sábado, 4 de março de 2023

SARAMAGO: A POESIA DESFAZ O CINISMO

As sete vidas do escritor, em nova biografia: da miséria rural ao Nobel. Ao desvelar cegueiras do sistema, que nos fazem pequenos monstros, ele deu força profunda à indignação. Seu método: a sutileza política para restaurar a nossa humanidade

Ladislau Dowbor | Outras Palavras

“Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto” (689)

“A razão não se comporta racionalmente, o que é uma forma de cegueira” (556)

José Saramago viveu de 1922 a 2010, até os 87 anos, tendo caminhado, numa lenta ascensão, desde a miséria rural, pelo trabalho operário, pela burocracia editorial, pelos embates políticos, atingindo apenas a partir dos 60 anos o que seria a sua vocação, um imenso poder poético traduzido em romances que lhe valeram o Nobel de literatura em 1998, tornando-se um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos. Quanta emoção, alegria, felicidade ou indignação nos deram essas leituras. Eu passei pela maioria, a começar por Levantado do Chão, nos anos 1980, o primeiro com o estilo já poderoso e amadurecido, até Caim, livro maravilhoso que nos faz sorrir enquanto lemos as tristezas do que apronta o ser humano, frequentemente em nome de Deus.

O leitor provavelmente já leu Saramago, não vou aqui dizer que é ótimo, se bem que, em particular para a nova geração, valha a pena repetir e recomendar muito: tem a imensa qualidade de nos assegurar uma leitura que prende, ainda que transpareça com força a indignação profunda com a desigualdade, com a violência, a miséria, a estupidez da ganância política e econômica. É arte no que há de mais poderoso. Para o gosto de quem não leu, e sorriso saudoso de quem leu, esse trechinho de Levantado do Chão, em que os dois jovens do interior rural, apaixonados, fogem das proibições familiares e religiosas, com modesto farnel, para casar a seu jeito:

“João Mau-Tempo levava Faustina pela mão, tremiam-lhes os castigados dedos, guiava-a sob as árvores e ao rente dos matos e das ervas molhadas, e de repente, sem saberem como aquilo aconteceu, talvez canseira de tantas semanas de trabalho, talvez tremor insuperável, acharam-se deitados. Em pouco tempo perdeu Faustina a sua donzelia, e quando terminaram, lembrou-se João do pão e chouriço, e como marido e mulher o repartiram.” (70) A mim, suposto economista de assumida seriedade, comove. Saramago não nos empurra política, nos restaura a humanidade.

Mas a presente resenha não é para ser mais um que escreve sobre Saramago, e sim para apontar a maravilha que é resgatar quase um século de história, através das vivências de uma pessoa. Recentemente li várias biografias, de Zygmunt Bauman, de Fernando Pessoa, maravilhosos trabalhos que nos trazem o viver real de diversas ou épocas – em sólidos volumes na faixa de 800 páginas – mas tão diferentes das histórias oficiais das grandes conquistas e desastres históricos. No meu caso, tendo lido muita história geral e de países, reencontrar na leitura da vida concreta de uma pessoa que viveu essas épocas o eco dos grandes eventos, ajuda muito fazer a ponte com o cotidiano das pessoas.

Portugal | OS FALSOS SUSPEITOS DO COSTUME

Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

Vezes sem conta, os salários dos trabalhadores têm sido acusados, falsamente, de serem responsáveis por despedimentos e encerramentos de empresas, por bloqueios à competitividade, por criação do vício de se "viver acima das possibilidades", por espirais inflacionistas.

A condição de suspeitos dessas maldades permite que, perante qualquer "crise", os primeiros disparos do poder económico e do poder político, em nome da resolução dos problemas, sejam feitos exatamente sobre os salários. Assim está a acontecer com a atual crise.

A cúpula do Banco Central Europeu (BCE) e os banqueiros do sistema, incluindo o governador do Banco de Portugal, andaram a clamar contra atualizações salariais que pudessem compensar a inflação e a pregar que essas hipotéticas atualizações agravariam o "surto inflacionista". É sabido que os salários estão a sofrer forte perda (em valor real) e a inflação continua elevada. Todavia, a presidente do BCE, interrogada esta semana sobre se o ciclo de subidas de preços atingirá o pico em março, respondeu: "Não, não, não. Não atingiremos o pico em março. Ainda temos muito por fazer", colocando de novo a necessidade de se conter a evolução dos salários.

