As manifestações dos desmobilizados de guerra, a 25 de Outubro último, foram um pretexto não só para eles reivindicarem os direitos que julgam estarem a ser sonegados pelo Governo, como também serviram de trampolim para algumas pessoas como Jossias Alfredo Matsena saírem do anonimato. A função de porta-voz do Fórum dos Desmobilizados de Guerra de Moçambique conferiu-lhe essa possibilidade.
Jossias Alfredo Matsena conta com 45 anos de idade, filho de Alfredo Matsena e Albertina Pumula. Pais de 19 filhos, dos quais 10 homens e nove mulheres, seriam 25, mas morreram outros seis. Vive com as suas três esposas na sua casa, mas cada uma com a sua “palhotinha” e os seus rebentos.
Aos seus 9 anos de idade ingressou na escola ‑ os estudos não foram além da 5ª classe. A interrupção deveu-se às precárias condições por que passava, para além de que os seus pais não trabalhavam e tinham uma vida virada à actividade agrícola para fins de subsistência familiar.
Depois de ver interrompidos os seus estudos não restou outra hipótese ao adolescente Jossias que não passasse pela agricultura de subsistência. Foi assim que começou a produzir alimentos para o sustento da sua família.
Porém, o destino reservou- -lhe outro caminho e em 1982 Jossias deixou de plantar para alimentar vidas e foi aprender a matar para defender a soberania nacional.
Mas Jossias não foi sozinho. A guerra levou-o com mais três irmãos, os quais deixaram as vidas na guerra civil. Até hoje ninguém sabe do paradeiro dos seus corpos e a notícia veio através dos amigos que com eles combatiam. “Ninguém nos disse nada. Não houve nenhum tipo de comunicação. Oficialmente, eles não morreram.”
“Volvidos pouco mais de 20 anos, queremos que o Governo venha erguer as campas onde jazem os restos mortais dos meus três irmãos. Eles lutaram em defesa desta pátria, abdicaram dos estudos para o efeito e em troco disso o seu sangue derramado pela fúria dos projécteis não está a ser reconhecido”, conta Matsena acrescentando que vai mobilizar a sua família para exigir ao Governo as pensões que os filhos dos finados merecem.
“Tenho 19 filhos e 3 esposas por cuidar”
Seis anos antes de Jossias ingressar nas Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM), hoje Forcas Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), isso em 1980, namorou com a uma ‘jovem’ de nome Felismina Valói, uma relação que dois anos depois deu- -lhes uma filha, afigurando-se a sua primeira sorte.
O jovem Jossias na altura, não tinha condições de viver com a sua parceira, pois era desempregado e, por isso, a vida não corria da melhor maneira, mas isso não lhe tirou a vontade de trazer mais rebentos, pois a teoria natalista que defende a procriação dos seres humanos como o dom que Deus conferiu encaixa como uma luva em Jossias, que se esmera em procriar independentemente das condições em que habita.
A sua primeira filha que, se calhar, devia sentir o carinho e aconchego dos progenitores vive com a mãe. Hoje ela conta com 29 anos; já não é o que era dantes; agora tem que desenrascar para sobreviver, facto que lhe valeu um trabalho doméstico algures na “terra da boa gente”, província de Inhambane.
Em 1983 enquanto a sua primeira sorte tinha apenas um ano de vida, juntou-se a uma outra mulher de nome Palmira Xavier e com ela teve um filho, “este segundo relacionamento foi relativamente sério, fiz o lobolo (casamento tradicional).
Vivemos uns quatro anos e separámo-nos por motivos de vária ordem e que não os posso revelar”, conta para depois acrescentar que um ano depois da separação com a segunda mulher, envolveu-se com uma outra de nome Melita Tivane com a qual teve 11 filhos, mas três perderam a vida. Com ela ainda vive maritalmente até os dias de hoje.
Comparativamente com as outras, a Melita é mais velha contando neste momento com 43 anos de idade, dois anos mais nova do que o marido.
Durante o seu relacionamento com esta mulher construíram uma casa, no entanto, Jossias não arredou pé, conheceu uma outra mulher (Elisa Pinto) com a qual teve dois fi lhos. Pouco tempo depois envolveu-se com Cevelina Chilusse e tiveram quatro filhos, dois dos quais morreram.
Na sua residência no distrito de Pande, província de Inhambane, Jossias Matsena vive com as suas três esposas e cerca de 15 filhos.
