sábado, 26 de novembro de 2011

A DEMOCRACIA AINDA EXISTE?




ANTÓNIO PEDRO DORES – O LIBERAL, opinião, em Colunistas

Há que distinguir o que são movimentos democráticos dos contributos de outros movimentos sociais para as concepções da democracia.

Os movimentos democráticos são cíclicos, o que levou os filósofos modernistas a afirmarem, com grande sucesso universal, a tendência da natureza humana para a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Outros filósofos, cépticos relativamente à democracia, verificam como tais movimentos de democratização das sociedades jamais conseguiram atingir um estado próximo do idealizado (Rousseau, Thomas More) e como, por outro lado, a democracia não assegura o bem-estar dos povos, acabando estes por ser transformados por movimentos carismáticos, frequentemente anti-democráticos, por vezes de uma perversidade impossível de observar noutras espécies, de que a guerra é a forma última (Hobbes, Nietzche).

A democracia é um ideal disforme que se enraizou na doutrina política ocidental, seja como reivindicação popular, seja como apelo à unidade dos povos dominantes contra os dominados, estigmatizados como anti-democráticos, ao mesmo tempo explorados por tiranos e incapazes de impor a sua vontade.

Portugal sofreu desse estigma, quando os aliados no pós-guerra e os países parceiros da NATO e da EFTA aceitaram negociar com os ditadores de serviço, em nome das democracias. Sofre agora, outra vez, quando os países dominantes na UE decidiram tratar o nosso país como parte de uma vara de “porcos”, constituída pelos países do sul da Europa (PIGS – Portugal, Itália/Irlanda, Grécia e Espanha), a quem reclamam bom comportamento como a qualquer presidiário – os crimes, nomeadamente do excesso de deficit, só são admitidos quando as quantias são “demasiado altas”, tal e qual como o provérbio que diz que quem roube mais de milhão já não é ladrão.

QUEM É RESPONSÁVEL? OS REPRESENTANTES OU O POVO? OS “RESPONSÁVEIS” OU OS ASSALARIADOS?

Internamente a Portugal, ao contrário do que aconteceu na viragem do século XIX para o século XX, a nossa incapacidade cívica de fazer funcionar a democracia leva-nos a aceitar culpabilizar-nos colectivamente pela política de pedinchice e irresponsabilidade em que nos especializámos desde 1986. “Todos somos responsáveis”, não é? Enquanto povo, preferimos não reclamar (“porque dá trabalho”; “porque não se vai a lado nenhum”) e recusar quem entre nós utiliza as liberdades cívicas (“metem-se com os poderosos? Não pode ser!”) sem ter estatuto protegido (por serem estrangeiros ou jovens ou de etnias estigmatizadas ou simplesmente diferentes nalgum aspecto).

Mas atenção. Há uma diferença aqui a fazer: temos sido todos irresponsáveis. Certo. Não quer dizer que sejamos todos responsáveis. É que alguns de nós (os que têm salários e rendimentos acima dos seus congéneres europeus e norte-americanos; os que acumulam reformas, tachos e comendas e fogem aos tribunais, fazendo uso de redes de políticos e magistrados amigos; os que ganham demais e não pagam impostos) têm partilhado com os senhores do mundo dos aumentos de rendimentos produzidos nas últimas décadas, à custa da estagnação dos rendimentos do trabalho e da exclusão de grandes quantidades de pessoas da dignidade própria da cidadania – por serem desempregados crónicos, trabalhadores precários, por viverem dos projectos de aprofundamento da pobreza e da exclusão como a criminalização da mobilidade social dos pobres através de raras formas de aliança entre os países do norte e do sul do mediterrâneo. Na Idade Média ou durante as guerras mundiais os nacionalismos e as guerras religiosas dividiam povos fanatizados, em benefício de alguns aristocratas (que se protegiam mutuamente contra os povos, apesar das lutas intestinas e traições regulares de que eram feitas as suas vidas) à custa dos povos. Povos esses que foram apanhados pela ascensão do capitalismo (e a mobilidade forçada dos campos para as cidades) para se organizarem para sobreviverem. Uma tal liberdade está hoje em dia na ordem do dia, sobretudo para os migrantes, tanto os que vivem connosco ou nos procuram como aqueles muitos que nunca deixaram de sair do país à procura de uma vida digna.

