terça-feira, 27 de junho de 2023

Angola | O CANTO DÁ TUDO NO PLURAL – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O nosso chão dá tudo. Mas para dar é preciso lavrar, cavar, plantar, semear, capinar, colher, transportar, comer e vender o que sobra. A cantar o chão não dá nada. A lavra da mandioca não quer saber de cantigas. O nosso chão dá tudo mas é preciso lavrar. Depois com uma enxadinha, de preferência de cócoras, fazemos montinhos de terra. Três palmos de distância um do outro. Tudo alinhado. Espetamos uma estaca de mandioca em cada montinho. Depois é preciso olhar pela plantação. O capim nasce e nós capinamos. O coelho, o kipite, a kasexa, o kiombo aparecem e nós enxotamos. A cantar o nosso chão não dá nada.

A lavra de batata-doce é igual. Depois da sementeira vem a rama. Muito boa para o kalulu. Mas o coelho também gosta. O kipite também saboreia. A kasexa adora. O kiombo abre buracos para comer a batata. Estraga a plantação. Quando chegamos à lavra e está tudo revolvido é para chorar. Não adianta cantar. Lavra de batata-doce não gosta nada de capim. É preciso capinar e cavar com a enxadinha, todos os dias. Três meses depois temos quilos de comida. Com a pança cheia podemos cantar.

O café só dá mesmo para chorar. O nosso chão serve o melhor café do mundo. Mas o pau do cafezeiro não quer saber de cantorias. Eu até chorava. Nas férias do Natal só comia se fosse trabalhar na tonga, capinar 30 bitolas por dia, que começava às cinco da manhã e acabava ao início da tarde. O calor era tanto, o sol tão ardente que nem o Super-Homem aguentava trabalhar. O António Kiangala, quando me via muito atrasado, vinha dar-me uma mão. Depois o André. Depois o Pedro Sumbula. Depois o “Onze”. Todos me ajudavam a cumprir as bitolas que o meu Pai exigia, para me pôr comida no prato. Malditas férias!

Nas férias da Páscoa o mesmo massacre. Capinar, capinar, capinar. Mas o fruto já tinha nascido e estava verdinho. No Natal a tortura era aliviada com o perfume embriagante da flor do cafezeiro. Extenuado, transpirado, beijava as flores, Beijava as folhas. O nosso chão dá tudo mas é preciso trabalhar. Não adiante cantar.

Nas férias grandes (malditas férias!) podíamos cantar. Mas ao amanhecer espalhávamos a mabuba no terreiro. Bem espalhada, para todos os bagos ficarem expostos ao sol. Otoyoto! Entjauemba! Eh eh eh o sumba! Eh eh eh o Lola. Nhé nhé, nhé! Ao fim da tarde juntávamos a mabuba em montes, no topo do terreiro. Depois cobríamos os bagos com oleados grossos para o cacimbo não penetrar. No Bindo, à noite, o cacimbo parecia chuva miúda. Bem podíamos cantar que ele não virava sol. Nossa terra dá tudo mas não é a cantar.

O senhor Martins dos Santos era corretor de cafés. Vinha de Luanda, chegava ao Bindo, abria uns quantos sacos, tirava a mabuba e chocalhava. Se o som era limpo, queria dizer que os grãos de café estavam bem secos. E comprava tudo. Ele dizia que não estava para pagar água ao preço do café! Quando os camiões ficavam carregados, cantávamos como martrindindes depois de fazer amor. Atenção. Os martrindindes não são exclusivos do deserto de Benguela. No Bindo cantavam com estridência, de manhã até de madrugada. Só paravam quando estavam a acasalar. Em Pequim há milhões de martrindindes nas zonas verdes. Comia lá quilos de melancias enquanto ouvia o seu canto ambíguo. 

O nosso chão dá tudo. Mandioca e batata-doce todo o ano. Abundantemente. Uma estaca dava cinco quilos. Uma semente dava dois quilos de batata! De quatro em quatro meses saía das lavras muita comida para o prato. Mas era preciso trabalhar. Ao contrário da Europa, o nosso chão dá várias colheitas por ano. As fruteiras estão sempre a dar. Mas não chega cantar. Os grãos saem duas vezes por ano! Alguns até dão três colheitas. Mas ai de quem fica a cantar.

As cabras dão cabritinhos. Muita carne! Ficam prenhas, parem e criam. Mas comem tudo que apanham à frente. Não se contentam com o capim tenrinho. Comem arbustos. Comem as fruteiras. Devastam as lavras. Sem pastor a cabra pode ser uma catástrofe. Tata Tuma ficava sentado num montinho e quando as cabras iam comer rebentos que não deviam, falava com elas. Assobiava. Soltava sons que só elas percebiam. Eu quando ia de pastor para ter comida no prato, corria atrás das cabras. Cansava-me. Elas não me davam um segundo de descanso. Fiquei a odiar carne de cabrito. Vocês sabem lá o trabalho que dá pastorear cabras! A cabra não sossega só porque ouve cantar.

