domingo, 4 de março de 2012

Jornalistas que escaparam da Síria relatam massacres “que vão envergonhar o mundo”




Isabel Gorjão Santos – Público

Bombardeamentos indiscriminados no bairro Bab al-Amr

As bombas caíam durante todo o dia, indiscriminadamente, contam os jornalistas que estiveram vários dias retidos na cidade síria de Homs. Agora que escaparam, por túneis subterrâneos e estradas montanhosas, feridos ou pelo seu pé, contam os pormenores de um massacre que lhes lembra o Ruanda ou Srebrenica.

Paul Conroy está ferido na perna, Edith Bouvier também. William Daniel e Javier Espinosa escaparam sem ferimentos às bombas das forças de Bashar al-Assad que mataram Marie Colvin, do Sunday Times, e o fotógrafo francês Rémi Ochlik. Os quatro jornalistas que escaparam à violência em Homs e já conseguiram voltar para casa recordam as fugas à noite para procurar comida, ou as mesas de cozinha fazer camas de hospital. Enquanto lá, em Bab al-Amr, na cidade de Homs, a Cruz Vermelha ainda está à espera que deixem os seus camiões de ajuda humanitária entrar.

“Deixámos para trás o próximo Ruanda, o próximo Srebrenica”, diz o fotógrafo britânico Paul Conroy, a recuperar na cama de um hospital em Londres, ferido numa perna. Por várias vezes usa a palavra massacre ou catástrofe. O que aconteceu no bairro de Bab al-Amr, garante, é algo de que o mundo se vai envergonhar. E não é uma guerra.

“Não se trata de uma guerra. É um massacre, e um massacre indiscriminado de homens, mulheres e crianças”, disse Conroy à Sky News. “Não havia alvos militares, era um puro e sistemático massacre da população civil. A única razão dos bombardeamentos era a eliminação de pessoas e dos edifícios de Bab al-Amr”.

Desde que chegou ao Reino Unido, Conroy, de 47 anos, já deu várias entrevistas, mas sempre num tom de alerta, como a tentar dizer que o que viu é pior do que se pode imaginar. Ele, que estava na Síria ao serviço do Sunday Times e já esteve em vários teatros de guerra, garante nunca ter visto nada como aquilo. À CNN falou num “cenário medieval, um massacre”.

Do dorso tiraram-lhe um estilhaço de 7,6 centímetros, na perna tem ainda um buraco, mas a quem lhe pergunta diz que está “bem, dadas as circunstâncias”. Na sua memória traz o som dos bombardeamentos que começavam pelas 6h30 da manhã. As forças leais ao regime de Bashar al-Assad a entrar nos bairros “com munições que são usadas nos campos de batalha”. Sem alvos específicos, recorda Conroy, e com uma intensidade “que aumentava todos os dias”. Muitos habitantes perguntaram-lhe onde estava a ajuda. “Não tinha resposta.” Faltava comida, electricidade ou água. Faltava tudo, menos os estrondos dos bombardeamentos.

"Bashar a dizer bom-dia”

No ataque em que Conroy ficou ferido foi também atingida a jornalista francesa Edith Bouvier, do Le Figaro, que nesta sexta-feira já pôde regressar a Paris, juntamente com o fotógrafo William Daniels. Estiveram nove dias em Homs, no bairro de Bab al-Amr, onde entraram com o apoio do Exército Livre da Síria que combate as forças leais a Assad, que junta opositores que iniciaram a revolta contra o regime, há já cerca de um ano, e antigos militares que desertaram.

Edith Bouvier e William Daniels contaram agora no Le Figaro como foi o ataque que deixou a jornalista francesa ferida numa perna e que matou a norte-americana Marie Colvin do Sunday Times e o fotógrafo francês Rémi Ochlik. “Houve cinco explosões sucessivas, muito próximas. Tivemos a impressão de que éramos directamente os visados."