Confundir e misturar a verdade dos algozes (neste caso, os que beneficiam e continuam a beneficiar das políticas da União Europeia) com a verdade das vítimas (aos excluídos juntam-se agora, não sem vergonha, aqueles a quem os rendimentos são cortados e aumentadas as despesas com o pretexto de que para o Estado o saudável em fazer exactamente o inverso do que nos obrigam a fazer) é a grande arma dos vigaristas. Por isso desde 2001 não há campanha eleitoral em que no dia seguinte das eleições o vencedor não venha dar o dito por não dito. Da última vez, ainda este ano de 2010, a vigarice atingiu mesmo um nível superior de sofisticação. Os partidos do arco do poder anunciaram previamente que partilhariam o mesmo programa de governo, que seria aquele acordado (democraticamente?) com os poderes que os tutelam (a troika). Ganhou o aldrabão com presença de espírito de dizer que ia passar a dizer a verdade aos portugueses. Agora que é evidente que mentiu, tal como os seus antecessores, insiste tranquilamente, como qualquer vigarista mais barato, que sempre disse a verdade. Ele vai castigar-nos: vai empobrecer-nos, vai tirar-nos as gorduras, vai tirar-nos os subsídios, vai construir para nós uma boa imagem de bons pobres ou de prisioneiros bem comportados, para apaziguar à má vontade dos nossos carcereiros. Ele, qual director de cadeia, vai mudar Portugal, do mesmo modo que as penitenciárias mudam os criminosos: à porrada!

HÁ ESPERANÇA PARA A DEMOCRACIA?

Aqueles que pretendem tudo mudar querem que se mantenha o essencial: que os resultados da pedinchice e da irresponsabilidade políticas continuem a encher os bolsos das classes dominantes (as mais desiguais da Europa relativamente ao resto da população), com o prejuízo que for necessário fazer do lado dos mais desvalidos, por um lado, e da função pública e pequenos comerciantes, por outro lado.

Há a esperança de que um movimento democrático, por exemplo importado da primavera árabe, inspire a Europa. Mas não está predestinado. Na Europa a população está muito envelhecida e beneficia do lugar dominante no mundo – nomeadamente para importar alimentação barata – ao contrário do que acontece no Norte de África. Por outro lado temos problemas financeiros e políticos de ruptura com o sistema instalado, que terá de abrir portas a outra situação. Que se teme possa ser mais parecida com a conjuntura entre guerras dos anos 30 do século XX do que com um movimento democrático. Tal perspectiva torna mais urgente e relevante os esforços voluntaristas que se possam fazer em nome e a favor da democracia.

Para isso é útil um sobressalto democrático, nomeadamente aquele protagonizado pelos movimentos dos indignados, felizmente espalhados por muito mundo, incluindo os principais países do mundo ocidental. Para um tal sobressalto é importante discutir e aprender na prática o que seja isso de democracia, ou melhor, como dizem os nossos amigos espanhóis, a democracia real, aquela que funciona fraternalmente.

Na antiga União Soviética contava-se uma anedota sobre a divisão de um frango em casa de amigos. Um deles disse para os outros: “Vamos repartir democraticamente o frango”. Aos que os outros contestaram, para rectificar: “Não, não. Vamos repartir irmãmente!” A democracia popular, como a democracia liberal ou burguesa, ou outra qualquer forma democrática, pode ser e é interpretada e usada de forma oligárquica. Para o evitar, a democracia reclama formas eficazes de regulação, como é o caso, na constituição portuguesa, do Presidente da República, do Tribunal Constitucional ou da Assembleia da República. O problema, como também aconteceu com o Banco de Portugal relativamente ao sistema financeiro, é saber se tal papel está a ser suficientemente bem desempenhado e as instituições não estão a trabalhar fora do âmbito a que deveriam estar comprometidas, em nome da democracia. O destino do senhor Vítor Constâncio, socorrido pelo Banco Central Europeu depois de graves acusações de negligências nas suas funções no Banco de Portugal é comparável ao destino do novo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, que na sua actividade privada foi o conselheiro do governo grego para escapar aos controlos financeiros da União Europeia[1] e que, alegadamente, seria a causa próxima e moral da desconfiança dos mercados financeiros no Estado grego.

