sexta-feira, 24 de junho de 2011

“KUPAPATA” A PAZ




MARTINHO JÚNIOR 

Há ainda muitas coisas em Angola em que se anda a “apalpar”.

“Apalpar” a Paz é próprio daqueles que afinal tão pouca experiência governativa têm, é próprio das instituições, especialmente as recentemente formadas, é próprio de todos nós, cidadãos deste país, seres individuais, comunidades e sociedade, por que temos muitos mais anos de conflitos, tensões, guerras, sacrifícios e privações, do que deste êxtase de ausência de tiros de que de há 9 anos a esta parte se tem vindo a desfrutar.

“Kupapata” a Paz, é o que todos nós andamos a fazer, por que, socorrendo-nos do léxico da língua nacional umbundo, precisamos de, com sentido de humor e alegria, mesmo que tanto esteja por fazer, mesmo que nossas concepções sejam tão díspares, precisamos de ter com as mãos e de olhos fechados, a percepção do que nos está a acontecer num quase “estado de graça” nacional.

“Kupapata” é de facto um termo que pode ser empregue de forma difusa, mas que se tornou mais vulgar com os motociclistas que fazem de táxi nas regiões em que mais se fala o umbundo: Benguela, Huambo, Bié...

Para utilizar o meio, os clientes agarram-se ao motociclista e, quer queiram quer não, apalpam-no!...

Julgo que será um termo que se imporá à língua portuguesa, por que o motociclista-táxi tornou-se indissociável dos primeiros anos após as guerras em Angola e é sem dúvida um curioso elemento de estudo com valor sociológico, psicológico e antropológico duma “nova era” em que se procura viver, mas sobretudo, sobreviver.

Há já uma tese dum estudante de ensino superior sobre o fenómeno “kupapata” com mutilados de guerra numa cidade como a do Lobito…

Muitos interrogam e se interrogam se a paz em Angola veio para ficar.

Sou daqueles que fundamenta que em Angola se assiste de facto a uma ausência de tiros em todo o espaço nacional, mas que, em função dos ideários do movimento de libertação, se está muito longe da paz social, feita com justiça, solidariedade, democracia cidadã e participativa.

Está-se tão longe quanto a lógica capitalista tem promovido a “democracia representativa” sujeita à valorização do economicamente mais forte, tirando partido dos “mercados” com essência neo liberal que se vêm impondo a partir do exterior, quantas vezes chocando com os interesses do povo angolano e os interesses nacionais.

O foço das desigualdades bebe das razões causais dessa lógica e nunca será com paliativos e caridades que será possível corrigi-lo.

Em muitos aspectos também o socialismo democrático tem sido insuficiente para encontrar um quadro alternativo sustentável para as grandes decisões de carácter sociológico e político que há ainda que tomar.

Por isso, nesta ausência de tiros, vamos fazendo “kupapata” com a Paz, tacteando-a, “apalpando-a”, para tentar perceber até que ponto ela existe, com todas os desregramentos e as insuficiências que temos.

Acabei de fazer uma incursão de uma semana ao planalto central tendo visitado as cidades do Cuito e do Huambo.

De entre as múltiplas impressões das terras dos planaltos, que incluem estradas e pequenas povoações no percurso, dei-me conta do valor social dos motociclistas “kupapata”, que pelo menos em tempo de cacimbo podem chegar às aldeias mais escondidas do planalto, normalmente aquelas com picadas de mais difícil piso.

Os “kupapatas” são sobretudo elementos que pertencem às classes média-baixa da sociedade angolana, à pequena burguesia que se instalou nos subúrbios das grandes cidades, àqueles que em áreas rurais são capazes de propiciar pequeno serviços em termos de transporte e comunicação…

Os “kupapata” enquanto elementos de “baixa renda”, tornaram-se extremamente versáteis nos seus serviços, tanto em áreas urbanas como nas rurais.

