quinta-feira, 27 de junho de 2024

A RECEITA DE SÁBADO -- Pedro Motta

Pedro Motta 

Naquele sábado era o meu avô a cozinhar. O meu avô era homem de fazer petiscos e pratos elaborados. Eu já conhecia os cheiros quando era a vez dele cozinhar mas nesse sábado era um cheiro novo. Fiquei intrigado. 

O almoço está servido. Sentámo-nos e chegaram duas panelas fumegantes. Perguntei o que era. É liberdade, come o que quiseres. Que faças bom proveito. 

Não reconhecia nenhum dos dois alimentos. O primeiro, com bom ar, era amargo. O segundo tinha um aspeto viscoso. Ainda assim, provei. Acho que até abri os olhos. Nunca tinha provado nada tão saboroso. Dei por mim a devorar aquele desconhecido manjar. E depois só restava o amargo. Pedi para não comer. O meu avô relembrou que havia dito – Come o que quiseres. Fiquei aliviado. Vamos ao jardim? 

Pegámos na bicicleta e fomos. Assim que chegámos ao portão, montei-me apressadamente, entusiasmado. Posso ir? Sim, vai onde quiseres mas lembra-te que saímos às quatro. 

Embrenhei-me numa selva só minha, pedalando com amigos, descendo as ribanceiras a alta velocidade e parando no forte de madeira de vez em quando, para brincar à sombra. Os amigos das pedaladas foram partindo até que a noite se fez sem que desse por ela. Fiquei sozinho. 

Voltei ao portão. Pensei, o que faço agora? Eu sabia o caminho para casa. Mas nunca tinha andado nas ruas à noite, sozinho. Levei a bicicleta à mão, cheio de medo, pelos passeios estreitos. Consegui chegar a casa onde encontrei o meu avô. Lancei me nos seus braços. Ele confortou-me. Quando consegui falar, perguntei: porque me deixaste sozinho? Ele baixou-se e respondeu: eu dei-te a provar a liberdade. Havia duas panelas, dois ingredientes. Libertinagem e responsabilidade, tu só comeste um. Abracei-o. 

Passaram-se anos até conseguir apreciar os dois paladares. Hoje, não gosto de um sem o outro. 

* Dedicado ao meu Avô Simplício 

26.03.2024 

Pedro Motta

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