MARTINHO JÚNIOR
SÍRIA E BAHREIN
Na Rapidinha nº 7 que aproveitava o casamento real britânico para alertar “O renascimento das castas e das monarquias do império” colocou isto:
“E falar do que ocorre na Siria nem pensar. Estranho.”
Suponho nas curtas observações que esse comentador anónimo fez que há motivações próprias, que o levaram talvez a pensar que eu, no mínimo estivesse a fugir ao tema, ou não fugindo, que eu me identificasse talvez com o regime sírio…
O que me parece desde logo é o seguinte:
1 – É muito difícil encontrar ética e moral que possa sustentar sem beliscadura a longevidade dum regime, salvo excepções muito raras, como acontece, conforme minha opinião no caso exponencial da heróica Revolução Cubana, onde não houve uma simples “mudança de moscas” (e por isso continua a ser Revolução 50 anos depois do seu início).
2 – Tanto mais difícil recorrer a argumento de sustentação, quando esse regime se tornou autoritário ditatorial e actua de forma violenta, sangrenta, em relação a centenas, senão milhares de elementos de seu próprio Povo.
Com isso quero dizer que o regime sírio se enquadra nessa perspectiva, num momento em que sucessivas revoltas populares têm vindo a abalar o Médio Oriente e o Norte de África, por que não teve a criatividade suficiente para se renovar, preparar-se de forma suficiente entre outras coisas para a “batalha das ideias” com vista a optar pelas melhores causas, nem encontrar soluções que conduzissem à procura de mais liberdade, mais democracia, mais educação e mais sustentabilidade em termos de desenvolvimento para o seu Povo.
Parece-me todavia ser justo chamar a atenção para alguns dos fenómenos intrínsecos às revoltas, revoltas que têm integrado instrumentos das potências em subtis processos de ingerência por vezes recorrendo até a terceiras bandeiras, onde se têm registado significativas participações de grupos interconectados até aos serviços de inteligência de potências como os Estados Unidos, a potência hegemónica que de há muito deixou de ser paradigma de democracia!
As revoltas árabes estão em sequência das “revoluções coloridas” e ainda têm muito que ver com elas, com os métodos empregues, com o tipo de mensagens para agitação e propaganda, com as orientações das mobilizações vocacionadas sobretudo para a juventude, com as tecnologias usadas de forma massiva e “espontânea” (como se essas tecnologias não tivessem de se interconectar a satélites que não são controlados pelas áreas e países alvo), com as mais diversas fórmulas psico-sociais a que recorre, até chegar ao “produto acabado” dilecto típico do “bazar” (para não utilizar o vulgar mercado) político da região: a mudança do poder.
A Síria optou pela repressão sangrenta o que é condenável, mas o fenómeno das revoltas ao não terem atingido somente a Síria, merece melhor atenção.
Por isso eu recorro comparativamente ao exemplo da revolta que ocorreu no Bahrein, um pequeno estado monárquico insular junto à costa da Arábia Saudita, no Golfo Pérsico, onde também se registaram repressões sangrentas, na ordem de pelo menos algumas dezenas de vítimas, a fim de melhor expor meu argumento.
Na Síria foram as Forças Armadas que dispararam (provavelmente vão continuar a disparar) sobre largos milhares de manifestantes em pelo menos uma cidade do sul do país.
No Bahrein, foi a Polícia Nacional reforçada com efectivos estrangeiros provenientes sobretudo da própria Arábia Saudita que o fizeram, destruindo inclusive o símbolo da Praça Pérola onde se registaram as manifestações.
Entre os dois países existe uma contradição:
Por um lado aquele sobrevive por que alinha com as ingerências norte americanas não necessariamente democráticas (no Bahrein foi para defender uma monarquia tão fantoche quanto é a desse pequeno país, um país onde não é por acaso que está instalada uma das principais bases navais norte americanas no Golfo Pérsico)…
Por outro aquele, a Síria que se tem oposto ao regime promotor de “apartheid” como o é o de Israel, a potência atómica do Médio Oriente, bem como em maior ou menor grau às ingerências do império e alinha no espectro de influência do Irão, mesmo que seus respectivos regimes tenham pouco em comum…
Perante os fenómenos sangrentos de repressão, em função do carácter dos dois regimes, assim foi seguida a pauta das ingerências norte americanas e de seus aliados:
No Bahrein a repressão não mereceu condenações internacionais massivamente mediatizadas por parte das potências ocidentais e das monarquias árabes, dando-se oportunidade, evidência e atenção ao argumento do regime monárquico.
