domingo, 9 de abril de 2023

Portugal | COMO ATROFIAR UM PAÍS COM PAPAS E BOLOS

O Estado está degradado por décadas de incúria, incompetência e modorra. E se fosse só isso. O problema mais profundo é mesmo a escolha: as políticas públicas são destroçadas por estratégia.

Francisco Louçã* | opinião

Suponho que não haverá alma alguma entre nós que não sinta os sucessivos episódios do NRP Mondego como uma metáfora das dificuldades do país e da fanfarronice com que são tantas vezes tratadas. Nem mesmo a mais sinistra das conspirações — e já tivemos algumas insinuações sobre essas forças maléficas — conseguiria conjugar uma novela tão sumarenta, em que há um navio degradado, uma tripulação cansada, um almirante que entende que lhe basta alguma notoriedade televisiva para que o país clame por ele como salvador e que afirma, logo a que jornal, que todo o assunto é uma nervoseira com a sua popularidade, fazendo um garboso discurso para as televisões, que depois declara ser um corretivo interno à Marinha, tudo terminando na apoteose de uma viagem de um par de milhas e um rebocador — um rebocador! — a ter que carregar o navio de volta ao porto. Isto foi assim pela triste razão de que é assim. Deprimente fábula sobre o desconcerto e a vã autoritas da prosápia, esta história nem se resgata com as pressurosas tentativas de vencer a maldição despachando vistorias, especialistas e referências poéticas a incidentes técnicos. Já lá está tudo o que desmente um simples azar: temos uma nau à deriva no mar, a ordem do comando reduzida a uma farsa, a chefia desaparecida depois de ter feito voz grossa, a ambição política de chefiar o país apoucada pela demonstração no convés da corveta, é tudo demasiado pequeno para não parecer uma caricatura. Há tanta gente humilhada por estas encenações de mandonismo e de presteza, enquanto o povo sente o desgosto com piadas que se exibem perante os seus olhos, que só se pode concluir que nem a vergonha contém o frenesim do autoelogio das contas governamentais, que estavam tão certas ao longo de tanto tempo que a corveta voltou arrastada por um cabo depois de morrer à vista da costa. Esta demonstração trágico-marítima é simplesmente um refrão. É assim que vai o Estado.

Diz-me, espelho meu

O líder parlamentar do PS encheu-se de brios e respondeu a esta triste novela. Está contente, a coisa corre bem, até houve umas audições de membros do Governo que a maioria consentiu (passará pela cabeça de Brilhante Dias que a norma da maioria absoluta seja que a prestação de contas é favor ao Parlamento?) e, desde que os spin doctors assim o determinaram, a maioria passou a chamar-se “dialogante” e conseguiu o feito histórico de “conciliar os portugueses com a ideia de maioria absoluta”. Tem notado essa fremente conciliação que arrebata manifestações de júbilo e enchentes de carinho governista pelas ruas? Será só mal dos portugueses, sempre macambúzios, que se perguntam se isto não podia ser diferente ou até se ao rebocador não deviam ser dadas as missões de guerra e paz?

É nisto que está o Estado, degradado por décadas de incúria, incompetência e modorra. E se fosse só isso. O problema mais profundo é mesmo a escolha: as políticas públicas são destroçadas por estratégia. O líder parlamentar do PS bem o reconheceu, “o Estado social precisa de modernização, mais eficiência e eficácia. Porque o pior que pode acontecer aos olhos do cidadão é a perceção de que o Estado social se degrada”, só que a sua solução é insistir. Ora aí está, vai haver investimento, uma torrente, e eis uma lágrima furtiva a deslizar pela face do povo reconciliado com a maioria absoluta. Assim sendo, os deputados do PS vão estar atentos aos gastos do PRR (já foi com essa do PRR que foram eleitos), prometem mais, melhor, prazos apertados, execuções comoventes. Ainda o Mondego não se tinha tentado aventurar pelo mar adentro e já havia mais dinheiro para reparações, dito por um governante que, prudência a quanto obrigas, agora prefere calar-se. O país, deslumbrado com a maioria absoluta, respira de alívio e sabe que a fé move mundos.

Só aí é que não pode ser

Haverá então investimento. Só nos hospitais é que não pode ser. Entretanto, aguentemos o tempo que for reconciliados com hospitais centrais em mosteiros centenários ou em edifícios de meados do século passado e deixemos andar, pois não há remédio, dado que, como o primeiro-ministro garantiu com indignação num debate eleitoral, o PS não faz concorrência aos privados. Na saúde o pouco investimento será para sobreviver. É o Estado a esquecer o país.

Mas vai haver dinheiro. Há um jorro de milhões para baixar o IVA de 44 produtos até outubro, o que virá depois será curioso de ver. Mas, mesmo que esta medida resulte e não haja novos aumentos determinados pela distribuição, a cebola ainda ficará 68% acima do preço de há um ano. Esclareça-se que a cebola não é importada da Ucrânia e que os custos de produção nem subiram um quinto daquele valor, alguém ganha a diferença. Por isso, sem surpresa, é secreto o acordo do Governo com os cavalheiros contra quem mandou a ASAE há duas semanas. O povo tem que acreditar nos resultados sem conhecer a medida, mesmo tendo a certeza de que já está a perder, e que se um empresário passa um raspanete ao governo e este se encolhe, isso é o Estado a funcionar.

Como o Governo acredita na feliz reconciliação popular com a maioria absoluta, milagre costista, ao invés das “cavaquices” que menospreza, não tem nenhuma razão para pensar que a funesta degradação do Estado seja sequer um problema. A corveta, os hospitais, os preços especulativos, tudo isso foram azares. Nossos, é bom de ver.

* Republicado em Esquerda.net

*Artigo publicado no jornal “Expresso” a 31 de março de 2023

*Francisco Louçã - Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.

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