrabando dilapidado, onde os protestos antigovernamentais continuam a acontecer enquanto as famílias locais lamentam seus mortos.

Atrás de uma porta de metal decorada com uma fita preta de luto estava sentada María Ysabel Samillan Sanga, que perdeu seu irmão mais novo no início de janeiro.

Marco Antonio Samilán Sanga era um estudante de medicina que trabalhava como médico voluntário em Juliaca quando manifestantes tentaram invadir o aeroporto da cidade e as forças de segurança responderam com munição real.

O estudante de 30 anos levou um tiro no coração enquanto atendia um menino que havia inalado gás lacrimogêneo – uma das pelo menos 17 pessoas que morreram em Juliaca naquele dia. “Foi um massacre”, disse a irmã. “Não há outra palavra para isso.”

Samillan Sanga chorou ao se lembrar de como seu irmão conseguiu sair da pobreza extrema e entrar na faculdade de medicina. Ele sonhava em se tornar um neurocirurgião e criar programas de saúde para a população pobre da zona rural de Puno.

“Neste momento, sinto que estou sendo obrigada a viver… Se dependesse de mim, eu morreria também porque tem dias que não consigo lidar com essa dor”, disse ela, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Samillan Sanga também viu o preconceito e a discriminação como uma das razões da morte de seu irmão — e da revolta no Peru. “Nós temos sentimentos. Nós somos humanos. Nós sentimos. Nós choramos. Nós temos emoções. E estamos sofrendo”, disse seu irmão, Raúl Constantino.

A família disse temer represálias do governo por se manifestar, mas não seria silenciada. “Espero que alguém leia isso e pense: como está a família Samilán Sanga?”, disse Maria Ysabel. “Porque a verdade é que fomos destruídos. Minha família nunca mais será a mesma.”

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