Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
A crise que hoje vivemos é, acima de tudo, uma crise de ideias e de valores, de reflexão e de debate. Sem se perceber bem porquê, a política deixou o nosso destino coletivo cada vez mais entregue ao improviso, ao imediatismo e ao marketing, cavando um imenso vazio estratégico que nos deixa paralisados.
Dois factos ilustram bem esta situação. O primeiro é nacional: apesar da enorme dureza austeritária adotada pelo governo de coligação PSD/PP, um estudo da Universidade Católica acaba de revelar que 73% dos portugueses não acreditam que o governo de qualquer outro partido fizesse melhor.
O segundo exemplo é mais global: apesar de vivermos a maior crise do capitalismo desde os anos 30 do século passado, vemos a esquerda somar derrotas atrás de derrotas por todo o lado, incapaz de propor aos cidadãos uma visão alternativa credível, que permita configurar um quadro diferente de respostas à crise.
Estes factos revelam bem as consequências do desarmamento ideológico que atingiu o socialismo democrático na última década, e que se traduziu num triplo deslumbramento que afetou os socialistas por toda a Europa.
Em que é que isso consistiu? Essencialmente, num fascínio acrítico, em primeiro lugar, com todas as formas emergentes, mais ou menos fraturantes, de individualismo. Depois, com todas as modalidades de criatividade e de malabarismos do financismo. Por fim, com todas as promessas e ilusões das novas tecnologias.
Com um individualismo que reivindicava cada vez mais direitos, com base numa matriz mais consumista do que cidadã. Com um financismo que garantia a todos um novo bem-estar através do crédito fácil e ilimitado, conduzindo assim à "naturalização" social da dívida. E com novas tecnologias que anunciavam uma sociedade do conhecimento e um novo mundo, ecrânico e autossuficiente, que na verdade se revelou gerador de novas formas de ignorância, bem como de submissão e controlo dos indivíduos.
E atenção: estas três formas de deslumbramento são solidárias, elas reforçam-se constantemente umas às outras: o financismo não seria possível sem as novas tecnologias, nem o tecnologismo sem o "caldo" individualista, ou o individualismo sem o crédito infinito.
E esta espécie de convergência em espiral parece ter literalmente cegado a inteligência crítica de grande parte dos socialistas, e não só: basta olhar para o modo como por todo o lado a esquerda mais radical têm assumido as causas mais liberais em matéria de costumes.... O que não deixa de ser estranho, porque é justamente nisto, nesta inédita convergência de individualismo, de financismo e de tecnologismo, que consiste o triunfo contemporâneo, e a hegemonia cultural, do tão vituperado "neoliberalismo"!...
Mudar de vida não é, agora, fácil, como se tem visto. Mas é isso o que alguns partidos do socialismo democrático europeu, com a ajuda de várias Universidades e diversos think-tanks, procuram fazer: estruturar uma agenda de rutura com o pasmado conformismo dominante, com ideias ousadas e um debate tão aberto como competente.
O capitalismo - tal como a democracia, é preciso ligar as coisas - entrou numa crise que não se resolverá com nenhum "regresso ao passado". Não se pode, por isso, continuar a adiar as questões mais difíceis: como libertar a sociedade do clientelismo partidário que a consome? Como revitalizar a democracia, ultrapassando o generalizado paradoxo de uma liberdade individual que cresce, enquanto a capacidade coletiva diminui? Como ultrapassar as ilusões do socialismo da dívida e do consumo? Como reforçar o valor do trabalho e equacionar o tema da sua duração, como criar emprego e incentivar a produção? Como libertar o ensino do garrote empresarial? Como contrariar o crime (em curso) contra as humanidades? Como transformar, no quadro da globalização, o Estado-providência num Estado-estratega? Quais os novos parâmetros do contrato social para o século XXI? Como "civilizar" a finança? Como reformar a justiça, e contrariar o permanente crescimento das desigualdades? Como deixar de endeusar o livre-câmbio e de diabolizar o protecionismo? Como acabar com a retórica balofa da língua, colocando a cultura e a criação no centro de uma inovadora capacidade de projeção nacional? Como robustecer o papel do mar e dos recursos naturais, transformando a nossa periferia numa verdadeira centralidade estratégica? Como legitimar democraticamente uma (eventual) solução federal europeia? Como fazer das novas tecnologias instrumentos, não de sujeição, mas de emancipação individual e de afirmação coletiva? Como repensar a gratuidade?
Será o Partido Socialista capaz de assumir uma tal agenda? Não será fácil, mas é uma necessidade, se o que se pretende é vir a apresentar ao País uma alternativa política credível e mobilizadora. Há hoje muitas ideias e contributos disponíveis na sociedade portuguesa, que têm dificuldade em chegar à política, aos partidos e aos cidadãos. Acolhê-los, incentivá-los e dar-lhes consequência parece-me ser, justamente, a missão do LIPP (Laboratório de Ideias e Propostas para Portugal), cuja oportuna criação foi anunciada esta semana.
Trata-se de uma iniciativa importante, que contraria a frequente redução dos partidos políticos a simples claques desportivas, e lembra as suas obrigações fundamentais: a de serem, por um lado, antenas da sociedade, das suas expectativas e metamorfoses; e, por outro lado, verdadeiros laboratórios de ideias com vocação prospetiva. Isto é, capazes de introduzir o futuro como ponto de vista, tanto de reflexão como de ação política.
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