Dois espalharam-se algures em Maputo e outros dois emigraram para a vizinha África do Sul à procura de melhores condições de vida, aliás o pai e a mãe só os trouxeram à terra. Agora que eles são crescidos que se virem, numa alusão ao provérbio popular, “cada qual por si, Deus por todos”, assim vão desenrascando o seu ganha-pão.
Pensão de 1800 meticais para cuidar de 15 filhos e três esposas
As três mulheres do Jossias vivem no mesmo talhão, dividido em três parcelas, sendo uma para cada mulher e seus filhos. “Em cada parcela construí uma casa para cada mulher, cada uma tem de levar os seus filhos para o seu cubículo”, conta para depois acrescentar que o tamanho da casa depende do número de filhos que a mulher tenha, ou seja, se menos forem os filhos, menor a casa, se mais os filhos, maior a casa.
Diz ter enveredado pela proporcionalidade para evitar possíveis conflitos entre elas, se calhar seja por isso mesmo que segundo Matsena entre as suas três mulheres não existe nenhum conflito, elas entendem- -se, conversam sem nenhum problema.
Como qualquer um podia perguntar, se ele vive com as três mulheres na mesma residência, como é que tem sido a gestão? Simples: “uso o sistema rotativo. Reservo um dia para uma, outro para outra e assim sucessivamente.
Durante os sete dias da semana giro dentro da minha pequena aldeia, e todas têm a mesma prioridade, não importa o tempo da relação com fulana ou sicrana, muito menos o número de filhos. Elas gozam dos mesmos direitos e deveres”, conta.
Se para algumas famílias a partilha da mesma panela (entenda- se refeições) tem sido o foco de desentendimento, na pequena aldeia do Jossias, isso não acontece, “as minhas mulheres usam a mesma panela, cozinham uma de cada vez. Se por exemplo hoje for o dia da Melita, ela tem de ir à machamba procurar algo para cozinhar, o que acontece também com as outras duas. Nos 10 hectares de terra que tenho, cortei três parcelas e atribuí a cada uma delas. Fiz uma divisão por igual, e tudo que elas produzem na machamba é para o sustento da família.
Nos 1800 meticais de pensão mensal que Jossias tem como desmobilizado de guerra, divide por igual. Assim, 400 meticais vão para a Melita, 400 para a Elisa, 400 para a Cevelina e o remanescente vai para os seus bolsos. “Este dinheiro não me ajuda quase em nada.
A mesada que dou às minhas esposas é muito pouca, tendo em conta que desse pouco elas têm que comprar algumas roupinhas, sobretudo (uniforme) para os seus filhos, material escolar, entre outras coisas que julguem necessárias”, reconhece ajuntando que o ideal para sustentar o seu vasto agregado familiar seria um valor estimado em 25 mil meticais, se avaliarmos também o custo de vida que está “amargo” no país, resultante dos preços de produtos alimentares que sobem em flecha.
Dos seus 19 filhos, 14 vão à escola, porque estudam perto de casa e por isso não têm necessidade de transporte, para além de que estão isentos do pagamento das matrículas ‑ um dos direitos e facilidades que se lhe confere pelo facto de ser combatente da guerra dos 16 anos. “Mas, tenho que procurar dinheiro para comprar material escolar para todos os meus filhos, porque não trabalho e recebo uma pensão miserável.
Nalgumas vezes vendo as minhas galinhas e certos produtos agrícolas como amendoim e batata, para poder ter dinheiro”, comenta para depois acrescentar que anualmente gasta cerca de 3.500 meticais para comprar o material escolar para os seus filhos, como por exemplo lapiseiras, cadernos, lápis, livros para os que estejam no ensino secundário e o pagamento de 30 meticais anuais para o salário dos guardas. Recebendo uma pensão abaixo do salário mínimo nacional, Jossias tem que fazer uma grande ginástica mental e física para ter esse valor e resolver a situação dos seus 14 rebentos.
Vida militar
Em 1982 juntamente com os seus três irmãos mais novos, Matsena ingressava para o Serviço Militar Obrigatório, para se incorporar nas extintas Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM). Combateu nas operações de Gaza, Manica, Sofala e Maputo. “Quando fui à guerra, a minha filha era uma recém-nascida e porque eu era desempregado deixei-a em casa da mãe”, conta.
