“Receba as últimas notícias sobre o uso das palavras”
Quem me dera ser linear Alberto. Nascer, crescer, andar, brincar, crescer mais um pouco, pouco a pouco e depois, de repente, fornicar por prazer, duvidar e não querer nada, muito menos crescer. E dei por mim assim, aqui, Alberto. Sentado num bar à espera que um crime qualquer aconteça, atrás do balcão. Já olhaste bem para a Elsa, com os lábios pintados de vermelho vivo, a servir sempre com um sorriso? Quem é que anda sempre com um sorriso?
Deixa lá a Elsa e os crimes que podiam acontecer. Amanhã não trabalhas?
Pudera. Mais uma tareia para as costas. E a vida começa depois das cinco. Não é todos os dias que estamos aqui sentados no bar a consagrar a nossa amizade. Vamos esquecer o trabalho e toda a linearidade das coisas, já não temos idade para isso. A vida é curta meu amigo.
Rimos, brindámos, despedimo-nos da Elsa e do bar. Deixámos para trás mais uma estória que podia ter sido. Vive como se não fosse, sabendo que já não foi. Foram as palavras de Alberto à passagem na porta de sua casa que ficava a caminho da minha. Até à próxima, se não for antes.
Cheguei a casa. A roupa estava por lavar e eu falo sozinho quando chego a casa. Bom, vamos pôr a máquina a trabalhar agora e deixar que a vida aconteça enquanto o tambor rola. Um banho. Preciso de um banho.
Os dias passavam, um atrás do outro, memoráveis, até serem esquecidos. Bom, almoço para amanhã. Corta-se o toucinho, o alho, deita-se um fio de azeite meio coalhado na frigideira e eu deleito-me, enquanto o azeite cai e os cristais deambulam no fundo da garrafa. É natural perder-me em casa, enquanto a vida escorre como ouro virgem pelo gargalo do tempo. Nada mais natural do que me perder no tempo e nas imagens. Pronto, o arroz está feito e o feijão já está a apurar.
Depois dessa missão cumprida, cansado, penso. Ser carteiro mata-me sem que dê conta da vida. Os meus colegas, todos eles mais velhos, chamam-me anjinho e mencionam repetidamente a baixa. Questiono-me porque razão querem ficar doentes.
Chego a casa, depois de doze horas e vinte quilómetros. A saca estava pesada e o carrinho era do João que já voltou de férias. Nem uma farda tenho, nem uma reles chapa de identificação. Até houve um velhote que não aceitou uma carta registada do tribunal, não quis acreditar que sou eu quem agora distribui a correspondência. Amanhã começo o giro ao contrário. Para não ficarem sempre os mesmos com as cartas em atraso.
No dia seguinte, com o nascer do dia adivinhado no horizonte, o ar estava fresco ao chegar à Junqueira. Não me lembro de ter assistido a um Junho tão quente. Cheguei com uma saca cheia do dia anterior. À minha espera estavam os suspeitos do costume a chamar pelo anjinho e pela baixa. No interior da estação, aquele corrupio característico e a prateleira do 101 cheia de cartas para separar pela ordem certa. Nem vou explicar a ordem certa porque não é pela ordem dos números das portas, nem pela ordem dos nomes das ruas. É como se me tivessem vendado e largado numa cidade qualquer sem qualquer interesse pela minha sanidade mental. Onde está o 52 da Rua de Pedrouços, porra? E corria de olhos trocados aquelas ranhuras todas, ansiando por atar mais um molho e finalmente o último, gritando para dentro toda a vontade que tinha de sair dali, para a rua. Saí já tinham batido as onze da manhã e o Sol estava alto e duro. A saca estava pesada e áspera. Vinte quilómetros e cinco pontos de reabastecimento, mais cinco sacas ásperas e pesadas.
Naquelas ruas, por alguma razão, recordava o “Carteiro de Pablo Neruda” e eu nem vi o filme. Pensava na nobre e poética função que desempenhava, na importância de cada uma daquelas cartas. Fossem cartas de amor, ameaças de morte ou outros crimes por cometer, convocatórias legais, reformas, contas da água e da luz. Sentia a responsabilidade de as transportar e fazê-las chegar ao seu destino, em segurança e no prazo estipulado. Cada carta um mistério, uma missão.
