terça-feira, 4 de abril de 2023

França: Luta contra reforma das pensões “só terá resultados se continuar sem recuos”

No décimo dia de mobilização ininterrupta contra a reforma das pensões, Paris voltou a encher-se de manifestantes. Reforçado pela participação do movimento estudantil e liceal, o protesto juntou 450 mil pessoas, segundo a CGT, e foi dispersado ao fim da tarde pela polícia de intervenção. Nova manifestação nacional já está marcada para dia 6.

João Biscaia | Setenta e Quatro | Reportagem

O cortejo vai animado. Entre palavras de ordem contra o presidente, a primeira-ministra e a polícia, as músicas que saem de grandes colunas montadas nas traseiras de carrinhas de caixa-aberta misturam-se em cacofonia com bombos, apitos e até trompetes e clarinetes. Há quem cante a Bella Ciao e quem dance a Freed From Desire.

O grosso da manifestação é composto pelas mais diversas unidades sindicais, divididas entre si por ofício. Trabalhadores ferroviários seguem atrás dos metalúrgicos e dos mineiros, seguidos, por sua vez, pelo bloco dos inverti-e-s, coletivo LGBTQIA+ anticapitalista, e por um outro dedicado à luta e união das mulheres trabalhadoras.

O cortejo, como lhe chamam em francês, saiu da Praça da República às 14 horas, encabeçado pela polícia. Cerca de duas centenas de agentes da Gendarmerie Mobile, subdivisão da Gendarmerie especializada em controlo de multidões, marcharam, em direção à Praça da Nação, à frente de 450 mil manifestantes — número calculado pela CGT, a principal confederação sindical francesa.

É o décimo dia de mobilização popular ininterrupto contra a reforma do sistema de pensões proposta pelo presidente Emmanuel Macron e imposta por decreto pelo governo de Élisabeth Borne. Paris voltou a sair à rua para contestar essa decisão. Reunindo menos gente que a manifestação de 23 de março, a marcha ficou marcada pela forte presença de jovens, desde estudantes liceais a estudantes universitários.

A polícia, por sua vez, contou 93 mil pessoas. Em qualquer dos casos, é uma redução significativa em relação às manifestações do passado dia 23, quando a CGT afirmou ter reunido quase o dobro das pessoas (800 mil) nos protestos de Paris. Atrás dos agentes fortemente equipados, desenrolou-se uma manifestação compacta, longa e barulhenta que juntou estudantes, trabalhadores e pensionistas a sindicalistas, ativistas e militantes.

Entre a Praça da República e a Praça da Nação contam-se pouco mais de três quilómetros em linha reta. As duas praças são ligadas pela Avenida Voltaire, historicamente ligada às manifestações de partidos de esquerda, de sindicatos e movimentos de contestação. Dependendo da vitalidade do passo, é um trajeto que se faz em 30 ou 40 minutos. 

“Aos 17 anos, a reforma ainda está longe, mas é preciso saber que ela lá está”, diz Michel. Para o jovem estudante de Paris, a reforma tem de ser uma “recompensa justa pelo trabalho de uma vida inteira” e quem desvaloriza a questão, dizendo que são apenas mais dois anos de trabalho, “está  desligado da realidade”. 

A intenção do presidente francês de avançar com a reforma do sistema de pensões causou protestos nas últimas semanas. A contestação subiu de tom quando a reforma foi aprovada sem voto no parlamento através da ativação da alínea 49.3 da Constituição. Esta lei aumenta a idade da reforma de 62 para 64 anos e requer que os trabalhadores tenham, pelo menos, 43 anos de descontos num país com três milhões de precários.

Mas esta lei parece ser apenas o mais recente rastilho para a contestação popular contra o chefe de Estado francês. Há anos que os trabalhadores contestam as opções políticas de favorecimento das elites políticas e económicas em seu detrimento, mas também o desinvestimento no Estado Social para se pagar a dívida soberana, reduzida para os 111.6% do PIB, ainda que seja uma das mais elevadas da União Europeia, e se baixar o défice, que em 2022 ficou nos 4,7%. 

Entretanto, o custo de vida tem ficado cada vez mais caro com a inflação (chegou aos 6,3% em fevereiro e os preços dos bens alimentares subiram quase 15%) e os salários não o têm acompanhado, com muitos franceses a passarem grandes dificuldades para chegarem ao final do mês. Há, portanto, um crescente afastamento entre o Palácio do Eliseu e a maioria da população, a que se juntam críticas de um forte autoritarismo por parte de Macron. 

Esse afastamento para o diálogo ficou, na opinião dos sindicatos, ainda mais claro na manhã desta terça-feira. As centrais sindicais apelaram ao governo que suspendesse e repensasse a lei das reformas, mas o executivo mostrou-se irredutível no desejo de avançar. Disse estar disponível para dialogar com os sindicatos, mas apenas sobre outros temas que não esse. 