Segundo notícias do "Expresso" da passada quinta feira, parece que aqueles banqueiros admitem agora "que as margens de lucros das empresas tinham aumentado, quando, por via do aumento de custos, deveriam estar a diminuir". E que "o aumento dos custos de produção sentidos pelas empresas nos últimos dois anos estão a ser mais do que compensados pelos aumentos dos preços, sem se notar perda de margem de lucro". Estes hipócritas fazem-nos de parvos.

Somos governados por estes sociopatas - indivíduos com "desequilíbrio patológico que se manifesta num comportamento antissocial e impulsivo ou agressivo" (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). São antissociais e agressivos porque causadores de desigualdade profunda, de sofrimento e pobreza. O poder político instala-os nas funções (apresentadas à opinião pública como de complexidades que o comum dos cidadãos não entende) e retira-se de responsabilidades atribuindo-lhes "total independência". Ficam, assim, à margem de qualquer escrutínio democrático. Mesmo quando têm provas da responsabilidade dos poderosos, continuam a disparar sobre os mais frágeis.

Não são precisos estudos científicos, para se observar que algumas empresas, em particular pequenas, sofreram com a inflação. Mas as grandes companhias de quase todos os setores estão a acumular lucros, em muitos casos pornográficos, como provam os resultados daquelas que são obrigadas a divulgá-los. Em regra, quem não tem condições para imputar a outrem o aumento de preços são apenas os consumidores finais.

Começou a percecionar-se ainda com a pandemia de covid-19, mas tornou-se evidente com a invocação dos impactos da guerra, que estava em formação uma enorme receita especulativa que, num mercado desregulado, daria origem a um grande bolo saído da inflação. Na fase inicial, o setor financeiro ainda não tinha espaço marcado à mesa do banquete. Nesta União Europeia que se tornou centro do neoliberalismo e da financeirização da economia, o BCE e outras instituições trataram de lhe garantir bom repasto.

É criminoso continuarem a sacrificar os salários, as pensões de reforma e as políticas sociais. Os suspeitos do costume têm mesmo muitas razões para protestar.

*Investigador e professor universitário

PORTUGAL NO PÓDIO DOS MAIORES BURLÕES AOS FUNDOS COMUNITÁRIOS E IVA

Portugal na lista negra da fraude com fundos comunitários e IVA

Portugal é o segundo país a registar o maior número de burlas envolvendo subsídios europeus. A Procuradoria Europeia estima que terão sido causado danos de 2,9 mil milhões de euros só em 2022.

O balanço da Procuradoria Europeia relativamente à fraude com fundos comunitários e IVA não traça um cenário favorável a Portugal.

Avança o “Jornal de Notícias” este sábado que o mais recente relatório desta entidade europeia revela que, em 2022, foram abertas 23 investigações por uso ilegal de subsídios europeus e fraude ao IVA por parte de empresas sediadas ou a atuar em Portugal. Quanto aos fundos comunitários, os factos investigados estimam que terão sido causados danos de 2,9 mil milhões de euros, de acordo com a Procuradoria Europeia.

Quanto à fraude ao IVA, existem um total de 26 processos pendentes e a Procuradoria Europeia estima que o Estado português tenha sido lesado em 861,9 milhões de euros.

Revista Econômica

China está plantada na América Latina com parcerias econômicas e politicas a crescer

A China marca presença na América Latina com uma série de investimentos, projetos e exportações em crescendo, enquanto os EUA seguem seus passos.

HispanTV | Pátria Latina | # Publicado em português do Brasil

 A China é parceira comercial de grande parte dos países do mundo, mas nas últimas décadas tem apostado em ampliar sua presença na América Latina, seja como contrapeso ao unilateralista Estados Unidos, colocando em xeque sua influência na região da Ásia-Pacífico, ou optando por interesses puramente comerciais.

“O Brasil, já em 2009, começa a ter a China como principal parceiro, rapidamente outros países também. De 2001 a 2010, Pequim passou a qualificar cada vez mais sua presença na América Latina, com investimentos diretos de empresas chinesas, inicialmente no setor de recursos naturais, depois com uma presença muito forte no setor elétrico”, lembrou Renato Ungaretti, mestre em internacional estudos estratégicos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) da agência russa Sputnik.

Brasil, Chile, Peru, Uruguai e, mais recentemente, Argentina e Chile, são os exemplos mais claros do boom comercial entre ambas as partes. “[China] é um mercado gigante para as exportações, é o principal parceiro da maioria dos países sul-americanos. Pequim pode também contribuir para atenuar os estrangulamentos infra-estruturais [deficiências ao nível do serviço público, acesso a electricidade e saneamento] que a região apresenta, que são obstáculos ao desenvolvimento destes países”, disse.