Passavam-me dias ásperos pelos ombros. Enquanto isso, acumulava-se o cansaço de carregar a saca, uma e outra vez. Cinco sacas todos os dias. Doze horas, dez, onze, nunca as oito que me pagavam. E levava sempre cartas para casa, para no dia seguinte inverter o giro. Todos os dias lá estavam aqueles que me chamavam anjinho e gemiam em tom de gozo: quero ir para a baixa. Não havia descanso para o 101. Saía da estação já o Sol ia alto e duro, a saca pesada e áspera.
Amanhã é feriado, não tenho que ir à estação e deram uma baixa de temperatura. Ah! Baixa! A ironia. Amanhã é feriado, vou pegar o 101 pelos cornos e despachar esta saca de uma vez. A ver se chego à estação de saca vazia, leve e suave para variar.
Cheguei ao Alto do Duque ao
nascer-do-sol. Pé ante pé, fui distribuindo as cartas de amor e as contas para
pagar. O Sol está baixo e mole, a cidade respira docemente, está muita gente de
férias lá para os Algarves, felizmente. Missão cumprida! E ainda chego a tempo
de almoçar
enfrentá-lo de chinelos, calções e um sorriso rasgado.
Segunda-feira, dia 18 de Agosto, 36 graus de máxima, 6 da manhã, estação da Junqueira. O corrupio e os mesmos diabos com anjinhos na boca e a baixa nos desejos enquanto eu digo para dentro, como se estivesse em casa: “não lhes passes cartão que eles calarão-se-ão”. O anjinho, orgulhosamente de saca vazia, leve e suave, desfilava até à prateleira do 101, preparado para tudo. E então alguém interrompe aquela marcha decidida. Era o chefe da estação. Anjinho! Vais fazer a dobra, o 115 está de férias.
Tudo o que eu queria ouvir. Mais missões, mais sacadas de envelopes que escondem sabe-se lá o quê, mais asperezas, que me raspavam o ombro enquanto o sol insistia em marcar-me rosto, espreitando do alto com a sua implacável dureza. Era tudo mais. Menos era o sentimento de missão. O corrupio transportava-se da estação para a rua, já passava do meio-dia. Não bastavam as ranhuras confusas do 101, que começavam a ganhar em mim alguma familiaridade. Tinha agora que estar vendado e largado ao sabor das ruas do 115.
Os cruzamentos de Pedrouços,
percorriam-me num crescendo de raiva.
Chegando à praça do café central, um velho cujo nome não me recordo aborda-me com alguma irritação. Oh rapaz, onde é que está a minha reforma? Sem hesitar, respondi: não sei. O João nunca falhava! O Fiado morreu! O que é que eu faço agora?! Tentando manter a calma ao mesmo tempo que esperava conseguir transmitir a compreensão e o respeito que tinha pelo senhor irritado disse-lhe exatamente o que fazer. Dirija-se à estação e faça queixa, de mim, que nem chapa tenho, eles sabem quem sou, aqueles diabos. Dei meia volta, nem mais uma saca, muito menos a dobra e os oito reabastecimentos.
Voltei à estação com meia saca, áspera e mais pesada que nunca. À entrada cruzei-me com um dos que me chamavam anjinho. Olhei para ele com fogo nos olhos e, por dentro, uma vontade enorme de chorar, deixar logo ali a meia saca e esconder me, à espera que alguém me vendasse e me levasse para uma cidade qualquer onde
ninguém soubesse o meu nome ou o
tamanho das minhas falhas. O homem a quem lancei esse olhar flamejante sabia o
meu nome e perguntou-me prontamente: o que se passa, já estás de volta?
Espantei-me, nunca tinha ouvido o meu nome naquela estação. Mas a ira que me
possuiu não me deixou apreciar as palavras que lhe saíram da boca. Olha, sou um
anjinho fraco e não consigo carregar estas sacas! Tu não és fraco. Tens mulher
e filhos? Não. Tens prestações em atraso? Não. Tens algum tempo para procurar
outro trabalho? Penso que sim. Então vai. Nós estamos aqui para pôr comida na
mesa. Tu tens outra vida pela frente, já cumpriste o que te trouxe cá e
acredita que aguentaste mais que muitos. Agora vai. Olhei-o novamente, sem fogo
desta vez. Agradeci, concordando, e fomos em direções opostas. Dois ou três
passos depois, virei-me, movido pela curiosidade. Desculpa! Diz-me uma coisa.