A IRRACIONALIDADE DA IRRESPONSABILIDADE - O PIOR MAL É A MENTIRA

A experiência observada de longe é suficiente para ser claro para todos que não apenas a mentira generalizada tomou conta da política portuguesa como também a da União Europeia, onde uma convocação de um referendo clarificador na Grécia fez cair o primeiro-ministro por ordem do secretariado informal (ou será ilegal) que dirige a União Europeia. Cá como lá, a democracia é temida e não funciona. Não pode funcionar por decisão dos poderes fácticos que têm vindo a conduzir a ideia de Europa a uma desorientação moral radical.

É preciso reconhecer a existência de duas verdades em presença – a dos algozes carcereiros das populações imigrantes, gregas, portuguesas, e outras, e a dos povos há muito excluídos, a que a classe média assustada não se quer juntar (“nós não somos gregos”; “nós queremos pagar”), na esperança de não ser confundida com os pobres. Na verdade há que escolher entre uma e outra. E só uma delas terá potencialidades democráticas, ainda que tais potencialidades não sejam automaticamente concretizadas. Pelo contrário: o risco de guerra entre países europeus e dentro de alguns desses países é cada vez mais vezes referido. Como também já aparecem os promotores das ditaduras, a argumentar – tal como os neo-nazis, entretanto desacreditados em Portugal – que as limitações culturais do povo impedem a democracia.

O respeito ao povo como soberano nem os “democrata” o manifestam. Eis o grande problema.

Por isso chegámos ao ponto em que estamos: a irracionalidade mais radical e assumida no poder, alegando a seu favor que ao menos o actual vigarista de serviço tinha avisado que não iria faltar à verdade: “não vou aumentar os impostos” (dos ricos) eleitoral = “os portugueses (pobres e remediados) vão empobrecer com esta política” pós-eleitoral.

Resta-nos arrepiar caminho e, de preferência, voltar à democracia. Como fazê-lo? Seguindo a pista apontada por João Pina Cabral,[2] desenvolvendo os movimentos que dão contributos para a democracia. E quais são esses movimentos?

A LUTA PELA DEMOCRACIA RECLAMA CONVERGÊNCIAS NA ACÇÃO E CONSCIÊNCIA DA SUA NECESSIDADE

Um dos movimentos democráticos mais antigos identificado é a Revolução Axial,[3] com mais de 3 mil anos. Ao mesmo tempo que começaram a surgir instituições estruturadas, a política organizou-se como campo auto-referencial de tomadas de decisão, implicando terceiros em larga escala. A política foi tratada de duas formas radicalmente distintas: a) como propriedade das oligarquias dominantes que se sucediam, em nome de um deus ou de um herói; b) como espaço racionalizado de participação colectiva, de que a democracia é um exemplo, sempre limitado pelos limites da cidadania (excluente dos escravos, dos estrangeiros e também dos inertes – por incapacidade ou por ignorância).

As lutas por valores como dignidade ou liberdade são partilháveis por ambas as concepções (e interesses) envolvidos nos processos de institucionalização. As lutas pela transparência e pela igualdade, nomeadamente de acesso à dignidade e à liberdade, são típicas da revolução axial participada (por contradição com a revolução axial oligárquica). Onde esta revolução tenha vingado alguma vez, a cultura partilhada entre os poderosos e os seus súbditos incluiu algum tipo de reconhecimento do direito dos últimos a julgarem a legitimidade das acções institucionais e a obrigação dos primeiros em facilitarem tais processos. A célebre frase “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus” pode ser interpretada como a referência à disjunção entre os critérios da revolução axial (simbolizada por César, que por muito poderoso que fosse não poderia ser comparado com Deus) e os anteriores (em que Deus não é contactável a não ser através dos sobrenaturais mistérios existências ou dos êxtases dos Profetas).

Neste horizonte, todos temos de ser democratas, uma vez a democracia experimentada. O que não significa que alguns não trabalhem para limitar a democracia. Isto é: se a democracia for entendida enquanto um estádio natural da existência humana, que não depende do esforço das sociedades para a desenvolver ou recriar, a opacidade, a confusão ideológica e mediática, o negócio da venda de ideias e ideais, a traição dos amigos e parceiros, tudo passa à conta da liberdade e da diferença, tornando os responsáveis em irresponsáveis (na altura de receberem os cheques e as benesses). Deixam as responsabilidades dos cheques por pagar e das humilhações aos povos atarantados. Como aconteceu com a banca, com os políticos, com os media oficiosos, com os tribunais, nos últimos anos, incapazes de um mínimo de autocrítica e, portanto, de mudar os comportamentos.

