Artur Queiroz*, Luanda
Angola vive no Sistema VIGO (Vingança Inveja Ganância Oportunismo) desde meados de 1975. Agostinho Neto ainda vivia no Bairro de Saneamento e um dia disse-me, contristado, que estava “profundamente desiludido com o comportamento moral dos nossos camaradas”. Larguei logo uma piada repentista para animá-lo mas foi pior. Olhou para mim, olhos nos olhos, e muito a sério disse pausadamente: “Luanda é um mar de areia onde as águas se perdem”.
Já após a Independência Nacional e depois de me ordenar uma missão muito complicada desabafou: “Temos crianças sem escolas e escolas sem professores. As grandes organizações comerciais estão fechadas. As fábricas encerradas. As grandes fazendas abandonadas. Só estamos interessados no imediatismo. Só interessa o dinheiro fácil, os carros, as casas, as viagens e as divisas para viajar”. Dei-lhe razão e disse que em vez do socialismo científico adoptámos o Sistema VIGO. E comecei a delirar soluções que o fizeram rir.
Dois anos depois Neto faleceu mas ainda viu abrir a Faculdade de Direito na qual tanto se empenhou, juntamente com Diógenes Boavida. Já agora aí ficam os nomes dos outros construtores: Garcia Bires e Fernando Oliveira (Universidade Agostinho Neto), Professor Catedrático Orlando de Carvalho e Doutor Teixeira Martins, ambos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Construíram e ao mesmo tempo foram os andaimes.
Desde que Carlos Rocha (Dilolwa) se demitiu do cargo de ministro das Finanças e Agostinho Neto faleceu, o Sistema VIGO implantou-se à força toda e domina o Estado. Imparável. É à luz desta doença degenerativa que temos de analisar a denúncia do major Pedro Lussati aos deputados da Assembleia Nacional. A exposição à Presidente do parlamento e aos grupos parlamentares (MPLA, UNITA e Misto FNLA/PRS)revela factos gravíssimos que põem em causa a ética republicana, o Poder Judicial e rasga em mil pedaços a bandeira da luta contra a corrupção.
Pedro Lussati, major das FAA, afirma que a “Operação Caranguejo” foi uma encenação criada pelo General Fernando Garcia Miala. O denunciante fala em “farsa teatral” mas na verdade é uma tragédia para o regime democrático. Por isso exige que a Procuradoria-Geral da República venha a público explicar o que fez ou vai fazer. A Presidência da República pouco mais pode fazer do que remeter-se ao silêncio. O queixoso implica o Presidente da República.
Na denúncia que fez chegar à presidente da Assembleia Nacional e aos grupos parlamentares, o major Pedro Lussati acusa o General Fernando Garcia Miala e dois dos seus colaboradores no Serviço de Inteligência e Segurança do Estado, o brigadeiro Delfim Soares e o coronel Dino Policarpo, de abuso de poder, sequestro, roubo, extorsão, denúncia caluniosa, prevaricação e obstrução à justiça.
Pedro Lussati garante que a Operação Caranguejo “foi uma invencionice muito bem elaborada e executada pelo chefe do Serviço de Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), general Fernando Garcia Miala, com o único objectivo de ficar com os seus bens, principalmente financeiros”. Mais grave é impossível. Tão grave que a Procuradoria-Geral da República, a esta hora, já devia ter anunciado o que vai fazer. Silêncio. Mais grave ainda. A TPA serviu de veículo à “farsa teatral” no seu programa “Na Lente”. Ernesto Bartolomeu foi o ajudante de Miala. Como já tinha sido no “Banquete”. De pagamento baptizaram com o seu nome um centro de produção da empresa. Valentim Amões pagava-lhe melhor. Diamantes de sangue!
Pedro Lussati denuncia que no dia
14 de Fevereiro de 2021 agentes de Fernando Miala assaltaram a sua casa em
Odivelas (Grande Lisboa) e de lá roubaram bens valiosos (não específica quais).
No dia 10 de Maio de 2021, os mesmos assaltantes “limparam” quatro dos seus
imóveis
No dia 19 de Maio de
Ainda há mais e muitíssimo mais grave. O major Perdro Lussati afirma que foi raptado à porta do condomínio Imoluanda, Talatona, onde residia e levado para um cárcere privado. Não havia mandado de busca e captura. Nada. “Fui sequestrado no dia 13 de Maio de 2021, exactamente quando ia a entrar no condomínio Imoluanda, tendo sido conduzido, naquele mesmo dia, a um cárcere privado, onde fiquei até ao dia 27 de Junho de 2021, sem qualquer contacto com familiares, amigos, ou colegas de serviço”.