Porque é que vocês estão sempre a falar em ir para a baixa? Preferem a doença
em vez desta podridão que não reconhece o vosso valor? Ah! A baixa. Todos
queremos ir para a baixa. Para a estação da Baixa! Já viste o que andamos aqui?
Na Baixa é tudo
Ainda falta o chefe da Junqueira. Bati à porta. Vinha a limpar os dedos gordurosos e já adivinhava o que estava para acontecer, julgava ele, o desgraçado presunçoso. Venho entregar a meia saca, isto não é para mim. Pois, se calhar você não nasceu para ser carteiro. Pois, se calhar vou-me embora exatamente porque nasci para ser carteiro, para depositar o máximo de mim no mínimo que faço. Se o chefe da estação e fizesse o mesmo, não estávamos nesta situação. Em que os pobres diabos que me chamam anjinho dobram-se e desdobram-se para ganharem apenas para pão, água e pouco mais. Quebrei-lhe o sorriso seboso, assinei o que era preciso e saí. Adeus, Junqueira! Já tinham batido as onze e o sol ia alto, incidia suavemente na minha face e na cidade, com um interesse renovado.
Voltei a casa. Bom, o feijão já está apurado. Vou comer.
Já não te via há muito tempo, Alberto. O crime aconteceu atrás do balcão? A Elsa já não pinta os lábios de vermelho. Já não sorri constantemente. Não era natural.
Ele olhou para mim sem nada perguntar, sabendo que há muito para dizer.
Pronto, vou-te contar. Andei por aí de olhos abertos, graças a ti. Afinal foste tu que me levaste ao curso de fotografia. Levei sempre um bloco e uma caneta e andei por
aí, ciclicamente. A passar cabos nos sonhos dos outros, a fazer quilómetros, a dormir pouco em muitos quartos, fugido na serra, reencontrado na cidade para fazer mais quilómetros e passar mais cabos e repetir-me, Alberto. E no tanto ou tão pouco que fiz houve sempre um sentido de missão, como se ainda tivesse a saca ao ombro e cartas para entregar. Sempre de bloco em riste à espera do crime por cometer. Pronto a registá-lo como cúmplice e não como delator.
E agora? Já encontraste a linearidade das coisas?
Penso que sim. Ah! Não te disse, agora sou agricultor. Vejo coisas a crescer e a florir. Também elas nas minhas mãos e ao meu cuidado. E depois morrem para crescerem outras no seu lugar. Não é assim tão mau, este ciclo. E dou por mim assim, aqui. Um destes dias não falamos mais. Damos lugar a outros Albertos. Deve ser esta a linearidade curva das coisas.
Brindemos então à linearidade curva. Que continuemos a falar de vez em quando até não falarmos mais.
E brindámos, rimos, despedimo-nos uma vez mais do bar e da Elsa, que esboçou um sorriso. Deixámos na mesa as estórias e os crimes todos resolvidos. Até à próxima, se não for antes. Foi o que me disse o Alberto quando ficou na porta de sua casa, a caminho da minha. Vou viver o que já foi, como se nunca deixasse de ser.
Cheguei a casa, pousei as chaves na mesa da entrada onde estava uma pilha de publicidades não endereçadas. No meio dessa pilha, houve uma que me despertou a atenção. Lia-se na brochura: “Get the latest news about using words”.
Movido pelo sentimento de que a vida começa depois das cinco, mesmo sabendo que já tinham batido as onze da noite, sentei-me, abri as gavetas onde guardei todos os blocos de bolso que carreguei ao longo do tempo e comecei a escrever.
“Get the latest news about using words”.
Capítulo I. Quem me dera ser linear Alberto. Nascer, crescer, andar, brincar, crescer mais um pouco, pouco a pouco e depois, de repente, fornicar por prazer, duvidar e não querer nada, muito menos crescer. E dei por mim assim, aqui, Alberto
LER: A RECEITA DE SÁBADO -- Pedro Motta -- contos
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