quinta-feira, 16 de março de 2023

Angola | MEMÓRIAS DA GRANDE INSSURREIÇÃO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Março dia 15. Ano de 1961. Os angolanos do Norte revoltaram-se contra o poder colonial. A revolta começou na fronteira de Sacandica e chegou aos Dembos, na época região do distrito de Luanda. Milhares de camponeses, armados com paus e catanas, um ou outro canhangulo, protagonizaram a Grande Insurreição contra o colonialismo português. Nunca tinha acontecido nada igual. No terreno, os comandantes da rebelião eram os comandantes Margoso e Pedro Afamado, entre outros.

O internato do meu colégio ficava num prédio de três andares, na saída sul da cidade do Uíge. Em frente existia um grande descampado que nesta altura tinha capim do tamanho de um homem. Nesse dia os aguaceiros e a ventania arrasaram o capinzal. Estávamos as férias da Páscoa mas a direcção da escola decidiu que os alunos internos que frequentavam os anos de exame (segundo e quinto ano do Liceu) iam continuar as aulas. Na primeira aula da manhã do dia 15 de Março de 1961, um colega entrou esbaforido na sala e berrou:  - Os pretos mataram toda a gente nas fazendas do Quitexe! 

Imediatamente recebemos ordens para voltarmos ao internato. A meio da manhã começaram a chegar mulheres e crianças das pequenas vilas e fazendas onde estoirou a Grande Insurreição. Refugiados. Como o internato estava quase vazio, foram ali acolhidos.

Pouco tempo depois começaram os tiroteios. Mulheres, crianças, jovens e velhos que habitavam nas sanzalas próximas da cidade foram atacados por hordas de colonos armados com caçadeiras, carabinas (armas de bala para matar pacaças) e pistolas. Como a cidade do Uíge tinha polícia e era a sede do governo distrital procuravam a protecção das autoridades. Eram recebidos a tiro.  Muitos tentavam esconder-se no capinzal em frente ao internato. Não adiantava. O tiroteio era intenso e ninguém sobreviveu.

À hora do almoço o responsável pelo internato informou-nos que terroristas vindos do Congo Belga (já era independente…) mataram milhares de pessoas nas pequenas vilas e nas fazendas. O centro da mortandade foi o Quitexe, Vista Alegre, Vale do Loge (sobretudo Bembe, Toto e Caipemba), Songo, Mucaba, Damba e por aí acima até à fronteira. A resposta foi o choro de quase todos nós. Meus pais estavam na fazenda do Bindo, entre Camabatela e o Quitexe. A maior parte das alunas e alunos internados tinham os pais nas fazendas.

No internato só existia um aluno que ainda estava no ensino primário. Chamava-se Jorge Gonçalves e tinha vindo de Sacandica. Chorava pela mãe dia e noite. E nós fazíamos de irmão, pai e mãe do Jójó. Mais tarde, muito mais tarde, foi presidente do Sporting Clube de Portugal. No colégio, entre alunos internos e externos, existiam quatro mestiços. O Nelson, do Mavoio, o Toi do Songo (seu pai era o treinador, jogador e capitão da equipa de futebol), o Rodrigo Deker Ribeiro, do Negage (tinha sido eleito o melhor aluno no ano lectivo anterior) e o Beto Martins, aluno externo, vivia com os padrinhos que o adoptaram. Negros nem um. 

O Nelson, o Toi e o Rodrigo, como não estavam num ano de exame foram de férias a casa. Que sorte! O Beto Martins, como vivia na cidade, foi ameaçado de morte pelas milícias. Por ser mestiço! Disseram-lhe que se o voltavam a apanhar na rua era logo fuzilado. E ele desapareceu. Só voltou a sair de casa quando os assassinos já estavam saciados de sangue, ia o mês de Maio a meio. Nesse tempo todo ninguém nos dava notícias dos nossos familiares. Decidi que estavam todos mortos e parei de chorar. Mas estavam vivos em Luanda!

As milícias matavam todos os negros que se atreviam a refugiar-se na cidade. Avisadamente começaram a fazer o caminho da fronteira. Mas os aviões da força aérea estacionados na base do Negage, acabada de inaugurar, matavam as populações em fuga. Os aviões mais pequenos (T2) voavam baixo. Os maiores (PV2) despejavam bombas de muitos quilos e assim mataram milhares de camponeses em fuga. Os assassinos sedentos de sangue espalharam o terror e diziam que as suas vítimas eram terroristas. 

As autoridades coloniais perceberam que tinham de pôr cobro aos assassinatos em massa mas os assassinos revoltaram-se e ameaçaram quem os tentou travar. As populações indefesas deixaram de fugir. A única alternativa era colocarem-se ao lado dos guerreiros da União dos Povos de Angola (UPA). Assim fizeram. Por todo o Norte, nos ataques, soou o grito maza! maza! maza! Mas as balas e as bombas não eram água. Milhares de mortos inocentes. 

O Jornal do Congo tornou-se a voz oficial das milícias. O Acácio Barradas foi chefe de redacção na direcção do Montanha Pinto. Fazia títulos notáveis. Paginava com elegância. Nunca ninguém organizou o espaço das páginas dos jornais como ele. Antes da grande Insurreição foi embora. O jornal que eu amava agora estava manchado de sangue inocente.  

Gilberto Saraiva de Carvalho (Gigi) abriu-me as portas do MPLA. E eu achei que assim iria honrar os mortos da Grande Insurreição. Até que um dia li um comunicado do movimento, datado de Março de 1961, onde o comité director condenava os massacres dos guerreiros da UPA no norte de Angola. Desilusão e tristeza. Os ocupantes venderam homens jovens e mulheres como escravos. Impuseram o analfabetismo e a exclusão. Trataram os angolanos a chicotadas e palmatoadas. Roubaram-lhes a terra. E quando se revoltaram queriam que fossem cavalheiros delicados, educados, cordatos. Injustiça!

Os guerreiros da UPA apenas imitaram os colonialistas. Nada mais do que isso. Sim, massacraram. Porque foram massacrados durante séculos. Sim, agiram com bestialidade e crueldade. Porque durante séculos foram tratados abaixo de cão tinhoso. E o meu MPLA criticou-os! Hoje, dia 15 de Março de 2023, tantos anos depois e a cair da tripeça, quero homenagear os guerreiros da UPA por terem ousado desencadear a Grande Insurreição. Invoco o Comandante Margoso, meu saudoso amigo que depois dos fuzilamentos de Kinkuzu foi para o MPLA continuando a luta armada. Curvo-me comovidamente ante todos os mortos pelas milícias, pelas bombas dos aviões de guerra, pelas tropas de ocupação e mais tarde pela OPVDCA.

Hoje devia ser feriado em Angola e no Mundo. Para todos nos recolhermos ante a memória das vítimas do colonialismo durante a Grande Insurreição. Sou testemunha de crimes sem nome. Provavelmente já não existem muitos que tenham assistido à Grande Insurreição e aos crimes dos colonos. Os que ainda estamos vivos, enganámos a estatística. 

A Grande Insurreição no Norte de Angola foi um dos alicerces da Independência Nacional. Aqueles guerreiros desarmados, peito aberto às balas, gritando maza! maza! maza! são seguramente nossos heróis e nossos mártires. 

*Jornalista

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