Rui Peralta
Guiné-Bissau: notas sobre a geoestratégia do narcotráfico (2)
Geografia e clima
A Republica da Guiné-Bissau situa-se na costa ocidental de África e estende-se desde o cabo Roxo até á Ponta Cagete. Fronteira a Norte com o Senegal, a Este e Sudeste com a Guiné-Conakry, banhada pelo Atlântico a Sul e a Oeste. Para além do território continental integra aproximadamente oitenta ilhas, agrupadas no Arquipélago dos Bijagós, a pouca distância da costa. Com uma área de 36.126 km2 a Guiné-Bissau estende-se por uma área de baixa altitude, situando-se o seu ponto mais elevado a 300m acima do nível do mar. A planície pantanosa no litoral contracena com as savanas no interior. Duas estações anuais, uma de chuva que estende-se de Maio a Novembro e outra de seca, nos restantes meses do ano, características do clima tropical, quente e húmido, marcado pelos ventos quentes provenientes do Sahara.
Demografia
Conforme falamos no artigo anterior a Guiné-Bissau é um mosaico étnico, onde coexistem mais de 20 etnias, com línguas, estruturas sociais e superestruturas culturais distintas, sendo o crioulo a língua veicular, num universo populacional de 1,5 milhão de habitantes, estimativas de 2008, sendo que os Balanta (30%), Fulas (20%), Manjacos (14%) e Mandingas (13%), os grupos de maior influencia. 45% da população pratica cultos animistas e 42% são Islâmicos, com 12% de Cristãos.
A taxa de crescimento da população, estimada em 2000 é de 2,4%, sendo a taxa de mortalidade infantil de 130 mortes por 1000 nascimentos (2004), a taxa de natalidade de 5,27 crianças por mulher (2000) e a expectativa de vida de 49 anos (2004). Em 1997 46% da população com 15 anos e mais, não sabia ler e escrever.
O caminho da libertação (e da colaboração)
Em 1444 as caravelas portuguesas, capitaneadas por Nuno Tristão chegaram ao actual Senegal. Em 1446 Nuno Tristão mais 19 dos seus homens foram mortos entre os rios Sine-Saloum e Gâmbia. Estas mortes foram as primeiras baixas europeias de um conflito que iria prolongar-se por séculos. Se duvidas houvesse por parte da coroa portuguesa estas mortes revelaram a firme determinação das populações africanas em lutarem pela sua soberania.
Foi este factor que levou o colonialismo português a recorrer á diplomacia, estabelecendo relações através da costa, as quais permitiram a penetração comercial a partir de Cabo-Verde, cujas ilhas foram encontradas em 1460, sofrendo uma imediata colonização. Só que o comércio passou a ser regulado pelos reis e chefes africanos. Os comerciantes vindos de Cabo-Verde eram forçados a pagar taxas a estes, que por sua vez ignoravam os acordos estabelecidos com a coroa portuguesa. Surge a figura do lançado, comerciantes aventureiros, que embrenhavam-se no interior africano, á margem da coroa, estabelecendo as suas próprias relações com as populações desafiando as autoridades portuguesas e negociando directamente com os africanos. Este é um acto de prova da rebeldia africana perante a coroa portuguesa, pois os lançados, hospedes em terra alheia, reconhecem a autoridade africana, aceitando as suas regras.
Em meados do século XVI, sob a pressão de espanhóis, holandeses e depois de franceses e ingleses, as pretensões portuguesas de exclusividade dos territórios da “Guiné de Cabo-Verde” tornam-se insignificantes. A influência comercial portuguesa fica reduzida a uns poucos postos comerciais entre o rio Cacheu e o rio Grande de Buba. Os chefes africanos souberam aproveitar-se destes problemas entre os colonizadores, revertendo estas contradições a seu favor. É nesta altura que surgem os primeiros fenómenos de agenciamento das elites, nos contratos efectuados pelos chefes africanos e os corsários e piratas holandeses, franceses e ingleses.
No entanto as hostilidades dos africanos contra as potências coloniais nunca deixou de manifestar-se, desde a resistência passiva á luta aberta. O colonialismo português só se impôs na região da Guiné, com pacificação das populações em 1915, sendo apenas em 1936 que quebraram os últimos focos de resistência armada nos Bijagós. Foram seculos de luta até á Pax Lusitana se impor no território.
A multiplicidade étnica nunca permitiu, durante este período, uma estratégia comum, ou alianças entre povos diferentes. Este factor foi paulatinamente explorado pelo colonialismo português que aos poucos estabeleceu a política do dividir para reinar e explorou a via do agenciamento das elites africanas. Tal como hoje, a reacçäo das classes dominantes variou entre a hostilidade, quando os seus interesses não estavam assegurados e a hospitalidade, quando o colonialismo defendia a sua posição e dispunha-se a distribuir migalhas.
Este é um período fundamental para a compreensão do actual quadro político africano, em particular para a compreensão dos acontecimentos da recente história das independências africanas e dos jovens estados. Quem resistiu e porque resistiu, quais os interesses envolvidos, na resistência e na colaboração. Quais os que gozam dos frutos da independências e quem cuida da árvore onde os frutos crescem. Os que sofrem das ulceras dos repastos e os que sofrem das ulceras da fome.