Exemplos de movimentos incluídos na revolução axial são os movimentos de autonomização dos concelhos, a filantropia, os movimentos feministas, o movimento operário, os movimentos sindicais, os movimentos para a educação popular, os movimentos para a saúde pública, a contenção das guerras ou pacifismo, o movimento ecológico, os movimentos de urbanidade, os movimentos pela mobilidade, movimentos dos direitos humanos. Dentro destes movimentos, uma parte é democratizadora. Mas outra parte é oligárquica: mesmo sabendo que usurpa o poder, aproveita toda a opacidade e confusão ideológica para desincentivar, nomeadamente burocratizando-os, os processos de auto-regulação social e pessoal – por exemplo através da generalização dos currículos vitae e das avaliações de desempenho amesquinhantes e desqualificantes.

ESCAMOTEAR O REPUGNANTE: SINAL DE DESCRÉDITO DA DEMOCRACIA

Actualmente a liberdade na boca dos políticos norte-americanos quer dizer direito ao petróleo e a negociar com dólares em qualquer parte do planeta. Movimento operário, para alguns dos seus adeptos, não é uma ambição democrática mas hegemónica, contra todos os outros movimentos sociais que, segundo esses, deveriam estar (ou então ser) subordinados à oposição oficial ao status quo, na verdade parte integrada do mesmo. Direitos humanos, estado de direito e democracia são frases soltas utilizadas pela NATO e pela União Europeia para dar lições ao mundo, cada vez mais céptico perante a degradação da situação interna nitidamente suicida em que as classes dirigentes se recusam a ceder privilégios, nem que para tal se vejam confrontadas com o desfalecer da nossa civilização perante o mundo, nomeadamente países e povos a quem oprimimos durante séculos.

Todos estes movimentos, tal como a revolução axial, são contraditórios em si mesmos: são reacções a situações identificadas como repugnantes e, em determinadas condições, passam a ser alvo de esforços sistemáticos e transformação das condições institucionais e de existência que reproduzem o problema. Na verdade, a sua tematização é que torna repugnante aquilo que, de outro modo, a maioria das pessoas sentiria como normal e não problemático, à custa do sofrimento estruturalmente determinado de uma minoria. Pelo que a solução de um problema levantado terá, logicamente, três soluções: a) abolir a possibilidade de referência ao problema, tornando-o ou mantendo-o tabu; b) abolir o problema e, desse modo, deixa de haver razão e sentido para falar dele; c) fingir que se trabalha para abolir o problema, tornando-o de facto tabu, num passe de mágica próprio da psicologia com que os vigaristas seduzem as respectivas vítimas.

Não é difícil identificar qual seja a solução modelo actualmente em curso e a necessidade, para quem se identifique com as vítimas, de romper com esse mau-olhado, com esse sistema perverso de sedução, exactamente igual – na sua natureza – àquele que liga as mulheres batidas ao seu agressor (amoroso ao mesmo tempo que espanca e amesquinha) ou as crianças ao seu abusador (que lhe traz guloseimas em troca da violação e do silêncio). Os portugueses devem suspender a democracia durante este mandato, diz-nos o governo. Justifica-se por isso ser de modo a não dar mau aspecto aos senhores do mundo e a apaziguar-lhes os nervos em que andam. Como o polícia bom, o “nosso” governo informa de que depende do nosso comportamento no empobrecimento podermos um dia voltar a ver a luz dos seus queridos mercados. O que ocorrerá quando o polícia mau o permitir, como se tal situação significasse alguma forma de liberdade ou de retorno ao passado (o que não é de facto o caso).

É PRECISO REINVENTAR A DEMOCRACIA ADAPTADA AOS NOVOS TEMPOS

A democracia é o resultado, em cada momento, de processos de civilização que de forma nenhuma são irreversíveis. A democracia foi mais recentemente desenvolvida pelos iluministas, presos nas cortes aristocráticas que concentraram o poder dos Estados modernos. Queriam e foram obtendo, através do uso das liberdades que o conhecimento reclamava, direitos de intervenção indirecta na governação, por exemplo através dos salões aristocráticos, eventualmente contra os senhores que os recebiam. Esse jogo perigoso instigou muitas guerras contra a guerra (não são todas assim?) e trouxe aos campos de batalha os povos que foram tomando consciência de si. Ao ponto de pensarem que dispensando o rei, o símbolo da institucionalização, poderiam tornar o próprio povo soberano.