Durante os 12 anos e seis meses que ele esteve nas fileiras da força governamental e fazendo incursões combativas pelo país, voltava à casa uma vez e outra. Raramente acabava um ano sem que voltasse à casa, “dos 500 meticais que eu tinha como subsídio tirava uma parte e enviava para a mãe da minha filha e a outra parte ficava comigo, pois eu também tinha as minhas vontades”, ajunta.
Jossias Matsena pertencia ao Comando Militar Provincial de Inhambane. Dois anos depois de ingressar no exército (1984), foi destacado para uma formação de Reconhecimento Estratégico Internacional, a qual durou um ano e foi monitorada por militares russos. Depois da formação foi promovido a chefe de reconhecimento no comando militar distrital, um cargo que na altura correspondia ao de um capitão, uma patente imediatamente superior a de tenente.
“Mas quando a guerra dos 16 anos terminou com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), em Roma, o Governo moçambicano desmobilizou- -me com a patente de alferes.
Isso não passa de uma brincadeira de mau gosto e das manobras dilatórias do Governo que engana e maltrata até os que defenderam a soberania e democracia neste país”, afirma.
Este desmobilizado de guerra que combateu em diferentes zonas do país durante 12 anos e seis meses, recebe actualmente uma pensão de 1.800 meticais, uma quantia irrisória e mísera, se atendermos ao crescente custo de vida aqui em Moçambique, e não menos importante os 19 fi lhos e três esposas que tem à sua responsabilidade.
Jossias Matsena desempenha neste momento o cargo de chefe da Comissão de Porta-vozes dos Desmobilizados de Guerra de Moçambique, no Fórum dos Desmobilizados de Guerra de Moçambique (FDGM), cujo presidente é Hermínio dos Santos, e desempenha igualmente a função de porta-voz nacional.
No dia 25 de Outubro findo, pouco menos de mil manifestantes, entre desmobilizados de guerra, ex-milicianos e naparamas, viúvas e órfãos destes, amotinaram-se no centro de manutenção física António Repinga, na baixa da cidade de Maputo, a escassos metros do gabinete do Primeiro-Ministro e sede do Governo moçambicano, onde dentre vários pontos, reivindicavam uma pensão de 12.500 para todos acima referidos.
“Esses 12.500 meticais são uma pensão base ou mínima. Eu mereço uma pensão maior do que essa, e tem que ser um valor que se aproxima ao salário de um major”, ajunta.
Sequestro
No dia 14 de Novembro corrente Jossias Matsena foi sequestrado por agentes da Força de Intervenção Rápida (FIR) e outros agentes policiais a paisana, e tal aconteceu ao longo da Avenida Kenneth Kaunda, bem próximo da embaixada dos Estados Unidos da América, na cidade de Maputo.
Por volta das 14 horas do dia 14 de Novembro, uma senhora que não se identificou, supostamente funcionária da embaixada dos EUA, ligou para o Jossias Matsena, dizendo-o que, naquele mesmo dia, ele devia apresentar-se na embaixada para uma audiência, onde se pretendia ouvir quais são os problemas que os desmobilizados enfrentam e qual o actual estágio da situação em relação as reivindicações dos seus direitos.
Quando ouviu que era solicitado, Matsena tratou de efectuar uma ligação telefónica para o seu companheiro de “trincheira” e presidente do fórum, Hermínio dos Santos, explicando-lhe a situação.
No entanto, dos Santos foi muito duvidoso, primeiro pelo facto de a solicitação ter sido quase ao fim do dia, segundo, por a pessoa não se ter identificado. Já que estão numa fase em que qualquer apoio é bem- -vindo o que lhes deixa vulneráveis, Matsena mobilizou três colegas seus e seguiram a viagem com destino à embaixada.
Para a sua infelicidade, chegados lá, quando expuseram o caso ao recepcionista, este encaminhou- os aos seus chefes, e a resposta não foi de esperar: “Nós não ligamos para ninguém com esse número, para além de que já estamos quase a fechar, talvez tenham ouvido mal ou foram enganados”. Jossias e os seus colegas desmoralizados começaram a murmurar, e para tirar o dito stress pela mentira de que foi alvo, comprou umas laranjas e chupou-as com os seus companheiros, isso nas imediações da embaixada.
Um guarda da embaixada disse que eles deviam afastar- se das proximidades daquela instituição, pois os americanos têm um sistema de segurança muito rigoroso e poderiam desconfiar que fossem espiões ou outra coisa parecida.