Alguns activistas sírios que os acompanhavam aconselharam-nos a sair dali rapidamente. Marie Colvin e Rémi Ochlik foram os primeiros a sair quando o centro de imprensa onde se encontravam foi atingido. “A deflagração foi terrível. Marie Colvin e Remi Ochlik estavam praticamente no ponto de impacto. Morreram logo ali.”

Seguiram-se várias tentativas para retirar os jornalistas sobreviventes daquele local. Uma delas foi através de um túnel escuro de três quilómetros, na noite de 26 para 27 de Fevereiro, com a ajuda de membros do Exército Livre da Síria. Paul Conroy e o espanhol Javier Espinosa, do El Mundo, conseguiram sair.

“Não sabíamos nada. Não compreendíamos nada do que se estava a passar”, recorda Bouvier à AFP. Acabaram por levá-la para um hospital de campanha em Bab al-Amr onde foi operada de emergência. Membros do Exército Livre da Síria transportaram-na depois em vários veículos, por caminhos montanhosos, até à fronteira do Líbano onde chegou na quinta-feira. “Quando as bombas caiam diziam-nos que era Bashar a dizer bom-dia”. Estava já próximo o repatriamento para França, onde agora recupera.24 horas de Bombardeamentos

Quanto a Javier Espinosa, o repórter do El Mundo, chegou a ser dado como morto pela agência noticiosa síria, mas a notícia era “exagerada”, como ele próprio pôde anunciar. “Obviamente era falso. Estou felizmente vivo."

Numa entrevista à BBC e num vídeo colocado no site do El Mundo, Javier Espinosa conta que saiu do bairro de Bab al-Amr com a ajuda da população. “Organizaram uma caravana de cerca de 50 pessoas. Não era só para nós, os jornalistas, mas também para os civis e os feridos que queriam escapar.” Foi preciso caminhar durante a noite, fugir aos militares leais a Bashar al-Assad, e quanto maior era o grupo mais arriscada se tornava a operação. “As posições militares estavam muitas vezes só a 200 metros de onde nos encontrávamos. Se houvesse algum ruído, detectavam a nossa presença e começavam a disparar.” No meio, recorda, havia crianças que chamavam pela mãe e choravam. E feridos que não podiam andar depressa.

Para trás ficava Bab al-Amr, onde caíam “200 a 300 projécteis por dia”, recorda Espinosa à BBC. Os bombardeamentos eram sucessivos, das 6h da manhã às 6h da tarde, muitas casas estavam destruídas. “Esperávamos durante o dia, movimentávamo-nos à noite, o único momento em que podíamos sair. Era isso que as pessoas faziam para conseguir comida.”

Já a salvo, Paul Conroy, Edith Bouvier, William Daniel e Javier Espinosa recordam agora os que morreram debaixo das bombas caídas em Homs. Marie Colvin era “a melhor dos melhores”, diz Conroy. “Nunca conheci ninguém com aquela tenacidade e bravura. Só queria dizer a verdade, e estava horrorizada”.

No corpo, Conroy tem ferimento causados por estilhaços da mesma explosão que matou Colvin e Rémi Ochlik no bairro de Bab al-Amr. Ali, diz, estão pessoas “à espera da morte”.

Quando foi atingida a casa onde Conroy estava com Marie Colvin e Rémi Ochlik, tudo à volta ficou negro, recorda o jornalista britânico. Sentiu uma pressão na perna, percebeu que era grave. Mais tarde foi levado para um hospital, se é que se pode chamar isso a uma sala com uma mesa de cozinha no meio.

Os corpos de Colvin e Ochlik já foram entretanto levados para Damasco. Os jornalistas estrangeiros saíram do bairro, não trarão novos relatos, nem novas imagens, mas o desligar das câmaras não é o fim dos massacres. “A próxima fase do conflito pode não ser transmitida na televisão, mas vai acontecer”, lembra Conroy. “Quando o bombardeamento de Bab al-Amr terminar, e estará perto, eles vão avançar para o interior e não haverá testemunhas”, disse à BBC. Em poucos anos, adianta, irá haver uma investigação. “E vamos todos perguntar como é que isto aconteceu”.

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