Desde esses tempos até hoje muito a democracia evoluiu. Deixou de ser uma ideia elitista para ser um direito/dever universal, partilhado por pobres, mulheres, jovens até por condenados e alguns estrangeiros. Mas o direito à participação ainda excluiu muita gente – sobretudo estrangeiros ou (nalguns países) os presos – e, sobretudo, excluiu a maioria das pessoas, por se resumir a política à governança, como hoje se diz, isto é à relação entre os peritos e especialistas (herdeiros das antigas classes liberais de cariz aristocrático, beneficiando de liberdades especiais, como os intelectuais ou os sindicalistas ou os representantes da sociedade civil) e os decisores políticos e empresariais. Aos assalariados resta a posição de receptáculos de propaganda – entregue pelos media, juntamente com as requentadas novidades de consumo – e de figurantes nas manifestações ou nas eleições.

A democracia popular que acabou com muito do que no século XIX era conhecido como despotismo asiático. Acabou ela mesma contestada por não ser afinal democracia nenhuma. Teve, todavia, a virtude de trazer o ocidente (como o leste da Europa, também) numa luta pela democracia em função do privilégio dos interesses do capital, de um lado, e da burocracia, por outro. A implosão da União Soviética podia ter sido uma forma de trazer à democracia as qualidades democráticas de servir o povo a juntar às qualidades de servir o desenvolvimento económico, intenções posta em prática pela social-democracia europeia – a que nominalmente aderiram muitos partidos dos países de Leste europeu e também partidos conservadores e comunistas da Europa ocidental. Porém, como muitas vezes ocorre, enquanto as intenções se afirmavam a realidade da vida afastava-se para outros paradigmas existenciais, a que actualmente se associa geralmente as ideologias neo-liberais.

Basicamente, a partir do momento em que a democracia burguesa (mais exactamente a democracia das multinacionais) passou a ser a democracia vencedora da Guerra Fria, a disputa ideológica que animou a democracia deixou de ser relevante – foi o fim das ideologias ou o fim da história, como alguns intelectuais registaram esse novo sentimento de relaxamento relativamente à política. Em poucos anos a política voltou a ser a porca de que nos falavam os autores populares do século XIX, entregue à discricionariedade dos privilegiados, pessoas que não se fizeram rogadas em se corromperem nessa mistura de gente importante, à medida que a subordinação se desenvolvia tão depressa quanto a repugnância/admiração das pessoas ”comuns” face ao enriquecimento ilícito e acelerado, assim como face às cumplicidades secretas que tal gente tem de conter dentro de si. Os privilégios, portanto, embora expostos como troféus, são escondidos da escrutínio público pelas próprias instituições políticas, mais preocupadas em defender os mal feitores que eventualmente albergam do que em prestigiar a sua legitimidade democrática e do regime de que fazem parte.

Capazes do melhor e do pior, os seres humanos precisam de dedicar a si próprios muita atenção, se querem evitar o pior e potenciar o melhor. Darmos por segura a democracia, eis o momento a partir do qual ela se nos começa a escapar. Já lá vão trinta anos a procurar dar “segurança” à “democracia”, especialmente contra os estrangeiros. O Estado de direito e os direitos humanos são indicadores seguros da degradação da democracia no ocidente, de que Guantanamo, Abu Grahib, a destruição do Iraque e da Líbia, os negócios do ópio no Afeganistão e, em geral, as guerras do petróleo enquadradas por mentiras oficiais e oficiosas, transmitidas caninamente pela generalidade dos órgãos de comunicação social, são provas evidentes e suficientes. A ponto de se poder (dever?) dizer que a democracia já não existe. Que é o que melhor se adequa dizer quando se assiste à proibição da França e da Alemanha da continuidade do governo grego em funções, por alegada traição do primeiro-ministro grego aos parceiros credores, à margem de qualquer formalidade institucional na União Europeia ou na Grécia.

ANTÓNIO PEDRO DORES -  antónio.dores@iscte.pt


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