Como a China minou o domínio histórico dos EUA na América do Sul?

Os alarmes soam, esses links geram interdependência. Como explicou o especialista, esta realidade de altas taxas de exportação, créditos financeiros e uma presença crescente gera “um cenário de crescente interdependência”.

Embora o gigante asiático seja um grande aliado, a América Latina deve “tentar diversificar seus parceiros, seus mercados, atrair investimentos de outras economias e assim preservar seu espaço de manobra”, enfatizou.

O fator Estados Unidos torna os laços entre América Latina, China e Rússia uma tarefa complexa, já que Washington tentará, por meio de ameaças, estratégias e boicotes, destruir essas aproximações.

“Ainda mais se considerarmos que nos últimos anos houve uma competição muito forte entre Pequim e Washington. E, evidentemente, os Estados Unidos não estão muito contentes com uma presença crescente da China tanto na América do Sul quanto na América Latina em geral”, afirmou.

Uma análise exclusiva realizada em junho passado pela agência de notícias britânica Reuters, com base em dados comerciais da Organização das Nações Unidas (ONU), indica que a China superou os Estados Unidos em termos de comércio em grande parte da América Latina durante a presidência dos atuais Estados Unidos. presidente, Joe Biden.

Imagem: O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva recebe as credenciais do embaixador chinês Zhu Qingqiao em Brasília, 3 de fevereiro de 2023.

EUA: TERRORISMO DE ESTADO, O TELHADO DE VIDRO DE UM GOVERNO SEM MORAL

O povo cubano tem sido vítima do terrorismo por sucessivos governos dos Estados Unidos, incluindo a explosão de um avião em pleno voo

Pátria Latina | # Publicado em português do Brasil

O Departamento de Estado publicou, em 28 de fevereiro, o relatório sobre terrorismo, e manteve Cuba na espúria lista de nações que o patrocinam

A administração de Joe Biden publicou na terça-feira, 28 de fevereiro, o Relatório sobre Terrorismo dos EUA e manteve, na lista espúria, a designação de Cuba como estado patrocinador do terrorismo.

O verdadeiro objetivo de difamar a Ilha como «terrorista é justificar o bloqueio ilegal dos Estados Unidos contra Cuba», condenou a Rede Nacional Cuba em sua conta no Twitter, na qual afirma que esta política é cada vez mais rejeitada naquele país.

Foi a administração de Ronald Reagan, em 1982, que primeiro incluiu a Ilha maior das Antilhas nesta relação; em 2015, uma administração de Barack Obama a excluiu, e depois, em sua última semana no cargo, e dias antes de Joe Biden tomar posse, o ex-presidente Donald Trump recolocou Cuba neste catálogo imperial, em 12 de janeiro de 2021.

Biden ratificou essa condição e agora o faz novamente, apesar de ter dito em sua campanha eleitoral que reverteria as sanções mais duras de Trump e voltaria às políticas de normalização do governo Obama, mas não seguiu adiante.

Nem o governo Reagan, nem aqueles que vieram depois dele, nem o atual, mostraram evidência de tais «atos». Cuba não tem qualquer política terrorista; tomou uma posição frontal contra este flagelo. O que teve em abundância são os efeitos do terrorismo, patrocinado, precisamente, pelo governo que reivindica o direito de acusá-la.

Desde 1959, o povo cubano tem sido vítima do terrorismo de Estado por sucessivos governos norte-americanos, o que incluiu a explosão de um avião em pleno voo, a invasão de seu território, a guerra biológica e o ato mais flagrante de violação dos direitos humanos, um bloqueio que tenta matar à fome a população de uma nação.

Cuba, ao invés de exportar armas para todo o mundo, tem uma longa história de internacionalismo sanitário em todos os cantos do mundo. Por que um país que espalha saúde por todo o planeta é apontado como Estado patrocinador do terrorismo? Não é um ato de terror negar a um povo a possibilidade de comprar oxigênio no meio da pandemia da Covid-19, como os Estados Unidos fizeram com Cuba?

A verdade foi dita pelo líder histórico da Revolução Cubana, Fidel Castro Ruz, em 17 de maio de 2005: «O terrorismo no conceito mais moderno e dramático, com o apoio de meios técnicos sofisticados e altos explosivos, foi criado e desenvolvido pelos próprios governantes dos Estados Unidos para destruir nossa Revolução».

