Daniel Deusdado* | Diário de Notícias | opinião
1 Em vez de se solidarizar contra um certo tipo de mundo radical da politiquice, onde os filhos de adversários podem ser metidos na campanha, André Ventura preferiu humilhar Rui Tavares no debate de sexta-feira porque este defende a escola pública, mas afinal, tem filhos numa escola privada. Sabendo Ventura que, infelizmente, não há uma escola pública para filhos de pessoas que servem Portugal pelo mundo (diplomatas, políticos, etc.) e as crianças necessitam de currículos e diversas línguas-base para poderem ir mudando de país.
Sendo um homem de tão pouco mundo, Ventura deliciou-se consigo próprio a vociferar a sua ignorância sobranceira e o insulto hipócrita contra o adversário. Rui Tavares teve ali o seu momento Gandhi, não conseguindo ripostar contra tanta estupidez alheia.
Mas, bem vistas as coisas, esta
tentativa de espezinhar o adversário foi provavelmente fatal para Ventura e a
melhor coisa que aconteceu ao PSD. Se os indecisos de direita, e os
desconfiados do PSD, ainda tinham dúvidas e viram o debate, talvez tenham ficado
com mais certezas sobre como funciona o Chega. Luís Montenegro e o seu núcleo
duro puderam compreender ainda melhor, em tempo real, a necessidade de um
rigoroso cordão sanitário face a este “farsismo” genético.
2 Ainda assim, não podemos esquecer que chegamos aqui porque uma Justiça
paralisada há décadas e de que ninguém já queria saber, está a cercar o sistema
político. Um novo método, kafkiano, está em prática há mais de uma década e
funciona através de um conluio entre o sistema mediático e o sistema judicial /
forças de segurança. Cada parte ganha qualquer coisa: os primeiros a noticiar,
ou a chegar ao local das buscas, brilham mais do que a concorrência. Em troca,
pagam os favores divulgando a informação seletiva dessas mesmas fontes,
condenando na praça pública quem estiver na mira das autoridades, ou tornando
públicas partes dos processos que atenuam ou legitimam falhas na investigação.
Hoje, a principal condenação acontece quase sempre na televisão. Depois, ficam
os anos de espera como lento estertor dos acusados.
O negócio da condenação prévia funciona através da violação do segredo de Justiça, da violação da privacidade nas escutas ou buscas domiciliárias, e na degradação do bom nome e imagem de cada um dos arguidos (“suspeitos”/ “criminosos”). As partes geram entre si um sistemático tráfico de influências. Crime?
A uma escala mais pequena, qualquer português sabe que os tribunais são caros e funcionam mal. Não tanto no mais fácil - pequenos crimes - mas sobretudo nas dívidas, nos problemas com grandes empresas ou seguradoras, nos incumprimentos de senhorios ou inquilinos, nas questões de tutela familiar e adoções, etc... São muitos meses / anos até se obter uma sentença, que quase sempre surge tarde demais...
Esta inexistência da “Justiça” agravou-se ao ponto extremo em que estamos. Depois do caso “Costa”, dos passos em falso no “Influencer - Sines e Data Center”, e agora na “Madeira”, o respeito pelas investigações judiciais está comprometido. A opinião pública deixará de exigir demissões imediatas. Porque afinal, nada é confiável. É mesmo seguro pensarmos que, tivesse o caso madeirense surgido antes das buscas na residência oficial do primeiro-ministro, ainda hoje teríamos Governo.
É a degradação do sistema que coloca a válvula de escape nas mãos de um homem como Ventura. Por isso, a próxima legislatura é mesmo a última oportunidade para endireitar este sistema. Sem isso, o país não tem solução.
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