terça-feira, 29 de abril de 2025

Portugal Apagado | SE FOI UM ENSAIO, FALHÁMOS

Fernanda Câncio à luz da vela

Fernanda Câncio | Diário de Notícias, opinião

Com a primeira mensagem da Proteção Civil a chegar às 21:25, quando finalmente, ao fim de 10 horas, a energia começava a voltar, a experiência deste apagão radical demonstrou que não estamos, de todo, preparados. O quanto todo o nosso sistema está assente na ideia de que nada vai acontecer aqui, de que nada nos chegará, de que tudo o que temos teremos sempre.

Tenho memórias, muitas, de “faltar a luz”. Todos temos: volta e meia há um poste que vai abaixo, uma cegonha eletrocutada, uma interrupção de horas por um acidente ou incidente qualquer. Porém houve um tempo, há poucas décadas, em que, se não se vivesse ou trabalhasse num andar muito alto e não estivéssemos num elevador no momento errado, era uma questão de passar sem TV e, sendo noite, acender velas — boas memórias, as de jantares à luz das velas, tão boas que quando a luz de súbito voltava se sentia uma perda: então, acabou a aventura?

Mas hoje, quando todos os telefones são sem fios, quando todas as comunicações são digitais e necessitam de, algures, uma fonte de energia para os servidores, para as antenas? Hoje quando precisamos de estar sempre a vigiar e alimentar a bateria dos nossos dispositivos, para não perdermos a ligação, para não nos perdermos uns dos outros?  

Hoje quando, malgrado os avisos da Proteção Civil e da Comissão Europeia, grande parte de nós ainda não tem sequer um rádio a pilhas para se manter a par das notícias, de ordens, de alertas?

Hoje quando tantos têm casas inteiramente alimentadas a eletricidade, cafeteiras elétricas, microondas, placas de indução, termo-acumuladores, onde nem um bico de fogão a gás há para aquecer uma sopa ou fazer uns ovos mexidos e se não há energia não dá — óbvio — para chamar comida pelas aplicações? 

Como poderão teletrabalhar os que estão em teletrabalho, se tudo ou quase tudo for abaixo, e se a dada altura as baterias vão morrer? Aliás: como trabalharão a maioria das empresas, se não tiverem geradores autónomos?

Sem energia, um computador — esse objeto no qual dependemos hoje para quase tudo — é apenas uma coisa inerte, inútil. Sem computadores, como fazer um jornal, por exemplo? Onde escrever um artigo? Sem telefones nem mensagens nem mails, como fazer perguntas e obter respostas? Como sequer saber o que se passa?

Para não falar dos transportes, claro — metros parados, autocarros e carros elétricos sem possibilidade de carga, comboios e aeroportos "sem sistema", semáforos kaput.

Estamos muito para além da desgraça que é perder tudo o que está no congelador: uns dias assim e pára quase tudo. Uns dias assim e percebemos o quanto vivemos na absoluta ilusão de uma paz eterna, onde só aos outros sucede ter de fugir apenas com uma mochila, filhos, cães e gatos nos braços, viver num inverno de menos 20 graus sem eletricidade nem água ou em tendas, sem comida, a fugir do próximo bombardeamento.

Nesta incerteza e estranheza, nesta angústia de — pequena — catástrofe (da qual, na verdade, não conseguimos aquilatar a grandeza por não lhe sabermos a duração e origem), de cheirinho de fim do nosso tão confortável mundo, reconhecemos o regresso dos sentimentos do confinamento pandémico. Só que agora ao contrário: se então, em 2020/2021, estávamos restritos às nossas casas e aos nossos dispositivos digitais como meio de acesso aos outros e ao mundo, fisicamente isolados mas seguros (ou só assim seguros, porque isolados), num apagão energético de tantas horas e de tal magnitude apenas na rua podemos comunicar ou, numa aflição, contar com os outros.  

E é uma grande aflição, precisamente, ser assim, porque há os idosos que vivem sós e com quem não conseguimos falar, ou com quem só dá para trocar mensagens entrecortadas pelas longas falhas da rede, as pessoas que podem precisar de ajuda e que não terão como pedi-la.

Foi das primeiras coisas a estremecer-nos nesta segunda-feira: como chamarão o 112 os que precisarem dele? Não que as linhas do 112 não estivessem a funcionar (têm de estar, não podem depender dos sistemas “comuns”), mas de que telefones se pode ligar quando as operadoras ficam em baixo, quando nem por WhatsApp ou semelhante se consegue falar? Aliás, com as novas regras, que impõem que se ligue para a linha Saúde24 antes de ir para uma urgência, como se faz se não se puder telefonar?

Suponho que não haja para isso, assim do pé para a mão, como não houve nesta segunda-feira para tantas outras coisas, solução. Saberemos mais tarde, quando pudermos fazer perguntas e obter respostas, como foi. Como correu esta espécie de ensaio — e o quanto falhámos, o quanto todo o nosso sistema está assente na ideia de que nada vai acontecer aqui, de que nada nos chegará, de que tudo o que temos teremos sempre.

Algures nesta tarde, vi no Twitter que o primeiro-ministro apelava à calma e assumia que a origem do problema não esteve em Portugal mas que não se sabia qual era. Não sei que mais disse porque não consegui abrir a notícia (não conseguia abrir qualquer notícia). Mas pergunto-me se, numa situação como esta, não faria sentido que se pensasse em fazer chegar -- analogicamente, sim -- a informação às pessoas, uma vez que estas podem não conseguir aceder a ela. 

Certo é que houve muita calma: na rua, na zona onde vivo — o centro de Lisboa, sempre em enchente de tuk-tuks e turistas — fez-se, apesar da temperatura de verão, quase silêncio a partir das sete da tarde, como se a cidade se tivesse esvaziado. Às 20:45, ouviram-se gritos e aplausos: no castelo de São Jorge, ligou-se uma luz, e as janelas foram-se acendendo; começaram a soar alarmes. Às 21.25, chegou a primeira (a primeira!) mensagem do dia da Proteção Civil, a advertir para o facto de a ligação de energia estar a ser gradual: “Com a serenidade de todos garantiremos os serviços essenciais e a normalização da situação nas próximas horas”. 

Foi mesmo a tempo para o jantar. Pudemos  ligar os interruptores, carregar os telefones, ligar a quem não conseguimos contactar todo o dia, respirar fundo: acabou. Talvez, com sorte, não volte a acontecer. Talvez, com sorte, se voltar tenhamos entretanto aprendido alguma coisa. 

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