Fonte: Granma - Redação Internacional | informacion@granma.cu |

BIDEN RENOVA A "CRIMINOSA POLÍTICA DE AGRESSÃO" CONTRA A VENEZUELA

 

Na quarta-feira, o presidente democrata Biden prolongou a ordem executiva 13962, de 8 de Março de 2015, assinada pelo também democrata Obama, que considera a Venezuela «uma ameaça extraordinária».

Na «Mensagem ao Congresso», data de 1 de Março, o actual presidente norte-americano, Joseph Biden, anuncia a renovação da ordem executiva que Barack Obama assinou pela primeira vez, há oito anos e desde então sucessivamente renovada, que classifica a Venezuela como «uma ameaça inusual e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos».

Num comunicado emitido esta quinta-feira, o governo venezuelano repudia de forma contundente a nova extensão da ordem executiva, que dá «continuidade à criminosa política agressão contra o povo venezuelano por via da imposição ilegal de medidas coercivas unilaterais».

O executivo de Caracas condena ainda a «afirmação infundada» de que o país caribenho represente algum tipo de ameaça para os EUA.

«Mais ainda quando é evidente que foi a Venezuela o país que teve de enfrentar uma multiplicidade de ameaças, chantagens, agressões e ataques que violam os direitos humanos de todo o povo venezuelano», denuncia a nota, sublinhando que isto viola «as normas estabelecidas no direito público internacional» e constitui «um crime contra a humanidade».

ALGUNS CÁLCULOS BÁSICOS NA UE NÃO IRIAM MAL - SERIA RACIONAL

Natasha Wright* | Strategic Culture Foundation | Traduzido em português do Brasil

A saída voluntária dos produtores ocidentais da Rússia permitiu aos produtores chineses avaliar o mercado europeu em sua totalidade e preencher as vagas em breve.

O Conselho da UE aprovou uma nova resolução sobre as restrições dos derivados de petróleo russos importações neste mês. Independentemente de esta medida causar algum transtorno ou prejuízo aos produtores russos ou não, como a decisão de Bruxelas influenciará a segurança energética na Europa? Isso os ajudará em sua guerra híbrida contra a Rússia? Eles anunciaram essa resolução muito antes, quando aprovaram sua resolução sobre as restrições do preço do petróleo bruto. Foi quando o Conselho encontrou uma série de opiniões críticas opostas dentro da UE porque, ao fazê-lo, novos precedentes provavelmente perigosos estão sendo definidos, possivelmente para serem abusados ​​por outros participantes do mercado de petróleo. Os princípios comuns de mercado e as forças de mercado como os conhecemos estão sendo ignorados e cancelados, os preços dos produtos do vendedor estão sendo restritos, pois o comprador está literalmente chantageando o vendedor agora; se eles continuarem aplicando essas novas regras aleatórias infundadas, é discutível o que isso pode levar. A União Européia e os países do G7 estão lentamente se tornando um grande obstáculo para que o comércio desimpedido ocorra na economia global. Os produtores de petróleo russos permaneceram intocados quanto a esta questão por alguns motivos:

– identificaram entretanto novos mercados;

– o preço do petróleo está estável.

Ainda que o preço do petróleo tenha caído ligeiramente nos últimos meses com previsão de subir novamente no segundo semestre de 2023, o petróleo russo consegue identificar seus caminhos para seus compradores na medida em que o petróleo bruto russo está sendo refinado e processado no territórios dos países que atuam como terceiros, ou seja, aqueles que não são membros da UE. Mesmo a referida Resolução da UE permite a isenção de tais casos. Eles estipulam que é possível misturar petróleo bruto russo e alguns adicionais de outros países e só então comercializá-lo também no mercado europeu.

Depois de ouvir sobre todo o esforço ridículo, não se pode deixar de caricaturar tudo; aparentemente, uma vasilha de petróleo bruto do terceiro país pode muito bem ser misturada com a enorme cisterna da Rússia, o derivado resultante é elegível o suficiente para evitar ser sancionado e, portanto, pode ser comercializado na UE, seja em suas formas indiretas. A Índia parece ter um papel fundamental em todas as operações; surge como intermediário nas cadeias de abastecimento das rotas comerciais. Atualmente, a Índia ocupa o terceiro lugar na área de exportação de derivados de petróleo. É bastante difícil medir a quantidade que vem da Rússia. Recentemente, um comentarista político fez um comentário passageiro de que é impossível medir quantas moléculas são de fato russas em um barril de petróleo. Tristemente, todos esses altos funcionários da UE e do mundo estão bem cientes de que isso está acontecendo, com a Índia sendo agora o terceiro maior importador do mundo, pois eles têm recursos escassos, mas um mercado monumental. Eles podem satisfazer apenas 10 a 12% de suas próprias necessidades nacionais de petróleo com seu próprio petróleo. Curiosamente, a Índia também surge como o terceiro maior exportador no mercado global.

