terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Angola | O Sermão que Desagradou aos Fiéis -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

PEREIRA DINIZ 

Ontem, pelo menos na Kimbi, a maralha acordou bem, “Na Paz do Senhor” como agora se diz. Na Placa 007, fronteira do areal para o asfalto, a maralha estava a zuelar (falar) sobre a selecção da Kimbi que tinha cortado mi inimigo (entenda-se, estava desavinda) com os que dormem e acordam com o futebol no coração. Ou seja, não se cansam de maboçar (conversar) sobre quem deve ser o treinador, quem é que deve ser seleccionado e outras lengalengas do desporto-rei.

A conversa estava tão boa e tão fluída, que, quando surgiu o Wassaluka, que sem dar bom dia, como mandam as regras da boa educação, disse que estava a sair da Sanzala dos Parentes Mais Pobres, onde o que ouviu e viu, se chegar à Kimbi muitos não vão gostar.

Mas não disse quem são estes "muitos”, o que fez o Ti Kifumbi dizer ao Wassaluka para brincar bem, porque ali se estava a falar de conversa séria, o futebol, que faz, às vezes, esquecer as malambas (pensamentos) do dia-a-dia que todos estão com ele. Homens, mulheres, mais velhos, jovens e até crianças.

Wassaluka, como um dos kandengues (menor de idade) que apareceu na Placa 007, vindo da Sanzala dos Parentes Mais Pobres, ao ouvir as dicas do Ti Kifumbi fechou o bico.

A conversa sobre a selecção da Kimbi continuou. Uns diziam que é constituída por bons jogadores. Outros, que só não chega mais longe quando joga nas competições internacionais, porque faltam, sempre, os apoios. Outros ainda, porque há desorganização por parte de quem dirige o game.

A conversa continuou fluída. Já que estava no limão (entenda-se, boa) surge o Wacodiua a gritar: "Hé! Bombô molhou. É maka grande na Sanzala dos Parentes Mais Pobres. Os deputados e ministros de lá e os da sociedade civil ouviram as boas novas do mais velho Tunda Boba”.

Aí, os que estavam presentes na Placa 007 fecharam o bico. O Ti Kifumbi, meio nervoso, pediu ao Wacodiua para contar o que aconteceu ou o que está a acontecer na Sanzala dos Parentes Mais Pobres.

Sem dar um passo em frente, nem para trás, nem sequer virar à direita ou à esquerda, o Wacodiua, que estava junto do seu sobrinho de nome Nistempo Nizua, começou por contar, sem pestanejar.

Na semana passada, referiu, na Sanzala dos Parentes Mais Pobres, o mais velho Tunda Boba, ninguém sabia porquê, reclamava dizendo que é triste o que está a acontecer ali. Que é triste ver crianças de mulher e de homem saírem de manhã para irem à procura do pão nosso de cada dia para a família, quando devia ser o contrário, porque era assim, naquele tempo.

Porque àquela hora que as crianças procuram o pão para os pais, é a hora de estarem, pelo menos, sentadas numa lata de leite a aprender o ABC, escrevendo em cima do joelho.

Naquele tempo, segundo o mais velho Tunda Boba, eram os pais a trabalhar para garantir o sustento das crianças, mas hoje, ninguém sabe o mal que os adultos fizeram, porque estes estão privados de um trabalho digno para conseguirem sustentar os seus filhos.

O mais velho Tunda Boba foi longe demais, se calhar com toda razão e verdade, ao dizer que os representantes do povo da Sanzala dos Parentes Mais Pobres são ingratos, porque sabem disso, sabem que as crianças estão a trabalhar contra a vontade pois não querem ver aqueles que lhes meteram no mundo a passar fome, umas, outras pedem esmolas nas portas dos supermercados, mas continuam de bico fechado e se tivessem dor pelas crianças, porque também já o foram, cujos onze compromissos estão a ser violados, deviam decretar, se tanto, umas horas de greve de fome defronte ao seu local de trabalho, num dia que na agenda estivesse em discussão a aprovação de uma Lei.

Membros do Governo da Sanzala dos Parentes Mais Pobres, que ouviram o sermão, assim como os da sociedade civil, também, ficaram de bico fechado.

É isso que fez com que o mais velho Tunda Boba, ainda nervoso, dissesse: "Se querem nos matar, utilizem outras formas, porque com essa, uns vão morrer na primeira esquina, outros na segunda e depois... e depois...e depois não sei o que pode acontecer. Só Deus sabe!”.

Foram palavras que comoveram todos aqueles que escutavam o sermão do mais velho Tunda Boba. 

É a verdade verdadeira na Sanzala dos Parentes Mais Pobres.

Atenção, agora escrevo eu, Artur Queiroz. A crónica é uma paixão. Estou apaixonado por ela desde miúdo. Foi a minha primeira namorada. Li Os Trovões de Antigamente, do mestre Ruben Braga. Além de apaixonado fiquei milionário. Li O Mundo dos Outros de José Gomes Ferreira. Apaixonado e multimilionário. Fiz uma recolha e selecção das melhores crónicas de Ernesto Lara Filho. Baptizei o livro de Crónicas da Roda Gigante. Um fracasso editorial. Fiquei pobre de dinheiro mas mais apaixonado pela crónica.

Pereira Dinis é meu kamba. Fizemos reportagens a duas mãos. Bebemos kapuka do mesmo copo. Fomos cúmplices de jovens repórteres no Jornal de Angola. Demos o nosso melhor para que se apaixonassem pela reportagem. Com uns falhámos, com outros triunfámos. Felicidade não tem fim quando nasce um repórter.

O Pereira Dinis é um sacana. Já lhe pedi mil vezes para não explicar as palavras e expressões que utiliza nas suas crónicas. Não me dá confiança. Em Kimbundu a palavra LADRÃO pode ser múii, mubi, munhane, kingumba, kimbokota, kimbongota, kinguanji, kinguangua, mangumbala, mubime. E kifumbi. Na sua Sanzala dos Parentes Mais Pobres há sempre um Ti Kifumbi. Mas aí ele não traduz Kifumbi para português. Nomear um chefe de ladrão? Vais preso meu mano. E depois lá tenho que denunciar a tua prisão. Lutar pela tua libertação. Amigo meu não morre na prisão. Antes me matem a mim.  

Um dia vou publicar as Crónicas da Sanzala, de Pereira Diniz. 

* Jornalista 

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