Sabem qual é a maka? Os ovos produzidos em Angola são mais caros do que os importados. Frangos criados em Angola são mais caros do que os importados. A fuba que sai do pilão das meninas e das mamãs fica mais cara do que a importada. Não fiquem a cantar. Procurem saber porquê. E quando souberem onde está o problema, resolvam. Mas não venham dizer-nos que o nosso chão dá tudo, a cantar.

A UNITA apostou tudo na bipolarização para ganhar as eleições do ano passado. Montou a vigarice chamada “frente patriótica unida” para aldrabar os eleitores. Porque tal “frente” nunca existiu. Era apenas um logro. Não podia concorrer ao acto eleitoral. Apesar da vigarice ser feita a céu aberto, ninguém denunciou. Ninguém protestou. As chusmas de “comentadores” e “analistas” ignoraram tão grave atentado ao regime democrático e à ética política.

O resultado foi catastrófico para a democracia. A FNLA foi reduzida à irrelevância eleitoral. O PRS, partido fundador do regime de democracia representativa, teve o mesmo destino. Para constituírem um grupo parlamentar tiveram de fazer uma aliança. A CASA-CE, projecto político fundamental, desapareceu do mapa partidário. As novas propostas políticas e partidárias tiveram votações irrelevantes. O Partido Humanista ainda conseguiu representação parlamentar. O Njango foi extinto por falta de votos.

Desde então está em marcha uma operação cujo objectivo é desqualificar os partidos. O MPLA registou a mais importante vitória eleitoral de sempre. Porque derrotou a tal “frente patriótica unida” cujos dirigentes escolhiam os seus “ministros” antes de contarem osa votos. Se todos unidos contra o MPA deu derrota, ficou provado que o MPLA é imbatível enquanto existir a UNITA, mesmo que escondida numa qualquer sigla enganadora. 

Ismael Mateus escreve hoje no Jornal de Angola um autêntico manifesto contra os partidos. Por favor, onde escrevo “contra os partidos” leiam contra o MPLA. Eis uma parte do seu manifesto:

“Hoje,  estas estruturas ou padecem de falta de participação dos cidadãos ou estão partidarizadas. Sem esse viveiro da democracia dificilmente teremos capacidade para produzir formas democráticas de participação dos cidadãos como por exemplo eleições autárquicas, lideranças associativas e outras, que são o viveiro da democracia. Praticar a democracia sem cidadãos com hábitos e práticas democráticas revela-se uma tarefa quase impossível sem que as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) se afirmem como espaços de democracia interna, de lideranças viradas para a satisfação das necessidades dos cidadãos e que sejam vozes alternativas aos partidos políticos.

O texto repete várias vezes a sigla OSC com um “s” no fim. No dia em que a senhora professora ensinou os meninos que as siglas não têm plural ele deva estar a cantar “O Nosso Chão Dá Tudo”. Sigla não tem plural!

Ismael, a alternativa aos partidos políticos, é a ditadura! Bué de bocas só engana e manipula. Escrever por encomenda dos donos pode dar dinheiro fácil mas é perigoso para a democracia representativa. Aprendizes de feiticeiro só podem dar ilusionismo e circo. Mas o povo também precisa de pão. Já os romanos sabiam disso. Sem pão na mesa nada feito. Quando um “analista” clama por “vozes alternativas aos partidos políticos” está a sugerir o fim da democracia representativa. 

Isso da sociedade civil é truque de quem odeia a democracia. Porque a essência das sociedades democráticas está nos partidos políticos O viveiro da democracia é o partido político. Claro que há sempre forças que desclassificam os partidos. Atribuem-lhes todas as desgraças sociais. Mobilizam a sociedade contra os mais fortes pilares do regime democrático. Quando triunfam, temos o triunfo da ditadura. 

As ONG (sem “s” Ismael!) são autênticas aberrações. Não percebo o que leva alguém a aderir a uma coisa chamada Organização Não Governamental. Essa adesão significa uma fuga da cidadania, em debandada. Um xangui de boçal! Pessoas adultas, normais e minimamente cultas abdicam de governar. De partilhar a governação. De influenciar os governos. De ser governantes. Aderir a uma coisa chamada Organização Não Governamental é desertar do combate democrático. É enfraquecer os partidos. É pôr a democracia em perigo. 

As ONG são corpos estranhos (perigosamente estranhos!) ao regime democrático. Acolhem cidadãs e cidadãos que voluntariamente abdicam de governar. Entregam o poder político a quem não quererem, sem luta.

As cantinas, os armazéns que o Homem encerrou, os kupapatas, os candongueiros, os cantores (O Nosso Chão Dá Tudo) são sociedade civil. Todas e todos influenciam o governo, participam no governo (quanto mais não seja votando), influenciam a governação. Abaixo a ditadura! Não nos obriguem a vestir outra vez o camuflado e empunhar a arma. Dos vossos partidos façam o que quiserem. Mas não admito que destruam o MPLA.

*Jornalista

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