EUROPA: A GUERRA SUJA E O SILÊNCIO DOS INTELECTUAIS

Diante do alarmante avanço do fascismo e da naturalização de conflitos sem fim, o mutismo de quem deveria denunciar a mentira e a falsificação dos valores. Autodemitidos de seu papel social, assistem apáticos à escalada imperial dos EUA

Boaventura de Sousa Santos* | Outras Palavras  

Cada povo andou pelas ruas da Europa fora
com uma pequena tocha na mão; e agora, eis o incêndio.
(Jean Jaurès, 25 de julho de 1914, seis dias antes de ser
assassinado por um fanático militarista)

Os intelectuais não têm o monopólio da cultura, dos valores ou da verdade, e muito menos o monopólio do que se deva entender por qualquer desses “domínios do espírito”, como dantes se dizia. Mas também não podem demitir-se de denunciar o que, em seu entender, considerem ser destrutivo da cultura, dos valores e da verdade, sobretudo quando essa destruição ocorre supostamente em nome da cultura, dos valores e da verdade. Os intelectuais não podem impedir-se de saudar o sol antes que o dia nasça, mas também não podem deixar de avisar que muitas nuvens podem toldar o céu antes que a noite caia e impedir que se goze a claridade do dia.

Assistimos na Europa à (re)emergência alarmante de duas realidades destrutivas dos “domínios do espírito”: a destruição da democracia, com o crescimento das forças políticas de extrema-direita; e a destruição da paz, com a naturalização da guerra. Qualquer destas destruições é legitimada pelos valores que visa destruir: a apologia do fascismo é feita em nome da democracia; a apologia da guerra, em nome da paz. Tudo isto é possível porque a iniciativa política e a presença mediática estão a ser entregues às forças conservadoras de direita ou de extrema-direita. As medidas de proteção social para que a população sinta no concreto (no orçamento familiar e na convivência social) que a democracia é melhor que a ditadura são cada vez mais escassas devido aos custos da guerra na Ucrânia e ao fato de que as sanções econômicas contra o inimigo (neste momento 14.081 sanções), que supostamente deviam causar dano ao inimigo, estão, de fato, causando dano aos cidadãos dos países europeus que se aliaram aos EUA. De outro modo, como se poderia explicar que, segundo os dados FMI, a economia russa crescerá mais que a economia europeia?

A destruição da paz e da democracia dá-se em geral pela constituição desigual e paralela de dois círculos de liberdades autorizadas, isto é, de liberdades de expressão e de ação acolhidas pelo poder midiático e político. O círculo das liberdades autorizadas para posições progressistas que defendem a paz e a democracia diminui cada vez mais, enquanto o círculo das liberdades autorizadas para posições conservadoras que fazem a apologia da guerra e da polarização fascista não cessa de crescer. Os comentadores progressistas estão cada vez mais ausentes da grande mídia, enquanto os conservadores debitam semanalmente páginas inteiras de mediocridade estarrecedora.

PARCERIA ESTRATÉGICA IRÃO - CHINA: O PANORAMA COMPLETO -- Pepe Escobar

– A principal conclusão da visita de Estado do presidente Ebrahim Raeisi a Pequim vai muito além da assinatura de 20 acordos bilaterais de cooperação.

Pepe Escobar [*]

Este é um ponto de inflexão crucial num processo histórico absorvente, complexo e em andamento que dura décadas:   a integração da Eurásia.

Não é de admirar que o Presidente Raeisi, ovacionado de pé na Universidade de Pequim antes de receber um título acadêmico honorário, tenha enfatizado que “uma nova ordem mundial está se formando e tomando o lugar da anterior”, caracterizada por “verdadeiro multilateralismo, máxima sinergia, solidariedade e dissociação dos unilateralismos”.

E o epicentro da nova ordem mundial, afirmou ele, é a Ásia.

Foi muito animador ver o presidente iraniano elogiar a Antiga Rota da Seda, não apenas em termos de comércio, mas também como um “laço cultural” e “conectando diferentes sociedades ao longo da história”.