O major das FAA diz que foi raptado por quadros superiores do Serviço de Inteligência e Segurança do Estado, designadamente o brigadeiro Delfim Soares (actual delegado do SINSE em Luanda) e o coronel Dino Policarpo. No período em que esteve mantido em cárcere privado, Pedro Lussati denuncia que foi torturado inclusive pelo próprio General Fernando Garcia Miala. Foi submetido a interrogatório durante a madrugada. Mas se já tinham o dinheiro e outros bens, o que queriam? Ele esclarece:
“Durante as sessões de interrogatório, o brigadeiro Delfim Soares, o coronel Dino Policarpo e o general Fernando Miala queriam que dissesse que o património pertencia aos Generais Kopelipa, Dino e Pedro Sebastião”.
Pedro Lussati diz que os seus captores tinham três objecivos: “primeiro, roubar e apropriar-se dos meus bens; segundo, colher falsos testemunhos de que o património era pertença dos três generais; terceiro, acusarem-me de vários crimes”.
Na denúncia aos deputados, Pedro Lussati relata que, dos assaltos realizados, “o general Fernando Garcia Miala encontrou só em activos monetários, nas propriedades em Luanda, o valor de 80 milhões de dólares, tendo, no entanto, o chefe da Inteligência angolana reportado apenas dez milhões”. Desapareceram 70 milhões. Além de farsa teatral a operação também meteu ilusionismo daquele que faz desaparecer coisas.
Em Odivelas, os assaltantes levaram bens avaliados em 40 milhões de dólares: “Estes valores monetários estão a ser usados pelo genro do General Fernando Garcia Miala, Bruno Ouro, e por outros familiares seus, para comprar activos imobiliários em Portugal”. Pedro Lussati afirma que recorreu à Assembleia Nacional porque pretende que seja aquele órgão de soberania a apresentar queixa à Procuradoria-Geral da República já que se trata de crimes públicos, cometidos por agentes públicos, no exercício de funções públicas”. E a PGR, face a tudo o que aconteceu, já não lhe merece confiança. Mas coloca-se à disposição do Ministério Público para auxiliar à descoberta da verdade e vai constituir-se assistente em todas as fases do processo que venha a ser desencadeado pela Assembleia Nacional.
A Assembleia Nacional exerce a função de controlo e fiscalização do Estado e exprime a vontade soberana do povo. Por isso, Pedro Lussati disponibiliza informação objectiva para permitir aos deputados “a fiscalização parlamentar da legalidade dos actos do ministro Fernando Garcia Miala, associados à privação de liberdade do denunciante e ao esbulho de seus bens”
Também “a realização, nas Comissões de Trabalho Especializadas da Assembleia Nacional, de audições e interpelações para determinar se os factos imputados ao ministro Fernando Garcia Miala configuram ou não crimes de violação à Constituição, que atentam gravemente contra o Estado Democrático de Direito ou contra o regular funcionamento das instituições, cometidos no exercício de funções públicas, na forma de abuso de poder, sequestro, roubo, extorsão, denúncia caluniosa, prevaricação e obstrução à justiça”
Pedro Lussati quer que os deputados organizem e conduzam “inquéritos aos factos denunciados e comunicação das respectivas constatações e conclusões ao Presidente da República, superior hierárquico do ministro Fernando Garcia Miala e, se for caso disso, às competentes autoridades judiciárias”.
Por fim, Pedro Lussati quer que os deputados participem “aos órgãos jurisdicionais competentes dos factos ora denunciados e imputados ao ministro Fernando Garcia Miala, para efeitos de promoção do respectivo processo penal, nos termos do disposto nos artigos 49.º e 50.º do Código do Processo Penal, tal como sucedeu recentemente com a Veneranda Juíza Presidente do Tribunal de Contas.”
No documento enviado à presidente da Assembleia Nacional, Carolina Cerqueira, e aos grupos parlamentares do MPLA, da UNITA e Misto (FNLA/PRS), o major Pedro Lussati revela acontecimentos que tiveram lugar quando foi mantido 44 dias num cárcere privado, sob tortura, coacção e interrogatórios incessantes, alguns dos quais conduzidos pelo próprio General Fernando Garcia Miala. O major Lussati denunciou ao Parlamento que o General Miala inventou a “Operação Caranguejo” para ficar com mais de 100 milhões de dólares.
