quinta-feira, 21 de março de 2024

ADEUS MENINO -- Artur Queiroz

(Hoje é Dia da Poesia. Mando este libreto de uma ópera escrita pelo Poeta Malaquias. Um dia será cantada em louvor da Liberdade)


 Artur Queiroz*, Luanda 

Adeus Menino 

Nas cavernas da rota da seda

o meu irmão fuma ópio e afaga o camelo

come uma tâmara madura

escondido da luz do dia na nuvem de poeira 

que o vento sul sopra em cortina castanha

o horizonte é a sua casa de pedras e palhinha

quente como a manjedoura inóspita da Palestina

 

(Vamos explodir, menino do deserto,

 que a liberdade é um oásis destroçado)

 

Nas prisões que vão do mar às nuvens

está prisioneiro o meu irmão que nunca afagou um camelo

nem fumou ópio na solidão da poeira translúcida do vento sul.

 

(Ao sol escancarado do meio dia há lágrimas puras

derramadas na vala comum de mães desesperadas)

 

O meu irmão roubou pitangas na granja do chefe de posto

e colheu jingenge madurinho dos capinzais queimados pelo napalm 

arrasados pela ventania de Março

que soprava em lufadas de calor do alto Pingano.

 

(os cães uivam angústias ao mistério da noite).

 

O meu irmão sobreviveu aos saldos e à inflação

nas ruas de um império perfumado de sangue suor glamour e burbon

som do contrabaixo rompendo as colunas de fumo do cavô

a cantora soltando mágoas do rapaz do Bindo

levado nas cordas de um barco negreiro lavado nas lágrimas da nossa mãe.

 

(A cobra cuspideira anda nos ninhos devorando o amanhecer

quem aprendeu a voar sabe cantar o dia que nunca viu nascer) 

 

África do sofrimento e do cemitério onde morre a dignidade dos elefantes

a preciosidade dos seios da amantíssima profetiza Weza

a boca petrificada dos mucubais

a rota apagada dos escravos fugitivos dos passos cativos 

dos abraços quebrados

e o canto rompendo muros e murmúrios

becos iluminados por sete estrelas do Cruzeiro do Sul

e mulheres parindo deuses na fuga para o Egipto

no encalço do alfabeto e do pássaro do Nilo 

que escreveu os falsos evangelhos nos papiros de Alexandria.

 

(mãe, nossa mãe, como se perdeu tão cedo 

e foi brevíssimo o inebriante sabor do teu leite!)

 

Maria era mulher rica e opulenta de seios 

mãe do meu irmão que foi pregado na mulemba 

enquanto dançavam kazumbis 

movidos a pilhas e com controlo remoto

última maravilha dos circuitos integrados.

 

(As mães do Alabama nunca tinham visto cruzes em brasa

e os meninos do Bindo desconheciam que o Dange era um rio de sangue)

 

Nas praias do mar Egeu paira o som da ngaeta do meu irmão 

quando Dido enlouqueceu

ululando amor desesperado nos claustros do seu palácio assombrado

nas pedras de Creta está desenhada a fuga dos marinheiros

num tropel desordenado em demanda da cidade de Tebas

ali ao fundo da rua que desce para o Kanwango 

o rio onde naufragou a nossa infância

meninos com alma de pássaros desesperadamente livres

a mandioca curtia nos riachos

e deixávamos crucificar nos troncos das muanzas os passos trôpegos 

de uma liberdade impiedosamente vigiada.

 

(Se deus fosse grande oferecia à humanidade o dia prodigioso 

em que os nossos sonhos voaram da valeta para a liberdade)

 

Nascem deuses a Oriente adorados pelos mágicos dos batuques 

na trepidante festa da morte

todos os seus filhos procuram o som das tumbadoras

o longo manto da rainha das colheitas

o olhar insinuante de uma virgem enjaulada

o desejo ardente de corpos mutilados pelos golpes da escravidão.

 

(A sorte nunca prestou contas ao destino

e a morte tem asas brancas e corpo de menino).

 

Nas ruas arruinadas de Luanda pairam os sonhos do meu irmão

uma dança felina no Marítimo da Ilha um beijo longo no Braguês

uma cama de esteira e luz a pitrol no Bairro Operário

quando apagaram a luz mexeram abusadamente na mana Josefa 

e nas nádegas opulentas da bela Canducha

sem respeito pela cadência e o ritimo dos Invejados Kazukuta Cidrália

quem arreia a mãe dele é gato até às cinzas deste Carnaval.

 

(Nunca esqueçam, mães, os filhos tristemente pródigos

que escolheram andar perdidos da memória dos maternos regaços)

 

As deusas campestres do Libolo gostam de parir mulatos

e em sinal de perdão pelos presentes e passados maus-tratos

um deles vai ser o messias fatal que se afoga no Natal.

 

(Aceita, ó bem-amada, a voz incandescente de Belita Palma

que rasga a noite do esquecimento numa labareda de tristeza)

 

Para apaziguar vinganças eternas

pagar makongos e desonras do último lembamento

amainar ameaças de ódios fundos

plantados no santo espírito da família

estou preparado para ser fuzilado

no voluptuoso quarto de Vénus 

com janela virada para a Estrela da Alba.


(Já pressinto a luz e os passos incertos do Menino Jesus)


* Jornalista

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