Em relação à Síria, as condenações tornaram-se massivamente mediatizadas e sem conceder brechas em benefício dos argumentos do regime.
No primeiro caso vai-se tornando cada vez mais evidente que aquele meu argumento de “Salvar os Reis” é indispensável ao império para “salvar o petróleo”, garantindo com isso que não haja contrariedade para Israel!
No segundo caso, num país onde não há monarquia, o ideal para o império é o derrube desse regime, substituindo-o por um alinhamento de conveniência, que sobretudo se torne mais dócil para com Israel e o império!
Do lado do império parece-me bem visível e presente a lógica de suas manipulações, “defensivas” em relação ao Bahrein e “ofensivas” em relação ao regime sírio.
A lógica da monarquia do Bahrein está perfeitamente enquadrada, é dócil, pelo que há que garantir a todo o transe a manutenção do regime, ainda que com algumas possíveis pequenas concessões e a do regime sírio completamente desenquadrada, tornando-se hostil, o que coloca a Síria numa escalada que poderá seguir a trilha duma contradição antagónica, até a mais uma guerra.
Nos dois casos houve repressão sobre elementos do seu próprio Povo, mas as manipulações do império e a motivação de suas opções e escolhas, defendem uns, condenando outros, dando “coloridos” distintos às ingerências que existem em ambos os casos (“dois pesos e duas medidas”), manipulando sempre.
Perante uma situação como esta resta o seguinte: é evidente que acima das condenações aos regimes do Bahrein e da Síria, está a condenação que se deve fazer ao império e seus aliados, que actuam da forma como actuam tão longe de sua soberana geografia.
Para defender as monarquias arábicas não democráticas e a manutenção da base naval da Navy no Bahrein, ainda bem que houve repressão, mas na Síria a repressão é um acto condenável e “um atentado às liberdades democráticas”…
Assim sendo a repressão do regime sírio, corresponde enquanto resposta aos mesmos métodos empregues pelo império e seus aliados noutras paragens do mundo, onde quer que seus interesses tenham gerado contradição: o regime segue a mesma cartilha, mas com sinal contrário e em resposta a ingerências.
O regime sírio bebeu dos mesmos argumentos e métodos, não inovou, mas é condenado apenas por que de sinal contrário.
Conforme Maquiavel: os fins justificam os meios.
Martinho Júnior
L’opposition syrienne financée par Bush mais aussi par Obama
Malgré toutes les dénégations, les documents sont têtus : le département d’État n’a pas cessé de financer l’opposition syrienne. Par conséquent, il ne peut pas prétendre tout ignorer de l’actuelle campagne de déstabilisation de la Syrie.
Le Département d’État des USA a financé secrètement des groupes de l’opposition syrienne pour renverser Assad, et leurs projets parmi lesquels la télévision satellitaire Barada basée à Londres, selon des documents diffusés par Wikileaks et publiés hier par le Washington Post [1].
La télévision Barada, qui prend le nom du fleuve qui traverse la capitale Damas, est liée au réseau d’exilés syriens basé à Londres, le « Mouvement pour la justice et le développement » : selon les dossiers des diplomates étasuniens à Damas et l’article du quotidien, le département d’État étasunien leur a versé depuis 2006 jusqu’à 6 millions de dollars pour, justement, mettre en œuvre la télévision satellitaire, mais aussi pour financer d’autres activités en Syrie. Le flux d’argent a commencé sous la présidence de George W. Bush, après que, pendant son administration, les USA eurent, en 2005, gelé les rapports avec la Syrie et mis le pays sur liste noire à cause de son soutien au Hezbollah libanais. Jusqu’ici rien d’étrange : il est logique que Bush et sa bande de neo-cons fussent tentés aussi par un « changement de régime » à Damas, comme pour l’Afghanistan et l’Irak. Ce qui peut se révéler plus surprenant est, si l’on s’en tient aux câbles diplomatiques et au Washington Post, que le soutien financier aux groupes d’opposition syriens ait continué même après l’installation d’Obama à la Maison-Blanche (janvier 2009) : ceci alors que la nouvelle administration était en train de tenter de rétablir des rapports avec Damas, au point qu’en janvier dernier les USA aient décidé de renvoyer un ambassadeur en Syrie, le premier en six ans.