“NÃO PODEMOS MOSTRAR QUALQUER SINAL DE RESIGNAÇÃO”

Colocado num bloco particularmente barulhento da manifestação (contaram-se mais de meia dúzia de altifalantes em punho), composto sobretudo por estudantes e encabeçado pelo FIDL, o sindicato dos liceus, Michel quer que os jovens “entendam que esta questão também lhes toca” e que é preciso “apoiar a luta dos trabalhadores e fazer parte do debate”. “Este movimento social alargado é a marca da nossa oposição a esta reforma”, acrescenta Bruno, 37 anos, técnico de segurança ferroviária.

Bruno espera que as manifestações continuem. “Até a lei passar, ou não, no Conselho Constitucional, não podemos relaxar”. Poderá demorar um mês até o Conselho dar um parecer, portanto “não podemos baixar os braços, nem mostrar qualquer sinal de resignação”. “A força vem da unidade e da quantidade de gente na rua”, continua, “e mesmo que nem todos possamos estar aqui todos os dias, em todas as manifestações, é preciso entender que esta luta só terá resultados se continuar sem recuos”.

A ideia de que a contestação não pode parar parece unânime, bem como a constatação de que esta luta é transversal a toda a sociedade francesa. Eloïse, professora de desenho de 25 anos, diz que está na manifestação para se “bater pelos outros”. Passa os dias rodeada por trabalhadores em situação precária: “professores e educadores sem contrato de trabalho e que, portanto, não descontam para a reforma e não têm direito, por exemplo, a subsídio de desemprego”.

Uma colega sua, conta, fez a simulação de quando se poderia reformar, já com a aplicação da reforma. “Descobriu que terá de trabalhar até aos 72 anos para poder ter a pensão por inteiro”, diz. “É inquietante”, conclui, “construímos toda a nossa sociedade sobre o trabalho e, agora, parece não haver alternativa a trabalhar até morrer”. O presidente assim o afirmou, dizendo que esta reforma era necessária e que era obrigado a fazê-la argumentando com a sobrevivência da Segurança Social francesa.

“Não sei por quem, só se for pelos seus amigos banqueiros e da alta finança”, ironiza Raphaelle Primet, 59 anos. Há anos que Macron é caracterizado pela oposição como presidente-banqueiro. A deputada municipal, eleita pela lista "Paris en Commun-Écologie pour Paris" em 2020, acredita que há várias alternativas, como voltar a taxar as grandes fortunas e criar impostos sobre os dividendos financeiros, o que permitiria “até baixar a idade da reforma para os 60 anos, e com boas pensões”.

Para a deputada local, que representa o 20.º arrondissement da capital francesa, todo o bem-comum francês está a ser privatizado, “desde a saúde à segurança social”, o que pode significar a “implosão” do Estado Social em França. Mais do que isso, há o perigo da erosão da própria democracia francesa, simbolizado pela decisão de passar esta reforma sem a levar a votação no Parlamento francês. Lembrando que as sondagens afirmam que 94% dos franceses em idade ativa estão contra esta reforma, Raphaëlle repara que “ainda que a aplicação do 49.3 seja constitucional, é profundamente antidemocrática”.

A mesma ideia é replicada por centenas de outros manifestantes, notando-se até a sugestão de que há uma certa continuidade histórica na ação do presidente francês. Inúmeros cartazes comparam Macron a um rei absoluto, distante da população e da sua realidade. Um deles mostra Luís XVI sem a cabeça: “ele também achava que as massas [la foule] não tinham legitimidade”, referência às declarações que Macron fez, à porta fechada, na semana passada.

No Palácio do Eliseu, residência oficial do presidente da República francesa, “mora alguém que não tem qualquer empatia”, afirma Anne, jornalista de 49 anos. “Ao chamar o povo na rua de ‘as massas’, lembrou-me alguns jornalistas que chamaram ‘grunhidos’ às ações de protestos do Coletes Amarelos, no final de 2018”. A jornalista crê que o presidente tem um “profundo desprezo por tudo o que é popular”, que despreza os “cidadãos independentes, autónomos, unidos nas ruas pela sua própria vontade” como “uma massa bestial que é preciso subjugar”.

Ao longo da manifestação, as ruas, com os passeios cobertos de sacos e caixotes de lixo (resultado de várias semanas de greve dos trabalhadores de higiene urbana), vão ficando cada vez mais grafitadas: “trabalha e cala-te”; “Paris é nossa”; “morte ao rei”. O tom torna-se menos festivo, ainda que a música continue. As pichagens são feitas nas paredes, nos painéis publicitários das paragens de autocarro e nas placas de contraplacado que protegem as montras de restaurantes de cadeias multinacionais de fast food, de lojas de alta costura ou casas de câmbio monetário.

