RODOLPHO MOTTA LIMA* – DIRETO DA REDAÇÃO
Eu pretendia, nesta semana, mudar de assunto, fugindo às coisas do ensino e da Educação. Afinal, no mundo e no país, há muitos acontecimentos que são um convite à opinião e ao debate. Motivado, porém, pelos recentes dados disponibilizados pelo ENEM, continuo no tema.
Disraeli, primeiro-ministro britânico na segunda metade do século XIX, disse, certa vez, que "há três espécies de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas". Lembrei-me disso a propósito do tratamento que se está dando aos referidos dados, em função de diferentes pontos de vista e interesses. Por um lado , o Governo, sem deixar de reconhecer os problemas da área, destaca a pequena melhoria que os números traduzem e assevera que se encontram dentro das metas previstas no Plano Nacional de Educação (PNE). Por outro lado, a grande mídia – como sempre, destituída da isenção que a deveria caracterizar – aproveita os resultados para dele retirar apenas as ilações negativas, sempre com os objetivos nada disfarçados de demonizar o Governo e suas ações.
Penso que a oposição midiática, no afã de construir suas críticas, deliberadamente mistura laranjas e bananas ao promover comparações inadequadas e manipula os números “selecionando” o que convém aos seus propósitos. Bem ao gosto de Disraeli. Apesar disso, deve-se reconhecer que o que foi divulgado pelo MEC – com transparência, diga-se, digna de aplausos – traduz, no geral, uma indesejável realidade, que nos permite aferir a quantas anda o ensino entre nós, particularmente o ensino médio, de que tratam os dados do ENEM.
Ao considerar auspiciosa o que define como pequena melhora, o MEC justifica-se argumentando que, em Educação, nada se constrói da noite para o dia. Isso é certo, e devemos reconhecer que os governos do PT têm- se mostrado preocupados com a área, o que se percebe em diversos sinais: a criação expressiva de escolas técnicas, o aumento do número de Universidades federais, o projeto de disseminação de creches, as possibilidades abertas pelo Pro-Uni , o fortalecimento e crescimento do próprio ENEM e tantas outra medidas que merecem aplausos. Mas não é menos correto afirmar-se que, em um país como o nosso, que ainda convive com gritantes desníveis sociais, a educação é como a fome: não pode esperar.
É claro – e os opositores convenientemente se esquecem disso – que o processo de debilidade do nosso sistema educacional não é responsabilidade dos últimos governos (é interessante como se mencionam sempre, na estatística, os “últimos nove anos”), mas vem sendo urdido paulatinamente, insidiosamente, com o beneplácito das elites nacionais. A classe média, devidamente cooptada, a partir do momento em que conseguiu matricular seus filhos na escola particular, desinteressou-se pelos destinos da escola pública (como fez com a saúde pública). Sem reações consistentes, o ensino público, voltado só para as camadas populares, foi entregue à sua própria sorte por governos ideologicamente comprometidos com interesses contrários aos do povo. A tese do estado mínimo, tão cara aos privilegiados, tomou conta também do campo da educação.
Houve, é claro, aqui e ali, dignas exceções. Leonel Brizola, por exemplo – amparado na teoria e na prática por Darcy Ribeiro – tentou encaminhar uma solução: os CIEPs , com sua filosofia de inserção, seu regime de tempo integral, seu compromisso absoluto com as necessidades várias das crianças socialmente excluídas. Mas a visão tacanha de alguns – com forte participação, então, da classe média – considerou absurdo o investimento que se fazia e dinamitou a idéia de colégios de excelência para o povo. Fruto de posturas egoístas que se multiplicaram, o que mais se ouvia, então, era que não tinham sentido aqueles gastos em poucos colégios, quando se podia construir uma quantidade bem maior com o mesmo dispêndio. Mas quem argumentava assim sabia muito bem da importância da Educação de qualidade e punha seus filhos em excelentes colégios particulares, pagando caríssimo por isso...
O resultado está aí, acentuado ao longo do tempo, com a abismal distância que os números do ENEM revelam. E embora, hoje, se percebam algumas melhorias no panorama, a verdade é que a escola pública não cumpre a sua missão democrática de propiciar a redenção dos desfavorecidos, inibindo a continuidade efetiva no campo intelectual e limitando as oportunidades no campo do trabalho. Cristalizando as diferenças, a nossa escola pública, com as exceções de praxe que apenas confirmam a regra (Pedro II, colégios militares, escolas técnicas, CAPs), acaba por constituir-se um antidemocrático instrumento a serviço da exclusão, matando no nascedouro as vocações e as possibilidades dos menos favorecidos.
O ENEM pôs à mostra uma face do nosso problema educacional. Os dados divulgados, antes de servirem de base a oposicionismos inconsistentes e hipócritas de quem nunca atuou nem pretende atuar no sentido de corrigir as distorções, devem ser um convite para que as autênticas forças sociais se unam para enfrentar e vencer os obstáculos. Temos um Governo que se mostra interessado e algo me diz que o recente surgimento de uma nova classe média – recém-egressa da pobreza e, por isso, diferente daquela que dormiu e ainda dorme no berço esplêndido de seus privilégios – pode vir a ser decisivo para a mudança de rumos que se impõe. E não apenas para , no final, modificar rankings nem sempre confiáveis, mas para reivindicar e impor uma outra visão educacional que privilegie os valores da cidadania.
Como tentei mostrar em textos anteriores, há muito a fazer na Educação, além de aferir conhecimentos específicos desta ou daquela disciplina. Sabemos que investimentos estão sendo feitos, metas estão sendo alcançadas, mas o que há a fazer passa por ações efetivas de diversos atores que, na sociedade, além do Governo, devem estabelecer compromissos com a Educação. Famílias, colégios e comunidades organizadas devem interagir no sentido de que se processe, de forma decisiva, o pagamento dessa imensa dívida social acumulada por força de um criminoso descaso de décadas.
*Advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
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