Eles transportam todo o tipo de gente e até de cargas, neste caso na versão triciclo da motorizada: o estudante que vai para a escola, o funcionário público que quer chegar a horas ao seu posto de trabalho, a quitandeira que vai para o mercado, a dona de casa que foi comprar gás, o mais velho que foi visitar um “camba” dos antigos, o camponês que traz o fruto do seu trabalho da sua lavra, até o doente que tem de ir ao hospital…

Em tempo de cacimbo, com temperaturas baixas no planalto, “kupapata” que se preze circula com casaco de cabedal e de óculos, para enfrentar ventos frios.

Para muitos, em muitas profissões relacionadas com sua formação recente, não há possibilidade de trabalho, mas os encargos obrigam a tentar dar a volta por cima, de acordo com responsabilidades individuais e perante as famílias em que se integram.

Os “kupapata” são quase sempre jovens e pessoas de meia idade, muitos deles provenientes das forças armadas dos antigos beligerantes, alguns são mesmo indivíduos que perderam capacidades físicas por causa da guerra…

As instituições do Estado, os Partidos, as comunidades, sentem que o “kupapata” é um novo elemento que só surgiu em função da ausência de tiros em todas as estradas do país, principalmente nas regiões mais povoadas e com habitat mais disperso: é um produto dos nove anos que se sucederam ao Entendimento de Luena.

Por isso o “kupapata” é alvo de atenções.

É também um elemento de contraste: se em Luanda é facilmente verificável a deslocação de pessoas das classes mais abastadas a percorrerem as vias principais em seus veículos privados, incluindo carros de luxo, potentes 4x4, quantas vezes sem acompanhante, o que provoca engarrafamentos monstruosos próprios da densidade do egoísmo, o “kupapata” é responsável, como elemento das classes menos abastadas, pelo preço acessível que pratica, pela fluidez dos percursos e trajectos que percorre, pela fluidez do tráfego como as cidades do planalto, o Cuito e o Huambo, pela deslocação de milhares, milhares e milhares de cidadãos em sua azáfama quotidiana…

No Cuito e no Huambo há poucos táxis “candongueiros”, pelo que os “kupapata” são os mais populares meios de aluguer entre todos.

No Huambo é mesmo um forte elemento psicológico: tem preferência de todos em contraste com os transportes colectivos, os autocarros da empresa BACATRAL que circulam vazios no espaço urbano, sem melhor solução!

Os clientes dizem que a grande vantagem é que os “kupapata” conseguem prestar serviços porta a porta e os autocarros têm trajectos fixos, sem poder entrar nos caminhos tortuosos dos bairros.

Os enredos conseguidos em Angola na ligação à China vieram facilitar a gestação e crescimento da figura do “kupapata”: a maioria das motorizadas são de origem asiática e, pelo menos nas lojas chinesas do Cuito, os modelos mais modestos custam cerca do equivalente a mil dólares em moeda nacional Kwanza.

As lojas chinesas no Cuito e no Huambo vendem a preços fora de concorrência motorizadas, geradores, vestuário, mobiliário, quinquilharias de toda a ordem…

A China não é só responsável por alguns dos principais projectos do país em parte a troco de petróleo, está também intimamente associada às possibilidades das classes menos favorecidas do tecido social angolano e a profissões mais diversas que vão desde os vendedores ambulantes, aos “kupapata”.

Está-se em época de transição: se hoje há uma proliferação tão grande de gente que desse modo trata da sua sobrevivência e da dos seus, está por canalizar para os sectores produtivos que se poderão disseminar em toda Angola pelo menos uma parte substancial daqueles que fazem uso desse tipo de expedientes de recurso à espera de melhores dias.

A dignidade é um processo em construção, mas para que ela seja erigida com a maior responsabilidade, é preciso que ela ganhe espaço ao foço das desigualdades “que estamos com ele”!

Os “kupapata”, passe-se a redundância, são um símbolo humano da paz que nos é palpável e possível, enquanto não se alcança aquela Paz que é preciso reter com sustentabilidade em benefício de todo o povo angolano, de todos os povos de África e do Mundo!

Martinho Júnior - 23 de Junho de 2011.

Foto: Vários “kupapata”-ambulância defronte ao Hospital Central do Bié, na cidade do Cuito; a foto foi tirada na manhã de 14 de Junho de 2011.

Sem comentários:

Mais lidas da semana