(Hoje é Dia da Poesia. Mando este libreto de uma ópera escrita pelo Poeta Malaquias. Um dia será cantada em louvor da Liberdade)
Artur Queiroz*, Luanda
Adeus Menino
Nas cavernas da rota da seda
o meu irmão fuma ópio e afaga o camelo
come uma tâmara madura
escondido da luz do dia na nuvem de poeira
que o vento sul sopra em cortina castanha
o horizonte é a sua casa de pedras e palhinha
quente como a manjedoura inóspita da Palestina
(Vamos explodir, menino do deserto,
que a liberdade é um oásis destroçado)
Nas prisões que vão do mar às nuvens
está prisioneiro o meu irmão que nunca afagou um camelo
nem fumou ópio na solidão da poeira translúcida do vento sul.
(Ao sol escancarado do meio dia há lágrimas puras
derramadas na vala comum de mães desesperadas)
O meu irmão roubou pitangas na granja do chefe de posto
e colheu jingenge madurinho dos capinzais queimados pelo napalm
arrasados pela ventania de Março
que soprava em lufadas de calor do alto Pingano.
(os cães uivam angústias ao mistério da noite).
O meu irmão sobreviveu aos saldos e à inflação
nas ruas de um império perfumado de sangue suor glamour e burbon
som do contrabaixo rompendo as colunas de fumo do cavô
a cantora soltando mágoas do rapaz do Bindo
levado nas cordas de um barco negreiro lavado nas lágrimas da nossa mãe.
(A cobra cuspideira anda nos ninhos devorando o amanhecer
quem aprendeu a voar sabe cantar o dia que nunca viu nascer)
África do sofrimento e do cemitério onde morre a dignidade dos elefantes
a preciosidade dos seios da amantíssima profetiza Weza
a boca petrificada dos mucubais
a rota apagada dos escravos fugitivos dos passos cativos
dos abraços quebrados
e o canto rompendo muros e murmúrios
becos iluminados por sete estrelas do Cruzeiro do Sul
e mulheres parindo deuses na fuga para o Egipto
no encalço do alfabeto e do pássaro do Nilo
que escreveu os falsos evangelhos nos papiros de Alexandria.
(mãe, nossa mãe, como se perdeu tão cedo
e foi brevíssimo o inebriante sabor do teu leite!)
Maria era mulher rica e opulenta de seios
mãe do meu irmão que foi pregado na mulemba
enquanto dançavam kazumbis
movidos a pilhas e com controlo remoto
última maravilha dos circuitos integrados.
(As mães do Alabama nunca tinham visto cruzes em brasa
e os meninos do Bindo desconheciam que o Dange era um rio de sangue)
Nas praias do mar Egeu paira o som da ngaeta do meu irmão
quando Dido enlouqueceu
ululando amor desesperado nos claustros do seu palácio assombrado
nas pedras de Creta está desenhada a fuga dos marinheiros
num tropel desordenado em demanda da cidade de Tebas
ali ao fundo da rua que desce para o Kanwango
o rio onde naufragou a nossa infância
meninos com alma de pássaros desesperadamente livres
a mandioca curtia nos riachos
e deixávamos crucificar nos troncos das muanzas os passos trôpegos
de uma liberdade impiedosamente vigiada.
(Se deus fosse grande oferecia à humanidade o dia prodigioso
em que os nossos sonhos voaram da valeta para a liberdade)
Nascem deuses a Oriente adorados pelos mágicos dos batuques
na trepidante festa da morte
todos os seus filhos procuram o som das tumbadoras
o longo manto da rainha das colheitas
o olhar insinuante de uma virgem enjaulada
o desejo ardente de corpos mutilados pelos golpes da escravidão.
(A sorte nunca prestou contas ao destino
e a morte tem asas brancas e corpo de menino).
Nas ruas arruinadas de Luanda pairam os sonhos do meu irmão
uma dança felina no Marítimo da Ilha um beijo longo no Braguês
uma cama de esteira e luz a pitrol no Bairro Operário
quando apagaram a luz mexeram abusadamente na mana Josefa
e nas nádegas opulentas da bela Canducha
sem respeito pela cadência e o ritimo dos Invejados Kazukuta Cidrália
quem arreia a mãe dele é gato até às cinzas deste Carnaval.
(Nunca esqueçam, mães, os filhos tristemente pródigos
que escolheram andar perdidos da memória dos maternos regaços)
As deusas campestres do Libolo gostam de parir mulatos
e em sinal de perdão pelos presentes e passados maus-tratos
um deles vai ser o messias fatal que se afoga no Natal.
(Aceita, ó bem-amada, a voz incandescente de Belita Palma
que rasga a noite do esquecimento numa labareda de tristeza)
Para apaziguar vinganças eternas
pagar makongos e desonras do último lembamento
amainar ameaças de ódios fundos
plantados no santo espírito da família
estou preparado para ser fuzilado
no voluptuoso quarto de Vénus
com janela virada para a Estrela da Alba.
(Já pressinto a luz e os passos incertos do Menino Jesus)
* Jornalista
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