O documento foi base de notícia da agência Lusa (Portugal) e da Voz da América que revela: “Pedro Lussati diz que o general Fernando Garcia Miala é o rosto do poder político com forte influência e é quem aparece para controlar ou submeter o poder judicial ao poder executivo. Na altura da sua detenção, Lussati afirma que foi alvo de cárcere privado por parte de Miala que usou frases ameaçadoras como “se a tua família souber onde estás, vamos te matar”. Ou isto: “Estamos a cumprir ordens. Foi o Presidente João Lourenço que nos mandou. O teu dinheiro ficou com o Presidente. O documento, com 20 páginas, tem a data de 13 de Julho e é assinado também pela advogada Eugénia Texa.
A advogada afirma que o documento é "uma denúncia de todos os factos que ocorreram contra o major Pedro Lussati e que não foram tidos nem achados no processo. Espero agora uma apreciação da Assembleia Nacional”.
O General Fernando Garcia Miala foi acusado de crimes muito graves mas o Presidente José Eduardo dos Santos, com o seu proverbial humanismo, perdoou-lhe. Acabou por ser condenado por crimes menores, como insubordinação. E Também foi despromovido. O Presidente João Lourenço sabia de todos os crimes que lhe eram imputados. Sabia da condenação. Mesmo assim deu-lhe todo o poder.
Quando foi ministro da Defesa, João Lourenço tomou conhecimento pormenorizado do Caso Zengo (Vice-Almirante). Como financeiro da Marinha de Guerra e depois do Estado-Maior das FAA, foi acusado de desvios de dinheiro. O que levou à sua exoneração em 2014. Foi substituído pelo seu adjunto, tenente-general Fernando Zombo.
Quando Fernando Garcia Miala regressou ao poder (com poderes ilimitados!) foi à caça dos bens do Vice-Almirante Zengo. Ele estava gravemente doente, cego, surdo e fazia hemodiálise três vezes por semana. Miala e os seus homens chamaram as filhas e obrigaram-nas a entregar os bens do pai. Para não parecer mal, deram-lhes uma pequena verba. O resto (muitíssimo!) foi abocanhado. Não ficaram de mãos a abanar porque o Vice-Almirante Zengo tem vários imóveis de elevado rendimento e criou em Luanda uma escola superior com grande sucesso.
O tenente-general Fernando Zombo foi implicado num “grande desvio de dinheiro” nos serviços financeiros do Estado-Maior Geral das FAA. Mas nada aconteceu porque é primo de Fernando Garcia Miala, que o tem protegido até hoje.
No Caso Lussati, além de dinheiro, Fernando Garcia Miala também quis “deitar abaixo” o General Eusébio de Brito Teixeira. Porque não tem ambições políticas e representa os oficiais generais que atingiram o generalato nas frentes de combate, durante as guerras. A opinião pública foi enganada. E com esse engano, o que se pretendeu foi pôr sob suspeita todas as Forças Armadas. O Sistema VIGO a funcionar em pleno.
Miala tocou em todas as teclas: Vingança (dos Generais Kopelipa e Zé Maria, além do Presidente José Eduardo) Inveja (de todos os generais que conquistaram as estrelas nas frentes de combate) Ganância, quer todo o dinheiro para ele. E Oportunismo, chegou ao poder sem saber ler nem escrever.
A denúncia do major Pedro Lussati também fez estragos na Comunicação Social. Até agora o Maka Angola, de Rafael Marques, nem uma palavra sobre o tema. Nem sequer cita a Voz da América ou a agência Lusa. Ele que se apresenta como o grande combatente contra a corrupção. TPA, RNA e Jornal de Angola nem um a palavra, Arriscam-se a esta conclusão: São controlados pelo Miala. O Clube K, sem surpresa, também focou em silêncio. É controlado por Miala e pelos restos do regime racista de Pretória.
O testa de ferro de Miala no defunto Semanário Angolense (Graça Campos) também não viu nada, não sabe nada, não ouve nada, nem fala nada no Correio da Kianda. É o desmoronar do Sistema VIGO. A partir de agora vai ser mais difícil justificar os roubos apresentados como “recuperação de activos”. E falar de combate à corrupção passa a ser a anedota do ano.
*Jornalista
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