Selon les documents diffusés par le site de Julian Assange, les fonctionnaires de l’ambassade étasunienne à Damas commencèrent à s’inquiéter en 2009 après avoir appris que des agents de renseignement syriens avaient subodoré quelque chose et étaient en train de poser quelques questions sur les programmes étasuniens ; et que certains de ces fonctionnaires mêmes allèrent jusqu’à suggérer au département d’État de reconsidérer son implication en indiquant qu’elle pouvait mettre en danger les tentatives de rapprochement lancées par Obama.
Le Washington Post précise avoir choisi de ne pas publier de détails sur les noms et programmes à la demande du département d’État, pour éviter de mettre en danger des personnalités de l’opposition.
Frente-a-frente tenso no Bahrein
Alain Gresh; 1 de Março de 2011
Foi no dia 14 de Fevereiro que decorreu no Bahrein a primeira manifestação contra a dinastia reinante e que tombou a primeira vítima; no dia seguinte, durante o seu funeral, um outro jovem foi morto. Num gesto espectacular, o rei apresentou então as suas desculpas pelos mortos e os opositores ocuparam pacificamente a praça Pérola. Na manhã de 17 de Fevereiro, o exército atacou, matando cinco pessoas, algumas das quais foram assassinadas enquanto dormiam, debaixo da tenda. No dia seguinte, o exército retirou-se, uma vez mais, das ruas e, desde então, instaurou-se uma paz precária, apesar de as manifestações continuarem sem interrupções. A história singular deste arquipélago de algumas dezenas de ilhas situado no Golfo Pérsico, a sua proximidade com a Arábia Saudita e a presença do quartel-general da 5.ª Esquadra norte-americana explicam tanto a forte politização da população como os vaivéns da monarquia e as incertezas que se mantêm.
Este país, cuja população é maioritariamente xiita — ao contrário da família reinante (Al-Khalifa), que é sunita — foi marcado pelos dois séculos de dominação persa que antecederam a colonização britânica. Teerão quis, aliás, anexar o Bahrein quando Londres renunciou, em 1968, ao seu protectorado. No entanto, a consulta organizada em 1970, sob o controlo da Organização das Nações Unidas (ONU), resultou na independência do país, proclamada em Agosto de 1971. A vida no Bahrein foi marcada por uma agitação política crónica e pela presença de forças de oposição, de esquerda radical e islamita influentes. A dissolução, em 1975, da assembleia eleita dois anos antes – então sinal de uma democratização balbuciante – e a descoberta de uma “conspiração iraniana” em 1981, seguida de uma tentativa de golpe de Estado em 1985, reforçaram o carácter repressivo do regime.
Mas a oposição, cada vez mais dominada pelos islamitas xiitas (após a revolução iraniana de 1979), não desarmou, encorajada pelas dificuldades económicas, nomeadamente o desemprego, muito elevado entre os xiitas, e pelas discriminações.
Com efeito, a oposição reclamou o regresso à Constituição de 1973, tendo milhares de cidadãos assinado, em Outubro de 1994, uma petição nesse sentido. No mês seguinte rebentou uma verdadeira intifada, que se prolongará durante vários anos. Durante a revolta, dezenas de pessoas foram mortas, centenas foram presas; a tortura tornou-se uma prática comum.
Em 1999, a chegada ao poder do novo emir, o xeque Hamad Bin Isa Al-Khalifa, que sucede ao pai por sua morte, permite uma certa abertura democrática: os opositores são libertados, os exilados regressam ao emirado, a igualdade entre os cidadãos é reconhecida, as leis de excepção são abolidas e a liberdade de expressão é restaurada.
Uma nova Carta nacional, aprovada em referendo em Fevereiro de 2001, confirma a reconciliação nacional, mas esta não perdurará.
Em Fevereiro de 2002, o emir proclama-se rei. Promulga, sem consulta, uma Constituição que institui uma Assembleia Nacional bicameral, para a qual quarenta membros são realmente eleitos, enquanto quarenta outros são designados pelo rei. Esse “golpe de Estado constitucional” é acompanhado por uma série de decretos reais que limitam o jogo político. Os principais movimentos da oposição (o Al-Wefaq e o Al-Waad, de esquerda) boicotam as eleições legislativas de Outubro de 2002 nas quais as mulheres são, pela primeira vez, autorizadas a votar. Acaba por ser encontrado um compromisso e a oposição aceita participar no escrutínio de 2 de Dezembro de 2006.