O pequeno grupo chefiado por Matsena não fez ouvidos de mercador e retirou-se do local. Foi comprar umas laranjas numa banca que dista 30 metros da embaixada, e por ali arranjou uma esquina, sentou-se e começou a chupá-las.
Para o espanto de todos, pouco tempo depois, um contingente policial, “armado até aos dentes”, uns com fardamento da Força de Intervenção Rápida (FIR) e outros a paisana, dirigiu-se imediata e directamente a Matsena, pedindo que se identificasse, o que o fez prontamente, mas isso não foi suficiente.
Os agentes da lei e ordem começaram a fazer interrogatórios descabidos e desprovidos de algum fundamento, ao mesmo tempo que o arrastavam para uma das viaturas que traziam, e faziam-no sob a alegação de que ele ameaçava e pretendia desestabilizar o país, promovendo manifestações. Qualquer um pôde ver que eram pacíficas.
Jossias Matsena foi violentamente introduzido no carro da polícia, a caminho do Comando da PRM da Cidade, onde chegaram pouco antes das 18 horas. Foi imediatamente metido numa das celas, onde se encontravam dois indivíduos. Às 22 horas do mesmo dia aparecem três polícias, acusando-o de ter ameaçado um ataque às embaixadas sediadas no país, promovido manifestações, ter um esconderijo de armamento que o não devolveu depois de ter sido desmobilizado, entre outras. Segundo nos conta, foram acusações desprovidas de qualquer fundamento e por si prontamente refutadas.
Justiça manda soltar Jossias Matsena
Na terça-feira, 15 de Novembro, o porta-voz do Fórum dos Desmobilizados de Guerra de Moçambique (FDGM), Jossias Matsena foi levado do Comando da PRM da Cidade de Maputo por uma escolta policial à sede do Tribunal Judicial do Distrito Municipal Ka Mpfumo.
O julgamento, conduzido por uma juíza da 3ª Secção, levou pouco mais de uma hora, e os motivos que foram alegados pela polícia moçambicana não foram comprovados, ou seja, não houve matéria criminal para encarcerar o cidadão moçambicano Jossias Matsena.
Os agentes que o sequestraram alegaram que ele tinha escrito um documento em que ameaçava o encerramento de algumas embaixadas sediadas na capital do país, promoção da violência e instabilidade, e era dono de um esconderijo de diverso material de guerra que o não devolveu depois da sua desmobilização, entre outras acusações que não foram comprovadas e desprovidas de qualquer fundamento.
Por volta das 17 horas daquele dia, Jossias, com uma escolta policial armada até aos dentes, saíram da sede do tribunal em direcção à Cadeia Central da Machava, onde devia aguardar a leitura da sentença. Na manhã de quinta-feira 17, Matsena compareceu, mais uma vez ao tribunal, para ouvir a sua sentença. A juíza de Direito, Doutora Marina Augusto, determinou a restituição à liberdade o cidadão moçambicano Jossias Alfredo Matsena de 45 anos de idade, por insuficiência de provas nas acusações contra si movidas pela polícia moçambicana para a sua condenação.
A soltura daquele desmobilizado de guerra foi um balde de água fria para os agentes policiais.
Naquele dia 14 de Novembro, a Força de Intervenção Rápida (FIR) usou da sua prepotência para desferir pontapés contra a vítima forçando-a a entrar na viatura policial, na qual foi transportada em péssimas condições para o Comando da PRM da Cidade de Maputo.
“O Estado deve pagar os danos causados pelos seus agentes em serviço”
Depois do triste e desumano cenário por que passara Jossias Matsena e sem justa causa, “agora eu exijo que me paguem alguma indemnização pelos danos causados. Denegriram a minha imagem, privaram-me da minha liberdade, prenderam- me sem justa causa”, conta para depois acrescentar que não vai desistir antes que o Estado repare os danos causados.
Atendendo ao preceituado no artigo 58, número 2 da Constituição da República, a lei mãe, diz e citamos: O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei”, fim de citação.
Portanto, o porta-voz nacional do Fórum dos Desmobilizados de Guerra de Moçambique (FDGM), Jossias Matsena, cidadão moçambicano, tem tudo ao seu favor, para reivindicar a sua súbita “detenção ilegal” e os maus tratos perpetrados por agentes da Força de Intervenção Rápida (FIR), uma força especial da Polícia da República de Moçambique, acompanhados de outros elementos à paisana.
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