Caro leitor,
temos que agradecer a António
Costa a alegria com que vaporizou a pátria enquanto a Seleção do Senhor
Martinez só nos angustia. Ter um português à cabeceira do Conselho Europeu não
sobe salários, não baixa rendas, não insufla o PIB, nem garante médicos, mas
nós contentamo-nos com pouco, ficamos sempre animados com orgulhos e sentimos
sempre muito orgulho quando um dos nossos ergue a taça. O grito de guerra de
Marcelo Rebelo de Sousa - "somos todos Ronaldo!" - envelheceu, mas o
estímulo Costa (não o maravilhoso Diogo dos penáltis mas o inesquecível António
das vacas que voam) foi providencial, até para nos aliviar do teimoso Cavaco,
que não para de nos convencer que temos que ir outra vez para eleições.
Ninguém quer eleições. Se espreitássemos ao virar da esquina uma solução
estável, moderada com rasgo, arrojada com visão e globalmente com esperança de
vida, ainda vá. Mas o que aí está é péssimo para aventuras. O PS ainda não
se recompôs da saída de Costa e chega a parecer impercetível; a esquerda à sua
esquerda está disforme; Montenegro surpreendeu, está a ganhar na iniciativa política com passos certos em
frentes há muito adiadas, mas com restrições nas contas onde não pode dar argumentos nem
a Bruxelas nem ao Partido Socialista (conclusão: é cedo); e a direita à sua
direita são duas empresas muito concorrenciais a merecer opas hostis, mas sem
lucros garantidos de um dia para o outro.
Não sabemos se os que se cansaram do Chega, ao olharem para o que se passa em
França, tendem a voltar para o amigo de Marine Le Pen ou se fogem de vez,
dispostos a dar força aos moderados; não sabemos se o galope da família
europeia de Ventura assusta ou se até ajuda a perder medo (Meloni cada vez assusta
menos e mais dia, menos dia, está amiga de Costa); e também não sabemos se os
liberais sem Cotrim se aguentam e se vão querer alinhar com a AD ou continuar a
fazer músculo. Sorry, Professor Cavaco, mas desta vez o Professor Marcelo
ganha – Montenegro mandar-se para eleições assim seria como inscrever-se
numa aula de desportos radicais.
O artigo de Cavaco Silva no Expresso a defender que o
país só progride com legislativas que reforcem a maioria ou com um bloco
central com o PS (em que nem ele acredita), só não é a ameaça que parece a Luis
Montenegro porque eles falam, entendem-se, nenhum acha o outro rural e um
e outro sonham com maiorias absolutas e não desistiram delas. Vale a pena
registar isto. O pior é que o ponto onde estamos dá, para já, aos planos da
dupla uma aura surreal. A AD ganhou em março com uns esqueléticos 29%,
perdeu em junho com uns magros 31% e, pior que tudo, tem à sua direita entre 18
e 23 de Chega e da IL, tudo a léguas dos mais de 40% exigíveis para uma maioria
absoluta – e dos 50% de Cavaco há 30 anos nem vale a pena falar. Portugal era
um país atrasadíssimo, tinha tudo por fazer e Cavaco foi o homem que soube
agarrar a oportunidade. Mas o cavaquismo esmagou porque a grande cisão era à
esquerda (PS/PRD) e hoje a enorme cisão é à direita (PSD/Chega/IL) e isso muda
tudo. Só teoricamente, dirá Cavaco Silva, que teima em acreditar em homens
providenciais e acha que os extremos se combatem à moda antiga, mais do que
apostando em juntar e dar força aos moderados.
Revisitemos a regra número um do cavaquismo: tomar as decisões necessárias sem
se preocupar excessivamente com o caráter minoritário dos governos (ele, aliás,
nunca dizia Governo minoritário, dizia maioria relativa). E revisitemos agora a
regra número dois, tão disruptiva que há três décadas causou erisipela no seu
PSD, quando o ouviram anunciar que só governaria com maioria absoluta. Eurico
de Melo, barão do Norte e nº2 de Cavaco à época, correu a desmentir o chefe –
democracia é aceitar a vontade popular e o PSD devia governar mesmo que
ganhasse por um. Certo é que tiveram maioria absoluta, só que não havia
Chega, Le Pen não mandava em França, Trump não mandava na América e à mesa do
Conselho Europeu não se sentavam cinco países liderados por direitas radicais.
Cavaco Silva sabe ler a Europa mas não sai da sua e isso tem seguramente uma
explicação. Não é impossível que encontre limitações na estratégia com que
Montenegro chegou ao Governo em Portugal. É que sendo pacífico que o 'não é não' a Ventura foi decisivo para ganhar
legislativas, não é líquido que dê para mudar o país. E sobretudo não é trunfo
que se jogue duas vezes se a AD quiser mesmo pular a cerca. Luis Montenegro já
não pode firmar acordos de governo com a direita radical que vetou do seu
xadrez e a esta impossibilidade soma-se outra chamada bloco central – acordos
com o PS de Pedro Nuno Santos só pontuais. O que é que sobra, se à direita
do PSD moram 20%? Sobra continuar a somar iniciativa, menos powerpoints e
mais resultados, menos queixume e mais moderação, mais firmeza ('nem
mais um cêntimo para os polícias' era inevitável e Montenegro nunca lhes fez
promessas quantificadas) e mais abertura negocial no Parlamento (parece
contraditório mas não é). Para crescer, sobra ir juntando inteligência na
relação com a IL e rezar para que as réplicas do terramoto em França tenham em
Portugal um efeito mais de provocar medo do que de o perder.
Quando houver eleições (Marques Mendes veio apontar 2026), a fórmula Cavaco
aconselharia jogar o tudo ou nada e dizer que estando a AD entalada entre um
Chega à solta e um PS preso, sem maioria absoluta nada feito. Mas é aqui
que a lente de Marcelo é mais fina a analisar o mundo em geral e
Montenegro em particular. O líder da AD, que Marcelo achou reservado,
opaco e difícil de perceber, sabe que 30 anos depois nada é igual e nunca
jogará o tudo ou nada. O que não quer dizer que não seja ele o mais
genuinamente interessado em eleições antecipadas.
Tempos desafiantes.
Até para a semana
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