No mesmo momento rebenta um escândalo [1]: documentos divulgados por um funcionário público britânico de origem sudanesa revelam que o governo está a conceder a nacionalidade a cidadãos paquistaneses ou árabes desde que sejam sunitas e que, por outro lado, está a financiar directamente jornalistas e candidatos que lhe são favoráveis. Os resultados do escrutínio de 2006 confirmaram a influência do partido islamita xiita Al-Wefaq, que consegue 17 lugares em 40. Mas a coexistência revela-se difícil e o governo não tem em conta as reivindicações da oposição. O protesto regressa às ruas em 2010 e as eleições, apesar de terem tido lugar no mês de Novembro com a participação do Al-Wefaq (18 lugares), foram boicotadas por um movimento mais radical relativamente ao poder, o Al-Haq, e pelas organizações de defesa dos direitos humanos que procuram ultrapassar a clivagem entre sunitas e xiitas [2]. O descontentamento aumentou, provocando as manifestações de 14 de Fevereiro, a repressão e, a seguir, o frente-a-frente que se prolonga até hoje.
Os protagonistas são, antes de mais, as organizações nacionais. Face à mobilização, vista por uma parte da população como xiita ou até manipulada pelo Irão, as forças favoráveis à monarquia manifestaram-se em massa, reunindo dezenas de milhares de partidários, na maioria dos casos assente numa base confessional. Contudo, é de salientar que nas últimas eleições se assistiu a um recuo dos islamitas sunitas, nomeadamente dos Irmãos Muçulmanos.
O Al-Wefaq uniu-se ao movimento de protesto e os seus deputados decidiram abandonar a Assembleia Nacional. As primeiras vitórias foram a libertação pelas autoridades de todos os prisioneiros políticos e a concessão de amnistia a Hassan Mushaimaa, um dirigente do movimento Al-Haq que pôde voltar do exílio [3]. Mas essas vitórias puseram também à vista as divergências entre os que reclamam a abolição pura e simples da monarquia e os que defendem uma monarquia constitucional, temendo estes últimos que reivindicações mais radicais levem a um confronto entre sunitas e xiitas.
Quanto à família real, parece estar dividida e dificilmente poderá aceitar a própria ideia de uma monarquia constitucional. Após ter tentado comprar a população, oferecendo o equivalente de 2650 dólares a cada família, e ter tentado a repressão, as suas opções são agora limitadas. O rei e o príncipe herdeiro são favoráveis ao diálogo com as oposições, enquanto o primeiro-ministro, que ocupa o cargo há mais de quarenta anos, defende uma linha mais dura [4].
Os acontecimentos não podem deixar indiferente a Arábia Saudita, que sempre considerou a estabilidade do Bahrein como sendo parte da sua segurança nacional. Tanto mais quanto este pequeno reinado confina com a sua província oriental, maioritariamente xiita e onde estão concentradas as riquezas petrolíferas. Os Saud poderão intervir directamente, caso seja necessário, utilizando a ponte de 20 quilómetros de comprimento que une a ilha ao reino. Aliás, quando a ponte foi inaugurada, em 1986, todos os observadores destacaram a sua dimensão militar.
Para juntar às contradições, o Bahrein acolhe o quartel-general da 5.º esquadra americana, tendo Washington decidido lá investir quinhentos milhões de dólares — daí as declarações confusas da Casa Branca face à repressão. A 25 de Fevereiro, o chefe de estado-maior americano, o almirante Mike Mullen, declarou em visita ao Bahrein que o país era um aliado crucial (critical long-time ally). E o presidente Barack Obama usou toda a sua influência para apoiar o desejo do rei de iniciar reformas.
É de realçar a cobertura bastante “matizada” das manifestações pela Al-Jazira, que teve um papel decisivo na repercussão das revoltas egípcia e tunisina e que transmite os acontecimentos da Líbia sem esconder o seu apoio à oposição ao coronel Kadhafi: o emir do Qatar, patrocinador do canal, não quer irritar os seus vizinhos sauditas, com quem acabou de se reconciliar.
*Retirado de Le Monde diplomatique – edição portuguesa.
[1] Alain Gresh, “Bandargate” et tensions confessionnelles, Le Monde diplomatique: Nouvelles d’Orient, 19 de Outubro de 2006.
[2] Cortni Kerr e Toby C. Jones, A Revolution Paused in Bahrain, Middle East Report on line — Merip, 23 de Fevereiro.
[3] Bahrain Unrest: Shia Dissident Hassan Mushaima Returns, BBC News, 26 de Fevereiro.
[4] Olivier Da Lage, Bahreïn: dissensions chez les Al Khalifa?, 20 de Fevereiro de 2011.
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