Mandado de prisão do Tribunal de Haia não busca promover justiça – mas atender desejo de Washington. Decisão é assimétrica, diante de outras violações. Além disso, mina negociações de paz na Ucrânia e amplia risco de conflito global
Boaventura de Sousa Santos* | Outras Palavras | Imagem: Aleksei Nikolsky/Sputnik
O mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional contra o Presidente Vladimir Putin terá repercussões distintas das que são invocadas, tanto pelos EUA e aliados, como pela Rússia e aliados. Para os primeiros, Putin, que ainda não foi sequer acusado, é já um criminoso de guerra, um pária internacional, devendo ser preso na próxima oportunidade. Para os segundos, o mandado não tem qualquer valor jurídico e não terá qualquer eficácia, sendo apenas mais um ato de propaganda do Ocidente.
É impossível saber qual das duas leituras prevalecerá no futuro e, por isso, não me pronuncio sobre elas. Debruço-me sobre as repercussões observáveis a olho nu, e desde já. Enquanto fenômeno político, o mandado de captura é semelhante às sanções econômicas impostas à Rússia. As suas repercussões serão reais, mas não são as que oficialmente se propõem.
A primeira repercussão reside no seu impacto num qualquer processo de paz sobre a Ucrânia. Suspeitava-se que os EUA não estavam interessados em negociações de paz a curto prazo e acrescentava-se que o desinteresse era partilhado pela Rússia. A suspeita está hoje confirmada. Os EUA jogam tudo na queda de Putin. Como esta não é previsível, pelo menos a curto prazo, o povo ucraniano vai continuar a ser martirizado e os soldados ucranianos e russos vão continuar a morrer. Os possíveis e bem-intencionados mediadores internacionais podem, por agora, dedicar-se a outras tarefas mais realistas.
A segunda repercussão diz respeito ao impacto do mandado de captura no princípio da justiça universal de que a criação do TPI é uma das manifestações mais concludentes. Este mandado de captura significa o descrédito total deste princípio. A credibilidade do TPI estava afetada desde o início, quando nenhuma das grandes potências (EUA, China, Rússia) assinou o tratado que o fundou. Declararam alto e bom som que não se sentiam vinculados por qualquer decisão do TPI. Os EUA foram particularmente veementes nessa posição e, de fato, se atendermos aos países ou indivíduos que foram objeto de investigação por parte do TPI, verificaremos que nenhuma investigação foi aceito ou avançou quando os EUA entenderam que tal ia contra os seus interesses. Dois casos ilustram isso bem.
O mandado de captura foi emitido no momento em que se assinalavam os vinte anos da invasão ilegal do Iraque por parte dos EUA. Uma invasão duplamente ilegal porque contra a decisão do Conselho de Segurança e assentado na falsa premissa da existência de armas de destruição massiva. Tal como Putin, George W. Bush imaginava que a guerra duraria pouco tempo e seis semanas depois declarou triunfalmente: “Missão cumprida”. A guerra terminou oficialmente oito anos depois, deixando o país destruído e cerca de 300 mil civis iraquianos mortos.
Não houve nenhum mandado de captura contra Bush Jr., mas há agora contra Putin, e note-se que este não é acusado de mortes, mas sim da deportação de crianças, um tema em si mesmo complexo, já que na Segunda Guerra Mundial foi comum evacuar crianças em zonas de guerra como medida de proteção. Não digo que tenha sido este o caso, mas torna-se claro que a gravidade relativa dos crimes não é um dos critérios para a intervenção do TPI. Afinal não houve crimes contra a humanidade em Bucha? E quem não se lembra do massacre de My Lai em 1968 no Vietnã em que cerca de 500 civis desarmados, muito deles mulheres e crianças, foram assassinados? Ou dos milhares de crianças que morreram no Iraque devido às sanções impostas por Bush sênior?
O segundo exemplo diz respeito à decisão do TPI de março de 2021, quando era procuradora Fatou Bensouda, de abrir um inquérito sobre os alegados crimes de guerra cometidos por Israel nos territórios ocupados da Palestina desde junho de 2014. O inquérito fora pedido pelo Estado Palestino em 2018. Foi atendido três anos depois, e não se tratava sequer de mandado de captura, era apenas o início de um inquérito. Pois bem, a reação dos EUA, da Alemanha e de outros países aliados contra a decisão do TPI foi a mais veemente possível.
Invocaram-se argumentos de todo o tipo para condenar a decisão do TPI. O primeiro-ministro britânico Boris Johnson chegou a argumentar, como uma das razões contra a decisão do TPI, o fato de Israel ser “um país amigo e aliado” do Reino Unido. A administração Trump chegou a impor sanções à procuradora do TPI e aos seus colaboradores seniores e incluiu-os numa lista de suspeitos internacionais. Biden levantou as sanções, mas declarou-se muito preocupado com a intenção do TPI de exercer jurisdição sobre pessoal israelita. A possível proteção internacional da Palestina, mais uma vez, morreu à nascença.
É hoje evidente que as instituições internacionais (e não apenas o TPI) só funcionam eficazmente na medida em que sirvam ou não contrariem os interesses dos EUA. A duplicidade de critérios é tão aberrante que o TPI dificilmente sobreviverá à caricatura que faz de si mesmo.
A terceira repercussão é que tudo isto aponta para um desgaste fatal das “relações internacionais baseadas em regras”. A invasão ilegal da Ucrânia foi obviamente uma machadada nesse princípio, e seguiram-se muitas outras por todas as partes no conflito. A duplicidade de critérios em julgá-las atinge tal gravidade que podemos entrar inexoravelmente no período prévio a uma nova guerra mundial.
Vão-se fechando sucessivamente todas as portas por onde um abrandamento das tensões podia passar. Submete-se a pressão extrema as instituições que podiam regular o conflito. Neste dia 1 de abril, o país que é presidido por um suposto criminoso de guerra assume (pela rotatividade mensal) a presidência das sessões do Conselho de Segurança da ONU. Que impacto terá isso? Claro que os EUA já estiveram nessa posição em múltiplas ocasiões, nomeadamente pelos crimes contra a humanidade durante a guerra do Vietnã e do Iraque. O mesmo aconteceu com a França e o Reino Unido pelos crimes cometidos nas guerras coloniais. E também com a China pelos crimes cometidos em Xinjiang.
Por outro lado, a Rússia não é o único país a reconhecer como legítima a anexação ilegal (segundo a ONU) de territórios por via militar. Os EUA fizeram o mesmo reconhecimento no caso do território da Palestina por parte de Israel e do território do povo sarauí por parte de Marrocos. O que é novo é o fato de haver um mandado de captura contra o presidente do país que presidirá às sessões da máxima instituição de garantia da paz, o Conselho de Segurança. Que mundo é este? Que futuro nos espera?
*Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
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