Raeisi poderia estar falando sobre a Pérsia Sassânida, cujo império ia da Mesopotâmia à Ásia Central, e foi a grande potência comercial intermediária da Rota da Seda durante séculos entre a China e a Europa.

É como se ele estivesse corroborando a famosa noção do presidente chinês Xi Jinping de “trocas entre pessoas” aplicada às Novas Rotas da Seda.

E então o presidente Raeisi saltou para a conexão histórica inevitável:   tratou da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), na qual o Irão é um parceiro-chave.

Tudo isso mostra a total reconexão do Irão com a Ásia – depois daqueles anos possivelmente perdidos tentando uma entente cordiale com o Ocidente coletivo. Isso foi simbolizado pelo destino do JCPOA, ou acordo nuclear com o Irão:   negociado, enterrado unilateralmente e então, no ano passado, condenado a tudo exceto ao ganho.

Pode-se argumentar que, após a Revolução Islâmica há 44 anos, um florescente “pivô para o Oriente” sempre esteve à espreita por trás da estratégia oficial do governo de “Nem Oriente nem Ocidente”.

A partir da década de 1990, isso passou a entrar progressivamente em total sincronia com a política oficial de “Porta Aberta” da China.

Após o início do milênio, Pequim e Teerão estão ficando ainda mais sincronizados. O BRI, o maior avanço geopolítico e geoeconômico, foi proposto em 2013, na Ásia Central e no Sudeste Asiático.

Então, em 2016, o presidente Xi visitou o Irão, na Ásia Ocidental, levando à assinatura de vários memorandos de entendimento (MOU) e, recentemente, ao amplo acordo estratégico abrangente de 25 anos – consolidando o Irão como um ator-chave da BRI.

Acelerando todos os vetores-chave

Na prática, a visita de Raeisi a Pequim foi estruturada para acelerar todos os tipos de vetores na cooperação econômica Irão-China – desde investimentos cruciais no setor de energia (petróleo, gás, indústria petroquímica, oleodutos) até o setor bancário, com Pequim empenhada em promover reformas modernizadoras no setor bancário do Irão e bancos chineses abrindo filiais em todo o Irão.

As empresas chinesas podem estar prestes a entrar nos emergentes mercados imobiliários comerciais e privados iranianos e investir em tecnologia avançada, robótica e IA em todo o espectro industrial.

Estratégias sofisticadas para contornar sanções duras e unilaterais dos EUA serão um foco importante a cada passo do caminho nas relações Irão-China. A troca certamente faz parte do cenário quando se trata de negociar contratos de petróleo/gás iranianos para acordos industriais e de infraestrutura chineses.

É bem possível que o fundo soberano do Irão – o Fundo de Desenvolvimento Nacional do Irão – com participações estimadas em US$ 90 mil milhões, possa financiar projetos estratégicos industriais e de infraestrutura.

Outros parceiros financeiros internacionais podem vir na forma do Banco Asiático de Desenvolvimento de Infraestrutura (AIIB) e do NDB – o banco dos BRICS, assim que o Irão for aceite como membro do BRICS+:   isso pode ser decidido em agosto próximo na cúpula África do Sul.

O cerne da questão da parceria estratégica é a energia. A China National Petroleum Corporation (CNPC) desistiu de um acordo para desenvolver a Fase 11 do campo de gás South Pars do Irão, adjacente à seção do Catar.

Mas a CNPC sempre pode voltar para outros projetos. A Fase 11 está sendo desenvolvida pela empresa de energia iraniana Petropars.

Os acordos de energia – petróleo, gás, indústria petroquímica, renováveis ​​- crescerão no que chamei de Oleodutoistão no início dos anos 2000.

As empresas chinesas certamente farão parte de novos oleodutos e gasodutos conectando-se às redes de oleodutos iranianas existentes e configurando novos corredores de oleodutos.

O gasoduto já estabelecido inclui o gasoduto Ásia Central-China, que se conecta à rede de gasodutos oeste-leste da China, cerca de 7.000 km do Turcomenistão à costa leste da China; e o gasoduto Tabriz-Ancara (2.577 km, do noroeste do Irão à capital turca).

Depois, há uma das grandes sagas do Oleodutostão:   o gasoduto IP (Irão-Paquistão), anteriormente conhecido como Oleoduto da Paz, de South Pars a Karachi.

Os americanos fizeram tudo o que podiam para detê-lo, atrasá-lo ou até matá-lo. Mas o IP recusou-se a morrer; e a parceria estratégica China-Irão poderá finalmente fazer o projeto acontecer.

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