É toda uma História gloriosa de resistência, mas é também uma história de traições e colaborações. Repare-se nos eventos que levaram ao assassinato de Amílcar Cabral e aos laços de interesses que iam da PIDE, ao Senegal, passando pelo interior do PAIGC e pelas lutas internas da Guiné-Conakry. São teias tecidas por aranhas mestras, desde tempos ancestrais.
Deste período há que salientar os seguintes pontos, importantes para a compreensão do estabelecimento das rotas do narcotráfico nesta região e das particularidades que assumiu na Guiné-Bissau.
Os lançados. Foram eles os primeiros a estabelecer redes internacionais de comércio livre internacional na região.
As alianças entre as autoridades tradicionais e os contra-poderes coloniais dos corsários e piratas holandeses e franceses, principalmente.
Os acordos com as autoridades coloniais para defender interesses de classe, clã e casta.
As alianças com as autoridades coloniais para dominar terras, escravos e comércio.
Os acordos de suserania e tributos
O período pós-independência
O PAIGC declarou a independência aos 24 de Setembro de 1973, reconhecida pela comunidade internacional e pelos estados africanos. Portugal reconhece a independência em Setembro de 1974, 6 meses após o 25 de Abril.
No projecto político do PAIGC a Guiné-Bissau e Cabo Verde, inicialmente constituídos como estados separados, tenderiam a formar uma unidade politica. Após a independência os dois países passam a ser dirigidos pelo PAIGC, até ao segundo grande golpe nas aspirações revolucionárias de ambos os povos (o primeiro foi o assassinato de Amílcar Cabral): o golpe de estado de Nino Vieira e do Movimento Reajustador, em 14 de Novembro de 1980.
João Bernardo Vieira, Nino Vieira, era um veterano da guerra de libertação nacional. Comandou o golpe que depôs Luís Cabral, suspendeu a Constituição e extinguiu o projecto de unificação dos dois países. A Guiné-Bissau passou a ser governada por um Conselho da Revolução. As raízes superficiais deste golpe podem ser encontradas nas divisões internas do PAIGC, na crise económica que provocava escassez de alimentos básicos, para além das habituais acusações dos veteranos guineenses contra a elite política de Cabo Verde, acusando-a de delapidar a Guiné-Bissau. As razões profundas são outras, que veremos mais adiante.
O conselho Revolucionário controla o país até 1984 e cinco anos depois a Constituição é revista, ou pelo menos diversos artigos são eliminados, permitindo a convocação de eleições multipartidárias, liberalização da economia, liberdade sindical, etc. Em 1994 tiveram lugar as primeiras eleições multipartidárias para a presidência e parlamento, que legitimaram Nino Vieira na presidência. Mas 4 anos depois, em 1998, o brigadeiro Ansumane Mané lidera um golpe militar que depôs Nino Vieira e mergulha o país na guerra civil.
Em 2000, após as tréguas, novas eleições dão a vitória a Kumba Yalá e ao Partido Renovador Social (PRS), que revelam-se factores de instabilidade (Kumba Yalá não passa de um analfabeto letrado, com canudo) e em Setembro de 2003 um novo golpe militar coloca Henrique Rosa como presidente interino. Após adiamentos sucessivos as eleições legislativas têm lugar em Abril de 2004, mas em Outubro Ansumane Mané lidera nova sublevação, que termina com a sua morte. Em 2005 as eleições presidenciais reconduziram Nino Vieira á presidência, mas a situação social e económica entra numa espiral de degradação e a Guiné-Bissau transforma-se num entreposto comercial do narcotráfico.
Vou parar por aqui e prosseguir o relato dos acontecimentos no parte 3 deste artigo, mas queria salientar 3 figuras importantes no estabelecimento do narcotráfico: Nino Vieira, Kumba Yalá, Ansumane Mané. O que são e o que representam
Fontes
Peter Karibe Mendy; Colonialismo português em África: A tradição de Resistência na Guiné-Bissau (1879-1959); INEP, Bissau, 1994
Carlos Lopes; A transição histórica na Guiné-Bissau: Do movimento de libertação nacional ao Estado-Parte1 Nação ou Nação em formação?; Institut Universitaire d’Etudes du developpement, Geneve, 1982
J.Bowman Hawkins; Conflict, Interaction and Change in Guinea-Bissau, 1850-1900; California University Press, Los Angeles, 1980
Journal of African History; Vol. VI, num.3, 1965
Padre Fernão Guerreiro; Relação anual das coisas que fizeram os Padres de Jesus nas suas missões, tomo 1 (1600-1603); Imprensa da Universidade, Coimbra, 1930
Boletim do Arquivo Histórico Colonial, volume 1, pág. 77- 115; Lisboa, 1950
Basil Davidson; The people cause. A History of Guerrillas in Africa; Penguin Books, London, 1981.
Jaime Nogueira Pinto; Os jogos africanos; A esfera dos livros, Lisboa, 2008
Banco Mundial; Guinea-Bissau General Report (2011). World Bank - African Reports.
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