quarta-feira, 3 de julho de 2024

Portugal | CAVACO NÃO CONTOU TUDO A MONTENEGRO


Ângela Silva, jornalista | Expresso (A vida é vil)

Caro leitor,

temos que agradecer a António Costa a alegria com que vaporizou a pátria enquanto a Seleção do Senhor Martinez só nos angustia. Ter um português à cabeceira do Conselho Europeu não sobe salários, não baixa rendas, não insufla o PIB, nem garante médicos, mas nós contentamo-nos com pouco, ficamos sempre animados com orgulhos e sentimos sempre muito orgulho quando um dos nossos ergue a taça. O grito de guerra de Marcelo Rebelo de Sousa - "somos todos Ronaldo!" - envelheceu, mas o estímulo Costa (não o maravilhoso Diogo dos penáltis mas o inesquecível António das vacas que voam) foi providencial, até para nos aliviar do teimoso Cavaco, que não para de nos convencer que temos que ir outra vez para eleições.

Ninguém quer eleições. Se espreitássemos ao virar da esquina uma solução estável, moderada com rasgo, arrojada com visão e globalmente com esperança de vida, ainda vá. Mas o que aí está é péssimo para aventuras. O PS ainda não se recompôs da saída de Costa e chega a parecer impercetível; a esquerda à sua esquerda está disforme; Montenegro surpreendeu, está a ganhar na iniciativa política com passos certos em frentes há muito adiadas, mas com restrições nas contas onde não pode dar argumentos nem a Bruxelas nem ao Partido Socialista (conclusão: é cedo); e a direita à sua direita são duas empresas muito concorrenciais a merecer opas hostis, mas sem lucros garantidos de um dia para o outro.

Não sabemos se os que se cansaram do Chega, ao olharem para o que se passa em França, tendem a voltar para o amigo de Marine Le Pen ou se fogem de vez, dispostos a dar força aos moderados; não sabemos se o galope da família europeia de Ventura assusta ou se até ajuda a perder medo (Meloni cada vez assusta menos e mais dia, menos dia, está amiga de Costa); e também não sabemos se os liberais sem Cotrim se aguentam e se vão querer alinhar com a AD ou continuar a fazer músculo. Sorry, Professor Cavaco, mas desta vez o Professor Marcelo ganha – Montenegro mandar-se para eleições assim seria como inscrever-se numa aula de desportos radicais.

artigo de Cavaco Silva no Expresso a defender que o país só progride com legislativas que reforcem a maioria ou com um bloco central com o PS (em que nem ele acredita), só não é a ameaça que parece a Luis Montenegro porque eles falam, entendem-se, nenhum acha o outro rural e um e outro sonham com maiorias absolutas e não desistiram delas. Vale a pena registar isto. O pior é que o ponto onde estamos dá, para já, aos planos da dupla uma aura surreal. A AD ganhou em março com uns esqueléticos 29%, perdeu em junho com uns magros 31% e, pior que tudo, tem à sua direita entre 18 e 23 de Chega e da IL, tudo a léguas dos mais de 40% exigíveis para uma maioria absoluta – e dos 50% de Cavaco há 30 anos nem vale a pena falar. Portugal era um país atrasadíssimo, tinha tudo por fazer e Cavaco foi o homem que soube agarrar a oportunidade. Mas o cavaquismo esmagou porque a grande cisão era à esquerda (PS/PRD) e hoje a enorme cisão é à direita (PSD/Chega/IL) e isso muda tudo. Só teoricamente, dirá Cavaco Silva, que teima em acreditar em homens providenciais e acha que os extremos se combatem à moda antiga, mais do que apostando em juntar e dar força aos moderados.

Revisitemos a regra número um do cavaquismo: tomar as decisões necessárias sem se preocupar excessivamente com o caráter minoritário dos governos (ele, aliás, nunca dizia Governo minoritário, dizia maioria relativa). E revisitemos agora a regra número dois, tão disruptiva que há três décadas causou erisipela no seu PSD, quando o ouviram anunciar que só governaria com maioria absoluta. Eurico de Melo, barão do Norte e nº2 de Cavaco à época, correu a desmentir o chefe – democracia é aceitar a vontade popular e o PSD devia governar mesmo que ganhasse por um. Certo é que tiveram maioria absoluta, só que não havia Chega, Le Pen não mandava em França, Trump não mandava na América e à mesa do Conselho Europeu não se sentavam cinco países liderados por direitas radicais.

Cavaco Silva sabe ler a Europa mas não sai da sua e isso tem seguramente uma explicação. Não é impossível que encontre limitações na estratégia com que Montenegro chegou ao Governo em Portugal. É que sendo pacífico que o 'não é não' a Ventura foi decisivo para ganhar legislativas, não é líquido que dê para mudar o país. E sobretudo não é trunfo que se jogue duas vezes se a AD quiser mesmo pular a cerca. Luis Montenegro já não pode firmar acordos de governo com a direita radical que vetou do seu xadrez e a esta impossibilidade soma-se outra chamada bloco central – acordos com o PS de Pedro Nuno Santos só pontuais. O que é que sobra, se à direita do PSD moram 20%? Sobra continuar a somar iniciativa, menos powerpoints e mais resultados, menos queixume e mais moderação, mais firmeza ('nem mais um cêntimo para os polícias' era inevitável e Montenegro nunca lhes fez promessas quantificadas) e mais abertura negocial no Parlamento (parece contraditório mas não é). Para crescer, sobra ir juntando inteligência na relação com a IL e rezar para que as réplicas do terramoto em França tenham em Portugal um efeito mais de provocar medo do que de o perder.

Quando houver eleições (Marques Mendes veio apontar 2026), a fórmula Cavaco aconselharia jogar o tudo ou nada e dizer que estando a AD entalada entre um Chega à solta e um PS preso, sem maioria absoluta nada feito. Mas é aqui que a lente de Marcelo é mais fina a analisar o mundo em geral e Montenegro em particular. O líder da AD, que Marcelo achou reservado, opaco e difícil de perceber, sabe que 30 anos depois nada é igual e nunca jogará o tudo ou nada. O que não quer dizer que não seja ele o mais genuinamente interessado em eleições antecipadas.

Tempos desafiantes.

Até para a semana

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