Alguns manifestantes acendem pirotecnia e outros rebentam petardos. Ao longe, é possível ver uma delgada coluna de fumo negro. O cheiro a pólvora mistura-se com o de plástico derretido e arranha a garganta. Há vidro estilhaçado pelo chão. Ao chegar perto da coluna de fumo, a multidão bifurca-se e é possível ver que há duas fogueiras no meio da avenida que não impedem o cortejo de continuar, mas chamam a atenção de dezenas de repórteres fotográficos que depressa rodeiam o fogo.

Ao cobrir estas manifestações, “a comunicação social concentra-se na violência por parte de certas pessoas ou grupos que não representam a grande maioria dos manifestantes”, afirma Florian, 27 anos, técnico de pós-produção na televisão pública francesa, reparando na amplitude das idades das pessoas que compõem a manifestação. “Há pessoas a cantar, a dançar, a gritar palavras de ordem”, reforça, confessando que as linhas editoriais dos meios de comunicação social passaram, desde a aplicação do 49.3, “a dar mais atenção ao lixo a arder” que às reivindicações dos trabalhadores.

Florian crê que o liberalismo de Macron, bem patente desde o início da sua presidência, está a tornar-se cada vez mais autoritário. Agora, a violência policial também “faz parte desse processo de imposição”, usada para “desfazer ainda mais a possibilidade de um debate democrático”. Para o técnico de pós-produção, que trabalha através de uma prestadora de serviços intermediária, as forças de autoridade estão a ser usadas para “provocar medo”, fazendo com que muitas pessoas desistam de sair à rua. O ministro da Administração Interna, Gérald Darmanin, assegurou, na manhã desta quarta-feira, não haver “violência policial”, mas “alguns casos isolados” de agentes que não respeitam “as ordens da deontologia”.

Argumentando com riscos graves para a ordem pública, Darmanin mobilizou 13 mil agentes em Paris e denunciou a presença de vários elementos black bloc na manifestação, bem como de “elementos radicais”, que serão ao todo mais de mil em toda a França, vindos do estrangeiro para “magoar e matar polícias franceses”. 

Mas os seus argumentos não estão a colher entre os franceses que se manifestam e o mais recente caso de violência policial, aquando da forte repressão de uma manifestação ecologista contra a construção de uma mega-bassine em Sainte-Soline, na Nova Aquitânia, é apresentado como prova da ação desmedida das forças policiais: dois manifestantes ficaram em coma depois de agredidos pelos agentes.

Se durante os os Coletes Amarelos, o foco dos protestos sobre violência policial era a exigência da proibição das espingardas de balas de borracha LBD-40, que causaram a perda de olhos a mais de 20 manifestantes, o foco agora é na atuação da BRAV-M, brigada polícia motorizada de “repressão de ações violentas”: uma petição a exigir a sua dissolução já recolheu mais de 190 mil assinaturas. 

Depois de vários fogos alumiados no meio da rua, vários pontos de autocarro estilhaçados e um ponto de recolha de uma cadeia francesa de hipermercados completamente destruída, a CRS — corpo especializado da Polícia Nacional Francesa, dedicado ao restabelecimento da ordem — carregou sobre a maioria de manifestantes pacíficos que tentavam recuar, sem ter para onde, ainda na Avenida Voltaire. Os polícias distribuíram golpes de cassetete indiscriminadamente.

Já com a maioria das pessoas na Praça da Nação, houve novas cargas policiais, com a polícia a usar gás lacrimogéneo e granadas atordoantes para dispersar diversos grupos — sobretudo jovens — que por ali decidiram ficar. A maior parte das saídas da praça estavam fechadas pela polícia, que bloqueava o trânsito automóvel e controlava os peões que iam e vinham. Mais de 70 pessoas foram detidas, colocadas sob custódia policial.

Já de noite, pouco depois das 20 horas, a polícia voltou a carregar sobre quem insistia em permanecer na praça, empurrando muita gente para as entradas do metropolitano. As forças de autoridade estão a ser usadas “como meio para provocar atos violentos e reprimir os movimentos sociais que saem à rua em manifestação”, afirma Raphaëlle. A própria Amnistia Internacional denunciou a violência excessiva e as detenções abusivas praticadas pelos agentes da polícia francesa nas manifestações deste mês por todo o país.  

“Mas é curioso”, nota Raphaëlle Primet, “esses agentes também terão de trabalhar até aos 64 anos”. Uma das pichagens nas paredes da Avenida Voltaire expressava uma ideia parecida: “BRAV-M e CRS: estão dispostos a executar pessoas por €1800 por mês?”. Entretanto, os salários reais encolhem e os franceses prometem regressar em breve às ruas contra o presidente-banqueiro. Os sindicatos já anunciaram novo dia de greve nacional e manifestações para 6 de abril.

Sem comentários:

Mais lidas da semana